Há uma semana, nas páginas deste suplemento, João Mourão e Luís Silva, responsáveis do espaço do Kunsthalle Lissabon, a propósito da lista das melhores exposições de 2018 do Ípsilon, teceram uma série de considerações que mereceram a nossa leitura atenta e que não podemos deixar de comentar. De facto, a lista foi composta por um rol de exposições individuais realizadas por artistas homens (com a excepção de Ana Manso), todos portugueses, mas isso não isso significa, para responder aos dois curadores, que seja um retrato do país e das instituições que apresentam arte contemporânea. É uma lista de dois críticos que escrevem no suplemento Ípsilon, e que, certamente, será diferente das perspectivas de outros agentes (artistas, curadores, galeristas, outros críticos, directores de instituições, coleccionadores). Não tem de ser equilibrada, equitativa, representativa (em termos de quotas para cada género, etnia ou nacionalidade), como os dois autores reivindicam, a não ser que passemos a considerar estes critérios como imperativos, como fundamentais na sua formulação, existência e publicação.
Os dois curadores perguntam-se se a lista não permitirá concluir que os artistas portugueses, baseados apenas na sua nacionalidade, serão sempre melhores que os artistas não portugueses. Ora, esta pergunta carrega uma tese insustentável. Mais do que constituída de artistas homens ou portugueses é-o, acima de tudo, de exposições e obras. Escamotear essa realidade não é outra coisa senão reduzir sensibilidades, experiências e fazeres a uma nacionalidade; significa empobrecer, petrificar os discursos e as obras, depreciar aquilo que têm de particular para lá da origem nacional ou da geografia; há muitos Álvaro Lapas para além do Álvaro Lapa português. Neste contexto, um foco excessivo na nacionalidade, na etnia ou no género tem como contrapartida escurecer aquilo que é mais significativo e iluminador: as próprias obras de arte.
Mas regressemos às questões enunciadas por João Mourão e Luís Silva. O que querem os dois curadores advogar quando afirmam que “a lista das melhores exposições de 2018, tal como foi publicada, reproduz acriticamente, e pela enésima vez, estruturas de poder patriarcais e heteronormativas”? Ou que os críticos do Ípsilon excluíram metade das exposições, que, no dizer dos dois curadores, teriam como tema obras feitas por mulheres? O comentário tem o risco de fechar os mundos dos artistas escolhidos e as questões que colocam no interior de uma tematização que os empobrece, que os aprisiona. Não será pertinente ou apropriado considerar que as obras, compreendidas nas escolhas, possam transcender o sentido de palavras como heteronormativo ou patriarcal, sem deixar de os enfrentar ou complexificar? Ou estarão irremediavelmente aprisionadas no debate, nem sempre esclarecido, em torno das políticas de representação? A relevância no espaço público deste tema não está em causa, mas torná-lo o cerne da discussão em torno de uma lista das melhores exposições do ano e em termos que denotam uma impaciência excessiva não esconderá um reverso negativo?
E aqui identificamos uma insuficiência que domina o texto dos dois curadores. Ao sobre-avaliarem o conteúdo e o impacto das listas, estão (talvez inconscientemente) a subvalorizar todo o trabalho produzido ao longo de um ano, em reportagens, críticas, artigos; trabalho esse que corresponde a um acompanhamento possível, mas continuado, de uma pluralidade de artistas. Julgamos que seria mais produtivo deslocar a ênfase colocada sobre as listas, tão aguardadas e comentadas, para essa prática, comentando, discutindo os seus produtos numa relação sã e inteligente. A lista, pese embora o valor simbólico que detém (e que não podemos negar), é uma menor e periférica parte da nossa actividade, corresponde a uma síntese de gostos, predilecções, memórias, afinidades, juízos. Lida com condições objectivas e materiais, não é independente de circunstâncias, contingências, constrangimentos. Não temos a pretensão de afirmar que é indiscutível, imaculada, que reina soberana sobre todas das listas. É uma lista, não A LISTA (entidade porventura inalcançável) e insistir no contrário equivale a atribuir aos leitores a incapacidade de reflexão, de pensamento. Quando fazemos dela o pináculo de todo um ano de trabalho não estaremos a replicar a mesma falta de sensatez e espírito crítico que, a propósito da publicação de todo o tipo de rankings e avaliações, assola tantos comentadores, leitores e jornalistas? Desde quando uma lista das melhores exposições tem nela inscrita a ideia de que há melhores artistas que os outros?
Rejeitamos que a distribuição das melhores exposições do ano traduza uma rejeição da subjectividade das mulheres. Ou que tenha implícita a ideia de que as mulheres não tenham nada para dizer ou que as “jovens estudantes, as artistas ao lerem esta listas, independentemente do que façam, de como façam e para quem façam”, julgarão que os homens serão sempre melhores do que elas. Qualquer interpretação nesse sentido é abusiva para não dizer desonesta e, mais uma vez, torna invisível todo o trabalho realizado previamente. Parte da assumpção de que este tem como único e grande fim “uma lista”. E, lamentavelmente, exprime uma visão paternalista, dogmática sobre a interpretação que as artistas mulheres fizeram ou poderão fazer da lista.
Fazer contas no domínio das questões da arte é inusitado, mas recordamos, a título de exemplo, que das 10 exposições que a Kunsthalle Lissabon organizou entre Julho de 2009 e Maio 2011, apenas três foram de mulheres. É verdade que rapidamente, e fruto de um projecto assumido pelos dois curadores, as exposições seguintes corrigiram essa disparidade. Mas não é plausível interpretar nesses dois primeiros anos a influência das circunstâncias e da contingência semelhante àquela com que nos debatemos?
Continuando num exercício retrospectivo, considerámos A reserva das coisas no seu estado latente, de Fernanda Fragateiro, a melhor exposição de 2017 e, no ano anterior, uma instalação de Apichatpong Werasetankhul. Em 2015, a primeira posição coube a um colectivo (com Lourdes Castro no terceiro lugar) e em 2014 Ângela Ferreira foi um dos primeiros três nomes escolhidos. O olhar e a liberdade que presidiram a tais escolhas não desapareceram nos últimos dias de 2018. O que mudou, provavelmente nos dois últimos anos, foi a atmosfera social e política da sua recepção, nublando a memória de outras listas e de um trabalho que vai constituindo um património.
A lista do Ípsilon não é um projecto de curadoria e a nossa actividade não se norteia pelas questões da representatividade em termos de género, ou sequer de nacionalidade. Se deverá ter essas questões em conta num enquadramento aplicável a todo trabalho que desenvolvemos, corrigindo ou dirigindo a nossa espontaneidade, impondo-lhe prescrições, essa é outra questão. Uma reposta talvez possa vir a ser encontrada num equilíbrio entre o desejo de uma representatividade plural, digna e justa dos artistas e das suas obras, e aquilo que nunca pode estar em causa: a autonomia da nossa actividade. Em resumo, a nossa liberdade e espontaneidade face ao que encontramos nos espaços da arte. Não exclusivamente homens, mulheres, heterossexuais ou homossexuais, europeus ou não europeus, mas obras. Se as colocamos em segundo plano, em nome das melhores causas, estaremos a asfixiar o que elas têm para nos dizer, a enfraquecer a esfera pública que as devia proteger e tornar visíveis.