A internacional mafiosa
O que temos agora no mundo é uma rede de líderes políticos que partilham, mais do que uma ideologia, a crença de que as regras que valem para o resto da sociedade não se aplicam a eles.
O sociólogo húngaro Bálint Magyar escreveu há uns anos um livro sobre aquilo a que chamou “o estado-máfia pós-comunista”, usando como exemplo o seu país. O estado-máfia, segundo ele, caracteriza-se pela presença de duas figuras simbólicas cimeiras: o autocrata e o oligarca. O autocrata é aquele que, como Putin e Orbán, dispõe de poder político visível e de poder económico invisível.
Putin é um dos homens mais ricos do mundo, mas a sua fortuna está nas mãos de figuras desconhecidas (por exemplo um amigo violoncelista que é misteriosamente multimilionário, como a investigação dos Panama Papers revelou). O oligarca é a figura-espelho do autocrata, pois dispõe de poder económico visível, e até ostensivo, mas supostamente não se mete em política, a não ser através da rede de apoio e dependência que estabelece com o autocrata.
A novidade que Trump introduziu neste estado de coisas foi ser ao mesmo tempo um autocrata e um oligarca. Chamei-lhe, à altura da sua eleição, o “autoligarca”. Ou seja, não só ele é um autoritário, como ele é o seu próprio oligarca favorito.
Donald Trump usa os seus hotéis para cobrar pequenas fortunas às delegações estrangeiras, por exemplo da Arábia Saudita, que aceitam de bom grado um esquema que não é mais do que uma espécie de suborno à luz do dia. A “guerra comercial” de Trump com a China voga aos sabores e dissabores da concessão de marcas registadas à família de Trump naquele grande país asiático. E ainda estamos para saber mais sobre o projeto de Torre Trump em Moscovo, que aparenta ter sido negociado com as autoridades russas em plena campanha eleitoral nos EUA.
Mas a analogia pode ser levada mais longe. Trump não é só um autoligarca. É alguém que se comporta, e se entende melhor, se analisarmos os seus gestos a partir do prisma que aplicaríamos a um chefe da máfia. Todos os dias saem análises de todo o género sobre um suposto enigma de Trump: análises geopolíticas, análises culturais, análises ideológicas.
Pergunta-se se Trump é previsível ou imprevisível, se é perigoso ou apenas ridículo, se ameaça o sistema internacional ou se se insere numa lógica de continuidade. E no fundo todo o enigma se dissipa, e a imprevisibilidade se entende, a partir do momento em que entendemos Trump como um chefe da máfia.
O Trump que diz para os aliados dos EUA “queres proteção? paga” é um Trump que aplica a lógica do extorsionista às relações internacionais. O Trump que ameaça sair da NATO ou até da ONU é como o mafioso que diz “que bela loja que tens aqui; seria uma pena se fosse destruída”. O Trump “imprevisível” é uma construção cuidadosa e assumida do próprio Trump, que já assumiu gostar de ser imprevisível porque a imprevisibilidade deixa o adversário em tensão permanente. E tudo isto é do mais previsível que há — se pensarmos Trump como pensamos num chefe mafioso.
Mas há mais. O que temos agora no mundo é uma rede de líderes políticos que partilham, mais do que uma ideologia, a crença de que as regras que valem para o resto da sociedade não se aplicam a eles. A revelação de que o clã Bolsonaro carreava dinheiro para si mesmo através de funcionários parlamentares, alguns dos quais por sua vez pertencentes a milícias de extorsionistas ou pior ainda, tampouco surpreende quando vista no quadro do estado-máfia, que já não é só pós-comunista, mas pós-capitalista, pós-moderno, pós-tudo.
Um dos aspectos mais interessantes da análise de Bálint Magyar é que ela permite explicar as guinadas ideológicas do autocrata que, de outra forma, baralhariam os observadores mais atentos. Orbán foi liberal antes de ser nacionalista e foi bolseiro de George Soros, e grande admirador deste bilionário de origem húngara, antes de ter decidido (sabe-se agora que em agosto de 2013, e aconselhado pela mesma empresa de propaganda política de Benjamin Netanyahu) fazer de Soros um génio do mal, numa caricatura a que não faltam elementos antissemitas. Também Putin é anticomunista uns dias, admirador de Estaline nos outros. Salvini foi comunista, federalista europeu, separatista anti-italiano, e agora é patriota italiano anti-europeu. E por aí adiante.
Se ainda não estou inteiramente convencido pelo argumento, a verdade é que é notório que toda a incoerência desaparece quando percebemos que o que interessa aos cabecilhas do estado-máfia é apenas dinheiro e poder. A ideologia é meramente a ferramenta para enganar incautos. A internacional nacional-populista é, em grande medida, a internacional vigarista. A “pátria acima de todos e Deus acima de tudo” é somente um atalho para usar a política como forma de enriquecimento pessoal e familiar. O vigarista sabe muito bem que só se enganam os incautos com aquilo que as pessoas prezam.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico