“Hoje temos uma espécie de balcanização a ocidente”

Jaques Rupnik é professor de Ciência Política, discípulo de Pierre Hassner, investigador do CERI, leccionou em Harvard, foi conselheiro de Václav Havel, escreveu a obra seminal de 1990 L’autre Europe – crise et fin du communisme e, mais recentemente, Les Banlieues de l’Europe, entre uma vasta obra publicada. A crise da democracia liberal é o seu mais recente objecto de estudo.

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De Budapeste a Varsóvia, de Orbán a Salvini, dos gilets jaunes ao “Brexit”, Jacques Rupnik, politólogo francês de Sciences Po, grande especialista da “outra” Europa, mas também da crise do liberalismo e do regresso do nacionalismo, leva-nos numa viagem aos lugares onde se joga hoje o futuro da integração europeia e das suas democracias. “A Europa reencontrou o sentido trágico da História”, deixou de poder “sair” dela. O mito da prosperidade acabou. A geopolítica regressou. A europeização das periferias transformou-se em importação de instabilidade. Algumas democracias entraram em regressão. Se o Norte e o Sul e o Leste e o Oeste não perceberam que têm um interesse comum, o declínio é inevitável. Esta é a primeira de uma série de dez entrevistas sobre a Europa e o Presente que serão publicadas semanalmente no P2.

Escreveu recentemente que “um espectro ensombra a Europa, o espectro do nacionalismo”, invocando a célebre frase com que começa o Manifesto do Partido Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels. Nesse ensaio, chama a atenção para que este espectro não se confina apenas à Europa de Leste, mas a toda a Europa, definindo-o como um combate entre a democracia iliberal e o liberalismo. O que há de comum e o que há de diferente?
Podemos começar pelas diferenças. Há especificidades no Centro e no Leste europeu e, mesmo aí, há percursos políticos diferentes. Há a dupla Orbán-Kaczynski [o primeiro-ministro húngaro e o ex-Presidente polaco] que se reivindica abertamente pela rejeição da democracia liberal, declarando-se ambos como os representantes do povo soberano, que se exprimiu, dando-lhes uma maioria que interpretam como um voto para ignorar os constrangimentos constitucionais. É um problema europeu na medida em que, quando rejeitam o Estado de direito, isso tem implicações imediatas na União Europeia, que assenta justamente num princípio segundo o qual as regras são iguais para todos. Quando rejeitam a democracia liberal e o Estado de direito, isso quer dizer que são eles que controlam a Justiça, que não existe separação de poderes.

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Há ainda um segundo elemento. “Não é apenas a soberania do povo que me dá a possibilidade de ignorar as regras constitucionais, mas também a soberania nacional.” Representam o povo e a nação, que definem como uma realidade étnica: a nação dos húngaros; a nação dos polacos. “Eu, Orbán, sou o defensor da soberania da nação” face aos “invasores externos”, que são os imigrantes, ou face às “intromissões” de Bruxelas, da União Europeia. A campanha eleitoral de Orbán foi feita com cartazes onde se lia “Stop Bruxels”. Há outras variantes de populismos, que parecem mais benignas, como as que podemos observar na República Checa, uma espécie de “populismo empreendedor” — um homem de negócios que teve sucesso, que comprou os media e que depois se lançou na política.

Um pouco como Berlusconi.
Sim. E como Donald Trump, também ele um empresário de sucesso nos negócios que se torna um empresário político. O actual primeiro-ministro [checo] começou por criar um movimento a que chamou “Sim”, embora sem nunca dizer sim a quê. Apresenta algumas receitas simples sobre como gerir a política e algumas ideias ainda mais simples: o Parlamento é um clube de falatório, enquanto ele é um “fazedor”, um homem de acção. O Estado deve ser gerido como uma empresa, sem burocracia e com eficácia. Não é propriamente o ideal para o pluralismo democrático, mas é diferente do modelo Orbán-Kaczynski.

