Quando as catedrais eram brancas
A cidade perdeu o monopólio da urbanização, entretanto, explodida em fragmentos, desfocando-se da geografia dos nomes e dos povoados com limites precisos.
As catedrais eram brancas porque eram novas. As cidades eram novas; construíam-se íntegras, ordenadas, regulares e geométricas, de acordo com planos preestabelecidos. Acabada de talhar, a pedra branca de França era resplandecente de brancura, como branca e deslumbrante tinha sido a Acrópole de Atenas, como, de granito polido e brilhante, foram as Pirâmides do Egipto. Em todas as cidades encerradas em muralhas também novas, o arranha-céus de Deus dominava o povoado em volta. Tinham-no feito tão alto quanto puderam, extraordinariamente alto. Era desproporcionado no conjunto. Não! Era um acto de optimismo, um gesto de coragem, um sinal de orgulho, uma prova de mestria! Ao dirigirem-se a Deus, os homens não assinavam a sua abdicação.
Começava um mundo novo. Branco, límpido, alegre, asseado, nítido e sem hesitação, o mundo novo abria-se como uma flor sobre as ruínas. Tinha-se abandonado tudo o que era costume fazer-se; voltaram-lhe as costas. Em cem anos cumpriu-se o prodígio e a Europa transformou-se.
As catedrais eram brancas.
(…)
Assim falou Charles-Edouard Jeanneret-Gris, Le Corbusier. Hiperbólico, radicalmente moderno e muito dado a extremos, a visão das catedrais góticas era a metáfora do acto extremo de refundação do mundo, do renascer de uma sociedade organizada, ordeira e feliz, acabada de se instalar em cidades novas, muralhas novas, ideias novas, tudo novo.
Agora, os viadutos são cinzentos. As cidades são velhas, perderam a forma e os limites, e a urbanização estende-se por territórios imensos ao sabor de acasos. Acabado de descofrar, o betão desvenda todo o seu rigor, como rigorosa tinha sido a Acrópole de Atenas antes de a saquearem, como, rigorosas e saturadas do suor de milhares de escravos, haviam sido as Pirâmides do Egipto. Por todo o território livre de obstáculos, a auto-estrada percorre distâncias sem fim. Grande e desproporcionada. Não! A sua construção foi um acto de optimismo, um gesto de coragem, um sinal de orgulho, uma prova de mestria. Perante a velocidade e o poder dos automóveis, os humanos entraram em modo vertiginoso.
Recomeçava o mundo novo. Pardo, fosco, de humor variável, preciso ou errático, esse ímpeto rompe pelo matagal como por vinha vindimada. Para trás ficaram os caminhos de pedras e as estradas tortas. Em 20 anos, cumpriu-se o prodígio e Portugal transformou-se.
Os viadutos não são brancos, são obras de arte por onde a luz penetra, acentuando claros e escuros, alinhamentos, pilares como lâminas, curvas suaves e precisas sobrevoando o chão incerto de onde a via descola para adiante pisar sobre um aterro, um socalco escavado, um túnel rompendo a montanha. Lá onde o caminho se retorcia, se empinava por rampas impossíveis, ou se precipitava íngreme pelas encostas, a auto-estrada impõe-se como uma superfície com razões e configurações próprias: nivelamentos, curvaturas e pendentes suaves, cruzamentos desnivelados…, tudo para o conforto e para a vertigem do mecanismo automóvel e de quem se faz por ele transportar.
A auto-estrada é um mundo à parte. Um dispositivo de distorção do espaço-tempo que a velocidade consente. O sobe e desce do caminho cede ao traço do viaduto ou do túnel pela ligação mais curta; à rugosidade do tempo contrapõem-se o ritmo constante e veloz. Com a auto-estrada, o espaço é mais relação do que forma. A proximidade e o afastamento deixaram de obedecer apenas ao sistema métrico e à mobilidade lenta. A geometria e a cronometria confundem-se quando, questionados acerca do lugar onde moramos, respondemos que será a cerca de dez minutos da saída da auto-estrada. É como se perguntássemos a alguém quanto tempo haveria ainda antes das cinco da tarde e outro respondesse que seriam uns 200 metros, se não houvesse contratempos.
Por isso as cidades já não precisam de se confinar dentro de muralhas, os prédios apinhados e os espaços exíguos. A cidade perdeu o monopólio da urbanização, entretanto, explodida em fragmentos, desfocando-se da geografia dos nomes e dos povoados com limites precisos. Diferentemente da cidade pensada como um lugar, a urbanização é um processo em modo contínuo — toma forma e lugar nas mais diversas circunstâncias e geografias —, depositando algures construções diversas e funções variadas, relações e ambiências, organizando-se nas mais variadas escalas, do local ao global, do micro ao macro. Os encontros na velha praça multiplicam-se por outros lugares e sites, presencialmente, por mensagens ou sinais remotos. Aquilo que na vida urbana só a proximidade, a diversidade e a aglomeração permitiam, pode-se agora espaçar por dezenas de quilómetros, pode-se dissipar pelo mundo todo, densificando-se ou dispersando-se, separando, como sempre, riqueza e pobreza, conforto ou privação; aproximando, misturando.
Muito estranho seria se perante tecnologias e próteses de tamanha novidade e poder, permitindo usos e funcionalidades tão distintas das que antes havia, a sociedade se organizasse da mesma maneira, reproduzindo os mesmos modos de se acomodar espacialmente, de se territorializar.
Pelo nó de um auto-estrada cruzam-se os mundos mais diversos, origens e destinos; constroem-se relações inesperadas; trocam-se informações e mercadorias; acontece tudo aquilo que antes se confinava no intramuros do burgo cercado. A auto-estrada e, por extensão, todos os sistemas sociotécnicos que suportam e organizam a mobilidade da informação, do capital, das mercadorias, das pessoas, da informação, da energia…, transformaram a geografia dos lugares numa geografia de relações que se pode cartografar de tantos modos e escalas.
Já não é possível subir à torre mais alta da catedral, olhar em volta e ver a cidade toda. A urbanização percorre-se, está por todo o lado.
1. Le Corbusier (1937), Quand les cathédrales étaient blanches. Voyage au pays des timides, Paris: Plon