Regra europeia pode impedir Vale e Azevedo de voltar à cadeia
Em causa regime do mandado de detenção europeu que foi determinante para o Tribunal da Relação de Lisboa declarar prescritos crimes relacionados com alegado desvio de 1,2 milhões de euros em direitos televisivos do Benfica. Clube vai recorrer.
Uma regra prevista no mandado de detenção europeu dificulta e pode até impedir que o antigo presidente do Benfica, João Vale e Azevedo, volte à cadeia, apesar de já se ter tornado definitiva uma nova condenação a dez anos de prisão efectiva. Além deste processo, o antigo dirigente desportivo – que se encontra a viver e a trabalhar em Londres desde Junho passado – tem outros dois casos pendentes na justiça portuguesa, cujo desfecho se adivinha muito intrincado.
Foi num destes casos – que ia começar a ser julgado em Março – que o Tribunal da Relação de Lisboa declarou na semana passada a prescrição dos crimes, relacionados com um alegado desvio de 1,2 milhões de euros de direitos televisivos do Benfica.
A complicar o desfecho destes três casos está a norma que prevê que uma pessoa entregue em cumprimento de um mandado de detenção europeu “não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infracção praticada em momento anterior à sua entrega e diferente daquela que motivou a emissão do mandado”.
Esta regra pode ser afastada se o visado abdicar da protecção que ela confere ou se as autoridades judiciais que executam o mandado o autorizarem. Mas nenhuma das duas condições aconteceu. Tal é relevante porque o mandado de detenção europeu que levou as autoridades britânicas a entregar, em Novembro de 2012, Vale e Azevedo a Portugal, apenas se destinava a que este cumprisse uma pena de prisão de 11 anos e meio resultante da junção de várias condenações: processos "Dantas da Cunha", "Ribafria", "Ovchinnikov e Euroárea".
Logo não abarcava os factos analisados nos três processos que Vale e Azevedo tem pendentes nos tribunais portugueses. Isso é referido expressamente pela Relação de Lisboa relativamente ao caso do desvio de verbas relacionadas com direitos televisivos. E a advogada do presidente do Benfica, Luísa Cruz, garante que ocorreu igualmente nos outros dois casos: um já transitado em julgado e outro que a defensora não sabe em que fase se encontra já que formalmente o antigo dirigente desportivo nunca foi notificado, sendo representado por um defensor oficioso.
O princípio da especialidade
Foi, aliás, a questão desta regra europeia – conhecida como princípio da especialidade – que acabou por ser determinante para que a Relação de Lisboa declarasse a prescrição de um crime de peculato e de um de falsificação de documento pelos quais o antigo dirigente foi acusado em Julho de 2013 relacionados com o alegado desvio de 1,2 milhões.
Após a acusação, ainda em 2013, o Ministério Público ainda pediu às autoridades britânicas que ampliassem o mandado, permitindo que Vale e Azevedo fosse julgado por estes dois crimes. Mas tal foi recusado pelos tribunais ingleses em Maio de 2014, uma decisão confirmada em Março de 2015 pelo Supremo Tribunal do Reino Unido.
Foi, por isso, que entre Novembro de 2012 e Maio do ano passado – data em que Vale e Azevedo terminava de cumprir a pena de 11 anos e meio de prisão – o Juízo Central Criminal de Lisboa, onde corre o caso, considerou que “o procedimento criminal não pôde continuar em função do funcionamento do princípio da especialidade". A tal protecção a que Vale a Azevedo tinha direito no âmbito do mandado europeu e que só termina 45 dias após a extinção da responsabilidade penal.
Apesar disso, o juiz recusou-se a reconhecer os dois crimes prescritos já que considerou que como o tribunal não podia julgar Vale e Azevedo tal suspendia o prazo de prescrição do caso, cujos factos ocorreram entre 1997 e Maio de 1999. A Relação de Lisboa recusou-se a reconhecer essa suspensão, sustentando que tal não estava previsto em qualquer norma. E defendeu que a prescrição ocorreu 18 anos após os últimos factos em análise, em Maio de 2017. O advogado do Benfica, João Correia, não concorda e garante que vai recorrer para o Supremo.
Mas a advogada de Vale e Azevedo diz que mesmo que os crimes não prescrevam o julgamento não poderá ser feito, porque os tribunais inglesas não ampliaram o mandado. “Prova disso é que o juiz já me informou que vai notificar o meu cliente para dizer se se opõe a ser julgado na sua ausência”, afirma Luísa Cruz.
A advogada confirma que a justiça portuguesa emitiu mandados de detenção no caso da nova condenação a dez anos de prisão, mas assegura que ainda nada chegou aos tribunais britânicos. “E quando chegar, o pedido pode vir a ser rejeitado liminarmente, já que nas decisões anteriores sobre a ampliação do mandado os tribunais ingleses já consideraram ilegal a realização do julgamento, que decorreu na ausência do arguido, apesar de, nessa altura, ele estar preso em território nacional”, refere Luísa Cruz. A luta adivinha-se renhida nos tribunais portugueses e nos britânicos.