O grande problema é que o soberanismo populista se define a partir do monopólio da representação do povo. Orbán fala disso constantemente: nós temos a maioria e, por isso, falamos em nome do povo e da nação. Neste discurso deixa de haver lugar para o pluralismo. O seu exercício põe em causa o Estado de direito, mas também a liberdade dos media. Foi o que aconteceu na Hungria. De uma assentada, o audiovisual público ficou sob controlo do Governo. Na Polónia, há ainda alguns jornais privados com significado e até uma cadeia de televisão privada. Na Hungria, já não.

Mas o assalto à democracia liberal, ainda que num estado avançado nesses países, não lhes é exclusivo.
Não, seria demasiado fácil concluirmos que se trata apenas da velha divisão Leste-Oeste e que esses países ainda não compreenderam bem o que é a democracia. Esta é a melhor maneira de não querer ver o problema. O que é paradigmático e paradoxal é que esta regressão democrática acontece nos países que tinham sido os casos de maior sucesso da democratização e foi justamente por isso que entraram na União Europeia. Como se lembra, tínhamos essa visão de que a simples entrada na União Europeia era a ancoragem irreversível à democracia.

E hoje verificamos que não é assim: que a europeização não foi sinónimo de democratização.
Exactamente. Que pode haver uma regressão democrática no seio da União Europeia. Não era o fim da História, porque a História não tem fim.

E são precisamente os dois países com maior sucesso — Polónia e Hungria.
Que são os portadores desta regressão. Quando olhamos para o que se passa na Europa e fora dela, percebemos rapidamente que esta ideia de que é a velha divisão que regressa é insuficiente. O que se está a passar com o “Brexit”, na Itália, na Áustria, mostra que não é um problema da periferia pós-comunista. Descobrimos que o problema existe também no seio da União Europeia, ainda que haja graus muito diferentes. Aliás, Orbán e Kaczynski não se enganaram: foram os primeiros a saudar a eleição de Trump.

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Viktor Orbán LASZLO BALOGH/Reuters

Que grande dia”, disse Orbán.
Compreendeu que era uma forma de legitimação. Se até os dois países que representavam a pedra angular da democracia liberal ocidental — a Grã-Bretanha e os EUA — voltavam a defender a soberania nacional, então “nós somos a vanguarda”. Trump foi recebido euforicamente na Polónia, como um herói, e retribuiu fazendo um discurso no qual saudava a Polónia como o último da defesa dos valores conservadores e cristãos.

Mas as sociedades do Leste e Oeste continuam a ter diferenças importantes, por exemplo, sobre a diversidade étnica e cultural, mesmo com os problemas levantados pela imigração.
Foi um catalisador para tornar o discurso nacionalista muito mais explícito. O que era implícito antes, com a crise migratória, Orbán e Kaczynski puderam dizer abertamente: nós somos os protectores da nação; nós defendemos que as nossas sociedades devem fechar-se aos imigrantes, sobretudo islâmicos.

E assumiram-se como os defensores da cristandade.
Sim. Mas vão ainda mais longe, porque transpõem o discurso da protecção da nação para a escala europeia. A sua narrativa não é à toa, quando invoca a protecção da nação contra a invasão islâmica que chega pela via otomana. Foi pelos Balcãs que os turcos chegaram lá no século XVI, quando a capital teve de se mudar para outra cidade, que hoje se chama Bratislava. É preciso saber isto para se perceber até que ponto o discurso ressoa na mente das pessoas. “Nós temos de travar a invasão que regressa pela via otomana.” Conseguiram construir uma narrativa sobre a imigração à volta desta ideia da protecção da nação, mas também da protecção da Europa, porque historicamente foram eles a barreira à conquista otomana. “Fomos nós que protegemos a Europa cristã e hoje voltamos a desempenhar esse papel.”

Acusam-nos de sermos da extrema-direita? Não, apenas nos reclamamos dos valores tradicionais e conservadores: a família, a nação, a Igreja. E ainda bem que o fazemos porque os conservadores europeus, aqueles que o deveriam fazer, abdicaram do seu papel. Olhem para os alemães da senhora Merkel: adoptaram o casamento gay, defendem o multiculturalismo, transformaram-se num partido centrista, deixaram de ser conservadores. Nós somos os defensores da Europa cristã, não apenas porque defendemos as suas fronteiras, mas porque defendemos os seus valores nacionais conservadores.

