Alquimista moderno à antiga

Desaparece a voz e a electrónica vintage ganha a dianteira, mas não é transformação radical. É Jacco Gardner a expandir habilmente o seu universo.

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Pode parecer uma mudança radical (o silenciar das vozes, arma onírica poderosa nos álbuns anteriores; a dianteira ganha pelos sintetizadores analógicos e pelas paisagens sonoras de pioneiros da electrónica). O terceiro álbum do holandês Jacco Gardner, autor de um psicadelismo deliciosamente barroco, criador de canções que habitavam cenários de conto fantástico e que mostravam o prazer pela liberdade e fantasia das imagens sonhadas da infância, pode parecer realmente uma transformação radical, caso a questão seja apresentada como na primeira frase deste texto.

Tal seria, de resto, apoiado pelo que regista a sua biografia desde que, em 2015, foi editado Hypnophobia, o segundo álbum, sucessor da estreia Cabinet of Curiosities (2013). Nestes últimos três anos, Jacco Gardner mudou-se da Holanda natal para Portugal, ajudou a reformar os W.I.T.C.H (We Intend to Cause Havoc), banda de culto do rock zambiano da década de 1970, cujos membros sobreviventes acompanhou em digressão, iniciou um duo de música electrónica chamado Bruxas e co-fundou em Lisboa o colectivo Electric Rainbow, dedicado a divulgar e transformar electronicamente música de raiz de vários pontos do globo. Somnium será, naturalmente, reflexo dessas mudanças na vida de Jacco Gardner e dos novos caminhos musicais que foi explorando. Mas o novo álbum, apesar de tudo isso, é tudo menos uma transformação radical ou uma fuga do lugar ocupado por Jacco Gardner até aqui.

Explorador do formato canção, estudioso da nação psicadélica pop (dos anos 1960 até aos nossos dias), Gardner mostra-se em expansão. Quando da edição de Hypnophobia, escrevíamos que o músico deixara de se preocupar com as estruturas convencionais de uma canção, passando a concentrar-se em “peças mais longas” (palavras dele), atraindo o ouvinte até si à medida que, “de uma forma muito subtil”, acrescentava instrumentos à mistura. Ainda temos aqui, de quando em vez, as guitarras acústicas, recorte folk, a servir de tapete sonoro sobre a qual a música floresce — é o caso de Volva —, mas elas surgem como elemento de passagem, qual flash prolongado a recordar-nos a origem primeira desta música.

O título do terceiro álbum de Jacco Gardner, gravado entre a Lisboa e a sua cidade natal de Zwaag, é todo um programa: Somnium (“Sonho”, em latim), escrito por Johannes Kepler no início do século XVII, descreve uma viagem até à Lua, as paisagens lunares e a Terra que dela se vê. É considerado uma das primeiras obras de ficção científica. Em Somnium não temos demónios a contarem-nos da proeza das suas viagens, mas encontramos música em viagem constante, em busca do equilíbrio perfeito entre electrónica ambiental expansiva e levitação space-rock.

A voz desaparece para que os sons se tornem a única palavra e, nesse processo, Jacco Gardner revela-se um mestre da linguagem: a produção acentua o calor instrumental quando baixo e bateria fazem a sua aparição e parece abrir-se ao espaço quando se caixas de ritmo vintage e sintetizadores analógicos desenham rastos de luz no céu. Vogamos de um ambiente para o outro e viajamos até que um ambiente se torne o outro, até que as fronteiras entre os dois, como em Rain, se diluam. A Terra que observamos lá longe e o solo lunar que pisamos (e vice-versa) tornam-se uma e a mesma coisa. O processo pode ser curto ou de duração prolongada (músicas de 1m30s convivem com peças de 7m), mas o efeito é o mesmo. O músico Jacco Gardner é um cenógrafo de talento, um alquimista moderno à antiga.

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