Buzzcocks: punks a olhar para dentro
Depois da morte de Pete Shelley, em Dezembro, a reedição de Another Music in a Different Kitchen e Love Bites recorda-nos: ninguém fez música como os Buzzcocks. “Sabíamos que o mundo era um lugar complexo”, diz Steve Diggle.
“A morte dá-te o significado da vida”. Steve Diggle não esperava andar a dizer estas coisas nesta altura. Talvez nem esperasse dar entrevistas sobre a reedição dos dois primeiros álbuns dos seus Buzzcocks, 40 anos depois dos lançamentos originais. Mas a morte trocou-lhe as voltas: Pete Shelley, inseparável camarada de banda, 43 anos de percurso em conjunto, morreu em Dezembro passado.
“Tem um significado diferente agora”, admite Diggle sobre a reedição dos dois discos, anunciada em Outubro, parte de uma revisão da carreira do grupo pela Domino. “Não pensámos que ele estaria morto quando os discos fossem lançados”, continua o guitarrista e vocalista da banda de Bolton, arredores de Manchester, Inglaterra, com 63 anos. “Agora, têm também a memória da sua vida.”
E que vida teve Pete Shelley, que vida tiveram os Buzzcocks. Só naquele ano de 1978 deram ao mundo dois álbuns clássicos, agora reeditados: Another Music in a Different Kitchen, em Março de 1978, e Love Bites, em Setembro, garantiram-lhes lugar de destaque no punk que ajudaram a inventar (o EP Spiral Scratch, lançado em Janeiro de 1977, foi um dos primeiros discos do género em Inglaterra), ao mesmo tempo que rejeitavam quaisquer gavetas: à postura macho e violenta de algum punk contrapunham com vulnerabilidade e ambiguidade sexual; açucaravam o punk até à perfeição: Ever fallen in love (with someone you shouldn't've), de Love Bites; I don’t mind, do antecessor, com refrão e coros adolescentes; abraçavam o krautrock (Moving away from the pulsebeat, de Another Music in a Different Kitchen, bateria e guitarra em fúria maquinal, ruído disposto geometricamente, uma canção pop em expansão permanente durante sete minutos); faziam rock cheio de coração e mecânica (Autonomy e Fiction romance, do primeiro álbum). Enquanto co-inventavam o punk, abriam-lhe já rotas de fuga.
Logo ao primeiro álbum, cobriam “muitos terrenos”. “Temos as canções punk, rápidas, como Fast cars e I don't mind, que são óptimas, mas temos outras”, reflecte Diggle. Conta uma história: “Lembro-me de ler no [jornal musical] NME na altura: quando tocámos no Hammersmith Odeon [em Londres, hoje Hammersmith Apollo], acabámos com Moving away from the pulsebeat e o Mick Jones, guitarrista dos The Clash, disse: ‘Só os Buzzcocks podiam acabar um concerto com uma canção assim’.”
Jones ficou “espantado”. “Aquilo era novo, ninguém tinha ouvido coisas assim na cena punk, onde era tudo muito simples. No primeiro álbum fizemos muitas coisas, é por isso que é um álbum muito importante. Para as pessoas que o ouviram, abriu as mentes para muitas possibilidades. Inspirou bandas e pessoas a pensarem que o punk não tem uma só dimensão. Os Buzzcocks abriram as portas para outros sítios.”
Uma nova maneira de viver
Para aqueles jovens de Bolton, o punk deu urgência à necessidade de criar que já mostravam. Antes dos Buzzcocks, Shelley tocara em bandas rock e, na universidade, juntara-se a uma sociedade de música electrónica, com Howard Devoto (com quem fundaria os Buzzcocks). Shelley disse que o seu guitarrista favorito era Michael Karoli, dos experimentalistas Can, e, antes dos Buzzcocks, gravou música com sintetizadores. Diggle também procurava algo: “Costumava gravar aspiradores com um gravador de cassetes.”
Quando leram uma crítica de um concerto dos Sex Pistols, Shelley e Devoto sabiam que tinham que ir vê-los a Londres. Estávamos em 1976, um ano antes do punk explodir. Voltaram a casa apostados em ser os Pistols de Manchester. E convidaram os londrinos a tocar na cidade. Foi nesse concerto – digno de figurar nos livros de história, também por semear as carreiras dos Joy Division, The Fall e Morrissey – que Shelley e Devoto conheceriam Steve Diggle, que se tornaria baixista e, mais tarde, depois da saída de Devoto (formaria os Magazine), o guitarrista dos Buzzcocks.
Não se tornaram os Pistols de Londres: seriam inventores de pleno direito, influenciando todos os que introduziram coração, melodia desavergonhada e brilho pop no punk rock, dos Hüsker Dü aos Nirvana, dos Pixies aos Green Day. Com mais ou menos pose estudada, os Pistols e os Clash apontavam o dedo acusatório para o mundo, os outros, o sistema; Shelley, o principal letrista, e Diggle preferiam olhar para dentro. Quando o apresentador de televisão Tony Wilson lhe fez uma pergunta sobre política, Shelley respondeu assim: “Penso que as pessoas precisam de uma nova maneira de viver – dentro de si mesmas.”
