Deixar o medo em paz
Não venham, aos que temos medo, explicar-nos que a aranha está mais assustada do que nós. Eu sei. E isso não adianta grande coisa.
Há algumas semanas cheguei a casa e tinha uma aranha na cozinha. Melhor: aquilo já não era uma aranha, pelos parâmetros lá de casa, mas algo que designávamos por “aranhão”. Adivinhei-a antes de a ver, porque o candeeiro da entrada iluminava parte da cozinha e entre as sombras percebi qualquer coisa a mover-se na parede, que, pelo tamanho e forma de andar, só podia ser uma aranha. Acendi a luz e lá estava ela. Aqui é a altura de vos dizer que desde que me lembro de mim que sou uma pessoa que tem medo de aranhas.
Na verdade, a nossa relação tem evoluído. Do pânico incontrolável da infância, que se arrastou até bem perto da idade adulta, resta agora uma aversão medrosa, já não totalmente incontrolável. E a primeira vez que me apercebi verdadeiramente disso foi nessa noite em que descobri o bicho lá em casa. Uns anos antes teria sentido o coração a acelerar, começaria a tremer e estaria já com suores frios a percorrer-me a espinha. Naquela noite, sozinha, não me assustei. Só demorei algum tempo (muito pouco) a matá-la. Porque há todo um processo que toma conta da cabeça de quem tem medo de aranhas. É óbvio que ela vai ser mais rápida do que eu e vai conseguir subir pela vassoura e aterrar-me no corpo antes de eu a conseguir matar; é óbvio que ela vai saltar para cima de mim se eu me aproximar demasiado; e é obviamente óbvio (assim mesmo) que, se não a matar, ela não vai simplesmente desaparecer, mas andar por ali à espera que eu adormeça ou esteja distraída para andar por cima de mim, me cair na cabeça ou algo igualmente horripilante.
Sim, eu sei. É uma parvoíce, não precisam de me dizer. Mas devem saber que não há racionalidade no medo. Ou adianta muito dizer-vos que a maior parte das cobras é inofensiva e que elas não são nada rugosas, mas sim macias e frescas, muito agradáveis ao toque? Ou, vocês, criaturas estranhas, que têm medo de palhaços — a sério? É só uma pessoa com a cara pintada, como é que se explica esse pavor? Não vale a pena. Não venham, aos que temos medo, explicar-nos que a aranha está mais assustada do que nós. Eu sei. E isso não adianta grande coisa.
De volta àquela noite, depois de fechar os restos mortais num saco de lixo, reforçado por um segundo saco, dei por mim surpreendida com a total ausência de ansiedade pelo que se tinha passado. E fiz aquilo que muitos de nós fazemos nesta era digital: partilhei a experiência numa publicação no Facebook. E é por isso que estamos aqui, a repetir aquele momento pouco agradável.
Primeiro, a maior parte das pessoas não percebeu a razão da publicação. Felicitaram-me por ter conseguido matar a aranha, conhecendo o meu medo. Não foi por isso que descrevi o que se passou. Eu já tinha matado aranhas antes. O que me surpreendeu foi a minha reacção a toda a experiência. A ausência da sensação de perda de controlo. O ter ficado tão serena depois de uma situação que, anos antes, me viraria a noite de pernas para o ar.
Depois houve duas pessoas que decidiram comentar a publicação com imagens de exemplares avantajados do bicho. A ambas enviei mensagens privadas a pedir que retirassem as imagens e ambas o fizeram. Não tinha sido por mal, era supostamente uma piada. Não teve graça. Nunca tem graça.
E esta é a razão pela qual estou aqui a revelar um medo de sempre. Se alguém que conhecem confessa ter medo de cobras, aranhas, centopeias, ratos, cães ou palhaços, não pensem que tem piada assustá-los, ainda mais confrontando-os com o objecto desse medo. Não vai ser divertido ou catártico encontrar uma cobra de borracha escondida num local que devia ser seguro ou atirarem-lhe com um rato de plástico para cima, fingindo ser verdadeiro. Sobretudo se forem crianças.
Não tenho a certeza sobre a origem do meu medo, mas na casa velha onde cresci havia muitas aranhas grandes e havia quem achasse piada a dizer-me, quando subia as escadas estreitas para o piso de cima: “A aranha vai-te apanhar.” Eu associo a origem do meu medo a isto, mesmo não sabendo se é verdade. Provavelmente, um pequeno bicho que eu não achava muito bonito ou simpático transformou-se assim numa fonte de receio, por ser associado a uma ameaça velada. E um dos momentos mais aterrorizadores da minha infância foi quando uma pessoa próxima, depois de matar uma aranha na parede da sala, fingiu que a atirava para cima de mim. Eu sabia que ela estava morta, mas isso não importava. Nunca tive tanto medo na vida como naquele instante.
Se calhar algumas pessoas ultrapassam estes medos irracionais transformando-os numa piada. Eu não. Para mim, o que ajudou foi o ter de lidar com a situação, por não haver mais nada que pudesse fazer. Não haver alguém por perto que resolvesse o problema.
Começou quando, a fazer Erasmus em Dublin e a dormir no chão do quarto de uma amiga, antes de ter arranjado casa, me vi sozinha, uma manhã, com uma aranha gigante bem ao lado do colchão em que dormira. Nem quero pensar por onde ela andou durante a noite, mas continuo a achar que alguém devia ter filmado o que se passou a seguir, comigo à beira das lágrimas, a falar sozinha, sem ser capaz de me mexer, sabendo que não conseguiria voltar a dormir ali se não matasse a criatura, mas incapaz de me aproximar o suficiente para o fazer. Acabei por a esmagar com a vassoura. Mas fui incapaz de pegar nos restos encarquilhados para os colocar no lixo. Ficou ali, no chão, até que uma das companheiras de casa, ao final do dia, tratou dela.
Estas coisas são parvas, precisam de tempo, e cada um encontra o seu próprio caminho para lidar com o medo. Mas nós, os que temos estes medos idiotas e irracionais, não precisamos de que nos ridicularizem por causa deles. Sejam simpáticos e compreensivos. Nós sabemos que isto não faz sentido. E esperamos que qualquer dia passe ou se transforme ao ponto de conseguirmos lidar com eles. Um bocado de simpatia e compreensão pode fazer maravilhas neste processo. Bem mais do que atirarem-nos com o nosso medo à cara.