Onde estão as mulheres nos direitos humanos?
Para ser franco, há anos que estava convencido que “direitos humanos” era a expressão oficial em português. Não só politicamente correta. Historicamente correta. E, o que é mais importante, filosoficamente correta.
Na última crónica descrevi como a Conferência de Paris de 1919, que negociou os tratados de paz após a 1.ª Guerra Mundial, era praticamente apenas composta por homens. Algumas mulheres foram finalmente admitidas a partir da 12.ª reunião do comité para a criação da Sociedade das Nações mas, ainda assim, com participação limitada a debates sobre questões femininas ou das crianças. Passados alguns meses, um Congresso Internacional das Mulheres reuniu em Zurique e teve a clarividência que faltou aos homens da Conferência de Paris, condenando em termos claros as condições punitivas do Tratado de Versalhes. Dois anos mais tarde, numa nova reunião em Viena, as mulheres da Liga Internacional das Mulheres pela Paz e a Liberdade declararam que “os Tratados de Paz contêm neles as sementes de novas guerras” e pronunciaram-se por uma revisão dos tratados que fizesse do desarmamento e da reconciliação a sua prioridade. Infelizmente, não foram ouvidas.
A seguir à 2.ª Guerra Mundial houve ao menos algumas mulheres delegadas à criação das Nações Unidas. E as que lá estiveram fizeram a diferença. A mais célebre é, sem dúvida, Eleanor Roosevelt, que dirigiu os trabalhos da Comissão encarregada de redigir a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e que tomou a responsabilidade de uma decisão política crucial: preferir um documento mais amplo e ambicioso, ainda que apenas com valor moral, à inevitabilidade de se ficar com um conteúdo muito mais limitado — ou à possibilidade de não o ver aprovado — se se insistisse em tornar o documento legalmente vinculativo.
É menos célebre, infelizmente, a delegada da Índia, Hansa Mehta, uma pedagoga e política nascida em 1897 que já fizera parte do comité de redação da Constituição indiana. Não sendo uma redatora direta do primeiro esboço da Declaração, foi ela que conseguiu em fase de emendas ver aprovada a redação oficial original do Artigo 1.º da Declaração Universal: onde estava “todos os homens são criados iguais” (no esboço da versão inglesa) passou a ler-se como hoje, na tradução oficial portuguesa, “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. Foi também por ação de Hansa Mehta que a Declaração Universal dos Direitos Humanos se chama assim, e não dos Direitos do Homem (como ficou na versão francesa, por insistência do delegado da França, René Cassin). Estas duas alterações resolviam uma questão histórica de quase dois séculos: quando a Revolução Francesa aprovou a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, o feminismo moderno nasceu com as obras da francesa Olympe de Gouges e da inglesa Mary Wollstonecraft, ambas criticando os revolucionários por omitirem os direitos das mulheres e assim contribuírem para a preservação da desigualdade entre homens e mulheres.
Uma terceira mulher essencial para a história dos direitos humanos, e das próprias Nações Unidas, foi a única delegada de língua portuguesa à criação da ONU, a zoóloga brasileira Bertha Lutz. Foi ela que conseguiu, contra muitas dificuldades e incompreensões, que a Carta das Nações Unidas incorporasse a igualdade entre homens e mulheres como um objetivo fundamental da nova organização internacional, dos seus Estados-membros e, num sentido lato e moral, da humanidade como um todo.
Vem a isto a propósito de uma notícia de quinta-feira passada. Num comunicado, o Conselho de Ministros anunciou nesse dia ter sido “aprovada a resolução que adota a expressão universalista 'Direitos Humanos' por parte do Governo e de todos os serviços, organismos e entidades sujeitos aos seus poderes de direção, superintendência e tutela”, em “substituição da expressão 'Direitos do Homem' (...) como um passo no combate à desigualdade entre homens e mulheres”. Imediatamente nos comentários a essa notícia houve quem atribuísse essa alteração a uma inovação do famigerado “politicamente correto”. Para quem conhece a história que aqui esbocei, a reação só pode ser outra: só agora? Para ser franco, há anos que estava convencido que “direitos humanos” era a expressão oficial em português. Não só politicamente correta. Historicamente correta. E, o que é mais importante, filosoficamente correta.
Acima de tudo, “direitos humanos” não é uma inovação, porque está no sentido original da declaração. E lembrar esta história permite-nos registar a participação decisiva de mulheres como Eleanor Roosevelt, Hansa Mehta e Bertha Lutz no “momento cosmopolita” (como lhe chama a filósofa Seyla Benhabib) da criação da ONU e da redação da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Estas histórias são pouco conhecidas. Os Estados celebram em geral os seus ídolos e heróis, que são os ídolos e heróis da nação. Sobra pouco espaço para lembrar vidas exemplares ao serviço da humanidade. Ora, a história da redação da Declaração Universal já há muito que deveria ter entrado nos currículos das escolas de todo o mundo. Assim talvez se evitasse menosprezar como “politicamente correto” aquilo que simplesmente se escolhe ignorar.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico