Lei de Bases da Saúde: que proposta defende melhor a saúde?
Adalberto Campos Fernandes preferia a proposta de revisão de Lei de Bases da Saúde que resultou da comissão liderada por Maria de Belém e que foi reduzida pela actual tutela, mas Ana Jorge acredita que a versão simplificada é melhor porque nesta fase "é preciso ser-se muito afirmativo e não ter medo de clarificar e separar as águas".
Governo, PCP, PSD e CDS debatem esta quarta-feira as suas propostas de Lei de Bases da Saúde. Deverão descer à especialidade, onde se juntarão à iniciativa apresentada no ano passado pelo BE. Das cinco, qual serve melhor a saúde que se quer para o país no futuro? Quatro ex-governantes deram a sua opinião ao PÚBLICO. Agora, a tarefa está nas mãos do Parlamento.
Adalberto Campos Fernandes: Lei deve alinhar “pelas necessidades das pessoas e menos pelas agendas políticas”
O ex-ministro da Saúde Adalberto Campos Fernandes diz que é possível encontrar nas cinco propostas “elementos de convergência para produzir uma Lei de Bases da Saúde de grande amplitude democrática”. Acredita “ser possível um consenso alargado” em torno de uma lei que tenha em conta a realidade que se vive em Portugal e na Europa.
O envelhecimento será um dos desafios. “Será necessário atribuir maior relevância às questões da saúde pública, da promoção da saúde através de um enquadramento que tenha em conta a transição demográfica, o peso da doença crónica, o papel crescente e decisivo da inovação terapêutica e tecnológica bem com a qualificação e a diferenciação profissional”, considera.
Sobre a proposta do Governo, Adalberto Campos Fernandes assume que “pessoalmente, teria preferido, que fosse a debate, no Parlamento”, a versão que resultou da comissão de revisão coordenada por Maria de Belém Roseira.
“Teria enriquecido o ponto de partida na medida em que permitiria uma abordagem mais integrada e racional do ponto de vista jurídico e político. A simplificação neste caso retirou valor”, afirma, considerando que “existe uma grande margem de progresso no trabalho parlamentar” para melhorar as diferentes propostas.
Para o ex-ministro, “o mais importante será alinhar a Lei pelo interesse concreto e pelas necessidades das pessoas e menos pelas agendas políticas conjunturais”. A melhor forma de defender o SNS, afirma, é apostar nos recursos humanos e na diferenciação profissional, em programas de investimento, modernizar as infra-estruturas e nos equipamentos.
“Neste contexto, será possível assegurar uma clarificação das relações de fronteira, entre os diferentes sectores, promovendo uma adequada separação sem excluir a cooperação que seja justificada pelo interesse público num quadro de uma gestão transparente, eficiente e criteriosa dos recursos disponíveis”, defende.
Óscar Gaspar: “Deve haver articulação entre os sectores público, privado e social”
O presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada e ex-secretário de Estado da Saúde de um governo socialista (de 2009 a 2011), Óscar Gaspar, considera que uma nova Lei de Bases da Saúde deve centrar o sistema no cidadão e fazer face aos desafios futuros do envelhecimento e inovação. “Uma boa Lei de Bases da Saúde é aquela que olha para o futuro e que cria condições para a sustentabilidade do sistema”, defende.
Questionado sobre qual das cinco propostas se aproxima mais desse objectivo, afirma que não quer entrar em guerras político-partidárias. Mas assume que a proposta do Governo lhe causa, e à associação que representa, preocupação, “porque tende a estatizar mais o sistema de saúde”. O ex-governante considera que “há uma tendência errada para confundir o que é a boa discussão, que é sobre a sustentabilidade, por uma discussão mais pequena e errada que é saber se a saúde dever ser pública ou privada”.
E defende que o crescimento do sector privado não tem tido efeitos negativos no SNS, como sugere a proposta do Governo. “Os factores de sucesso do privado têm a ver com a capacidade de investimento, as novas tecnologias, a acessibilidade que permitiram às pessoas. Os problemas do público têm a ver com o suborçamento, o subfinanciamento, o centralismo, o problema de gestão das carreiras”, diz.
“Entendo que deve haver articulação entre público, privado e social. Entendo também que o SNS deve ser forte, bem estruturado e é por isso que defendo orçamentos plurianuais. O privado e o social não podem ser vistos apenas como um mero apêndice que se liga ou desliga conforme uma necessidade pontual”, afirma Óscar Gaspar.
“Em muitos casos o privado ou o social pode dar aqui um aporte muito importante”, diz, dando o exemplo da rede de cuidados continuados, do programa de combate às listas de espera para cirurgia ou dos cheque-dentista. “Em vez de se estigmatizar o privado e o social, e dizer que só muito pontualmente se deve recorrer [a estes], seria uma aposta maior na sustentabilidade olharmos para as condições e recursos existentes no país e tirarmos o melhor proveito de cada um deles.”