“Íamos a galerias de arte, líamos livros, de autores existencialistas e outros”, diz-nos Diggle. Na cabeceira tinham livros de gente como Dostoiévski, Camus, Sartre, Cervantes, James Joyce, coisas "pesadas”. “Sabíamos que o mundo era um lugar complexo. Isso infiltrava-se nas letras, um pouco. Fizemos as letras parecerem simples, mas, quando as analisas, são complicadas, pesadas, existenciais.”
Ser de Manchester, e não de Londres, também distinguia os Buzzcocks. “Foi muito importante porque em Londres era tudo mais show business, mais flash, mais estilo. Em Manchester, estávamos um pouco longe disso, era tudo mais interno. Viver em Manchester dá-te uma atitude diferente e uma perspectiva diferente de ver o mundo, com uma certa introspecção. É uma cidade de indústria pesada, não há muitas distracções cá fora, o que faz com que tenhas de olhar para dentro, para o que és. Isso reflecte-se nas letras: estes gajos estão a cantar sobre coisas que tenho dentro de mim.”
Trabalhar “era aterrador”
O punk era uma alegria que os impelia a agir. “As calças bondage da loja da Vivienne Westwood custavam 80 libras. Conseguias comprar uma casa com esse dinheiro [risos]. Nunca tínhamos visto 80 libras. Íamos à Oxfam e a outras lojas comprar roupa, rasgávamos as mangas… Lembro-me de comprar roupa por 30 pence. O meu irmão era artista, pintava frases nas t-shirts com spray”, recorda Diggle. A atitude faz-tu-mesmo levou-os a editar Spiral Scratch por conta própria, inspirando toda a cena de rock independente dos anos seguintes. “As pessoas põem barreiras na vida: não podes fazer isto, não podes fazer aquilo. Provámos que podes fazer coisas na tua vida. A chave é inspiração: inspirar as pessoas a fazerem o que querem fazer na vida, a sentirem-se vivos, a não serem um dos mortos-vivos.”
Em 1978, estavam 100% vivos. “Foi como se uma rajada de vento nos tirasse os pés do chão e lançasse para esta coisa. Deixamo-nos levar pela excitação do país e do mundo por esta música [o punk]. Tens de te lembrar que quando as pessoas ouviram esta música tiveram que repensar a sua consciência sobre o que a música lhes fazia. Esta música significou tanto na vida das pessoas, era excitante… Agora, as pessoas estão habituadas a este estilo, mas naquela altura incendiou o país e o mundo. Deixamo-nos ir. Não pareceu assim tão difícil fazer esses dois álbuns num ano. Por vezes, as coisas funcionam na vida: o sítio certo, o momento certo. Por vezes, tudo funciona de forma certa. Mas, pondo as coisas de forma simples, éramos uma óptima banda.”
Diggle promete continuar a tocar estas canções, enquanto Steve Diggle and the Buzzcocks: “As pessoas dizem-me: ‘tens que continuar’. Continuarei até que seja a minha vez de morrer. Tínhamos a mesma idade, ele [Shelley] era três semanas mais velho do que eu.” Os dois queriam ser “objectores de consciência ao trabalho” e conseguiram-no. “Não queria trabalhar, era aterrador para mim. Quando os Buzzcocks começaram, tinha 20 anos, salvaram a minha vida. As pessoas dizem que eu lhes salvei a vida através da música e desta banda, mas eles também me salvaram a minha.”
Diggle recorre a uma canção dos Buzzcocks, de Trade Test Transmissions, de 1993. Alive tonight, escrita por ele, reza assim: “When they asked me want I wanted to do/ What kind of job do you think we're due to/ I said I don't know/ I just want to feel alive tonight”. “Em vez de ir para um emprego de que não gosto, só quero estar vivo! Ver o céu, respirar o ar, ver as árvores. Não estou interessado na merda de um emprego. ‘Que tipo de emprego te assenta?’ Por que não me perguntas que tipo de pessoa sou? Não se pode definir uma pessoa pelo seu emprego. Há um mundo lindo e tu queres que eu tenha a merda de um emprego.”
Daqui Diggle salta para Ulisses, a obra-prima de James Joyce. E para a morte. “Ele escrevia muito sobre a morte. A morte dá-te o significado da vida. Sentir-se vivo no momento, como o Pete se sentia vivo durante os concertos dos Buzzcocks e nos discos. Temos momentos disso; noutros, esquecemo-nos que estamos vivos. Uma das coisas incríveis que fazemos é levar as pessoas a sentirem-se vivas por um momento. Se as ajudar a considerar coisas, como fez para nós, estamos no mesmo barco. Não temos as respostas, mas temos as perguntas.” E ri-se.