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Mais ou menos como a CSU (centro-direita). Esse discurso tem também cultores na Europa ocidental.
Evidentemente. Não é apenas a crítica ao Estado de direito e ao liberalismo político. É a crítica à abertura aos imigrantes e ao liberalismo societal — tudo o que diga respeito à família, à Igreja, aos valores. Aborto, casamentos gay, multiculturalismo, tudo isso é o resultado do liberalismo cultural e societal do Ocidente, que deve ser combatido para contrariar uma Europa decadente, sem vontade, que se decompõe.

Saiu agora um livro de um autor polaco, professor de Filosofia Política mas também deputado europeu, intitulado A Tentação Totalitária, que é uma espécie de eco do livro de Jean-François Revel com o mesmo título. Para Revel, a tentação totalitária era o comunismo e o estatismo, criticando os que abandonavam a sua liberdade em troca de um Estado protector. O professor polaco diz que a hoje nova tentação totalitária é o liberalismo, que quer fazer o mesmo que o comunismo — dissolver a família, a nação e a religião.

Em síntese, há três frentes de ataque ao liberalismo: o ataque ao Estado de direito; a recuperação da nação étnica; e o combate ao liberalismo societal. As três frentes são mais visíveis a leste, porque essas sociedades tiveram histórias diferentes das ocidentais.

Depois da I Guerra e depois da II Guerra.
É uma outra dimensão do que se passa lá. A ocidente cada um tem o seu imperialismo, mantendo velhos laços com as antigas colónias, com as respectivas fileiras migratórias — os holandeses, os franceses, os britânicos, os portugueses. Eles dizem: nós nunca colonizámos ninguém, pelo contrário, fomos colonizados. Pelo último império colonial, que era a União Soviética — e, antes, por outros, como o Otomano e os Habsburgos — e agora querem impor-nos uma nova colonização.

A europeia.
No final dos anos 1980, os países ocidentais compraram tudo, o que de algum modo era inevitável: não se pode construir o capitalismo sem capital e eles não tinham capital. O capital veio do Ocidente. E com ele vieram os grandes centros comerciais, onde se vendiam os produtos produzidos pelo Ocidente. Vieram os bancos. E tudo isto foi feito sob a égide da União Europeia, que vêem como uma potência tutelar, que lhes diz o que podem ou não fazer e quais são as regras. Olham-na como um neocolonialismo soft. É o termo que eles utilizam. E não se pense que são marxistas anticapitalistas que dizem estas coisas. São sobretudo os partidos de direita que recuperam um discurso pós-colonial e que defendem que é preciso resistir-lhe. Foram vocês que bombardearam a Líbia, são vocês que têm de receber os refugiados e os imigrantes. Foram vocês que colonizaram a África no século XIX, é da vossa responsabilidade receber os imigrantes desses países. Simplificando um pouco, eles pensam que devemos ser punidos pelos nossos pecados históricos. E vêem-se a si próprios como as vítimas. Vítimas da História — nomeadamente de terem ficado do lado errado depois da II Guerra — e consideram que os países da Europa ocidental nunca quiseram saber do seu destino. São vítimas e são incompreendidos. Angela Merkel recebeu os refugiados simplesmente para expiar os pecados da Alemanha.

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O seu discurso é também fortemente contra Berlim, não apenas contra Bruxelas.
Porque Berlim representa a maior potência económica e a potência política cada vez mais dominante nos últimos anos. De resto, não são só eles que acham que a crise migratória resultou de uma decisão unilateral da Alemanha, fazendo da Alemanha o porta-estandarte do discurso sobre a abertura: a Europa são os Direitos Humanos e, em seu nome, nós devemos abrir as nossas fronteiras para aqueles que são perseguidos. Eles dizem: “Nós defendemos a cultura e a civilização europeias”; Merkel diz: nós defendemos os Direitos Humanos.

A ironia está em que eles transpuseram o discurso sobre a nação para o nível europeu, mas foram buscar esse discurso aos alemães no século XIX. Era a definição alemã da nação. A nação é a língua, a cultura, religião. A definição francesa é outra: é o Estado que constrói a nação. Para os alemães, é a nação que constrói o Estado. Os europeus de Leste adoptaram este modelo, transpondo-o para a escala europeia — uma Europa que se define como cultura, como civilização, que se protege dos outros. No momento em que adoptam o modelo alemão, a Alemanha diz-lhe que mudou de modelo. Hoje, os turcos podem ser cidadãos alemães.