Ana Jorge: “Nesta fase é preciso ser-se muito afirmativo e não ter medo de clarificar e separar as águas”
A proposta de revisão que o Governo apresentou “é a que melhor defende um Serviço Nacional de Saúde para todos os portugueses, apesar de ser evidente que há questões que têm que ser melhoradas”, acredita a ex-ministra da Saúde Ana Jorge. Na opinião da pediatra que foi ministra durante dois governos socialistas (entre 2008 e 2011), a versão apresentada pela comissão liderada por Maria de Belém era “muito grande e dispersa” e, “ainda que algumas áreas possam ser aproveitadas, nesta fase é preciso ser-se muito afirmativo e não ter medo de clarificar e separar as águas”.
Admitindo que há serviços prestados por entidades privadas no SNS que terão que se manter, a ex-ministra acentua, porém, que é necessário “melhorar a regulação” que se tem revelado insuficiente nesta área e que é “essencial” que “não se ponham os sectores públicos, privado e social em pé de igualdade” na nova Lei de Bases da Saúde. De resto, enfatiza, “não foi por acaso que associações [como a da hospitalização privada e outras] se manifestaram contra” a proposta do Governo, isso aconteceu “porque este filão começa a ser mais controlado”.
Quanto às parcerias público-privadas (PPP), Ana Jorge nota que “não é a [sua] essência que está em causa”, mas lembra que os serviços que devem ser instalados no país são "aqueles que são necessários para a população” e que, por isso, “é preciso ser-se firme”. “Não pode ficar nas mãos dos privados a decisão de abrir unidades que não estavam previstas” no planeamento inicial, defende, dando o exemplo do Hospital de Loures, que "abriu uma unidade de cuidados intensivos neonatais, o que ajudou a desestabilizar” a rede deste tipo de cuidados instalada nos hospitais públicos de Lisboa e Vale do Tejo. Na proposta de revisão do Governo, sintetiza, “dá-se pelo menos mais poder e fica mais claro que o Estado pode intervir, evitando este tipo de riscos e problemas”.
Ana Jorge acredita ainda que a nova Lei de Bases da Saúde irá “permitir abrir a área da intervenção a montante”, a da prevenção, de forma a permitir que "o tempo de dependência" das pessoas em idades avançadas seja “o menor possível”.
Paulo Mendo: Proposta de revisão de Maria de Belém é "peça jurídica que repõe SNS nos carris"
Sublinhando que conhece apenas a proposta de revisão da Lei de Bases da Saúde apresentada por Maria de Belém, com a qual concorda , o ex-ministro da Saúde de um Governo liderado por Cavaco Silva (entre 1993 e 1995), o social-democrata Paulo Mendo, defende que esta é “uma peça jurídica que repõe o SNS nos carris”. A proposta, enfatiza, "repõe em grande parte a responsabilidade estatal de cumprir, como deve ser, a Constituição” no que ao SNS diz respeito.
Paulo Mendo foi quem sucedeu, no Ministério da Saúde, a Arlindo de Carvalho, o ministro que aprovou a actual Lei de Bases da Saúde, em 1990. Por que não alterou, então, uma lei com a qual discordava? “Não podia mudar uma lei acabada de ser aprovada pelo meu antecessor. Era um pouco violenta e agressiva para os serviços públicos e para a responsabilidade que a Constituição nos impõe de desenvolvimento de um SNS universal e tendendo para a gratuitidade.Tive que evitar danos, usando-a o menos possível”, confessa. Em última análise, porém, sublinha, “se não houvesse a Lei de Bases de 1990, que atacava o SNS, eventualmente não seria necessária esta revisão, porque temos a Constituição”.
Mas a revisão agora em curso, frisa, é importante também porque surge numa altura em que se assiste a “uma tentativa de destruição do SNS". Um processo que já se arrasta há anos, recorda, "porque os princípios constitucionais estão a ser violados desde 2002”, altura em que os hospitais públicos foram “transformados em serviços autónomos” (sociedades anónimas e, mais tarde, entidades públicas empresariais, os actuais EPE).
Quanto à relação com o sector privado, Paulo Mendo nota que “um hospital privado recebe clientes e é financiado por accionistas”, o que é “completamente diferente do que acontece num hospital público”. Mas isto “não significa que não possam estabelecer entre si contratos”, ressalva. “Tem que haver uma forma de complementaridade, mas quem controla é sempre o Ministério da Saúde”.
Seja como for, o que é imperativo, na sua opinião, é "mudar de paradigma”. A proposta de Maria de Belém “começa a abrir juridicamente essa possibilidade, mas o que tem que mudar mesmo é a política”, recomenda.
Com Raquel Martins