Mas há um traço comum: que a Europa dita as suas leis sem se preocupar com as realidades nacionais. A democracia sai mal.
Sim. Há um ressentimento geral contra a Europa, mas também porque imputamos à Europa os fracassos dos governos nacionais. Se não conseguem pôr em prática uma determinada política, não é porque não tivessem boas intenções, é porque os constrangimentos europeus não lhe permitiram. É o que ouvimos hoje, por exemplo, aos socialistas franceses, para justificarem as suas perdas. Mas isso ouve-se um pouco por toda a parte.

Mas as pessoas sentem que o seu voto serve de pouco. É, pelo menos, essa a sua percepção.
Em alguns casos, é compreensível. O caso extremo é a Grécia. Os gregos votaram no Syriza porque era contra a política europeia. O Syriza chegou ao poder e disse-lhes que ia fazer um referendo. Eles votaram pela segunda vez contra a política europeia. Mas tiveram de aplicá-la na mesma. É evidente que há aqui um problema de democracia. Não me pronuncio sobre o mérito das políticas em si, mas se se vota contra uma coisa e, mesmo assim, se é obrigado a aceitá-la. Mas a Grécia foi um caso extremo.

Matteo Salvini disse a mesma coisa sobre o orçamento que enviou para Bruxelas: é o orçamento de Itália, não é o orçamento de Bruxelas.
Pois, mas um e outro compreendem que fazem parte do euro e que, se quiserem continuar no euro, têm de obedecer a um conjunto de regras. E também sabem que a opção pela saída do euro teria um custo enorme para as pessoas que dizem representar. Além disso, muita gente começa a dizer: olhem para Espanha e para Portugal, que enfrentaram uma situação extremamente dura e que conseguiram vencê-la dentro da zona euro. Não é possível reduzir o discurso a dizer que é tudo culpa do euro ou de Bruxelas. A Grécia era um problema grave mas uma pequena economia. A Itália é uma grande economia, um país fundador, uma crise séria no coração da Europa.

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Jacques Rupnik: "A estratégia de Salvini é fazer explodir a Europa" RICCARDO ANTIMIANI/Reuters

Onde vemos algumas manifestações de populismo idênticas ao que se passa na Europa central: contra Bruxelas e contra os imigrantes.
A Itália tem a particularidade de combinar os problemas que são próprios do Leste e do Sul. Os problemas do Sul que resultam da crise financeira e da crise do euro. Os problemas do Leste no que respeita à imigração. Mas a Itália, é bom lembrar, esteve na primeira linha da chegada dos refugiados quando a via da Grécia e da Turquia ficou bloqueada e os migrantes se deslocaram para a Líbia e passaram a atravessar no Mediterrâneo central. A Europa não ajudou. Resultado? A Itália foi arrastada por este duplo ressentimento em relação a Bruxelas e à Europa — sobre a economia e sobre a imigração.

Há tipos diferentes de populismo?
Antes, poderíamos dizer que havia dois tipos de populismo: o do Sul, do tipo Podemos ou Syriza, que era de esquerda e que não era antieuropeu, embora contestasse as políticas europeias; e um populismo do Norte, que era essencialmente contra a imigração, de direita, que defendia o encerramento das fronteiras. A Itália combina os dois.

Mas o Syriza, por exemplo, levou o sistema político a pôr-se em causa, e o Podemos forçou o PSOE a abrir os olhos — nos dois casos com resultados que não são negativos para as democracias. É verdade que o Syriza demoliu o PASOK, mas também evoluiu muito. Não estou a fazer o elogio do Syriza, mas devo reconhecer que o populismo de esquerda talvez possa ser compatível com a democracia europeia e que pode até levar a uma transformação útil do sistema político. Já os populistas de direita, com o seu discurso contra a Europa, xenófobo e soberanista, são um caso mais complicado. Vamos ver até onde estão dispostos a ir. A Áustria mostra-nos uma variante interessante: a direita juntou-se à extrema-direita. Sebastian Kurz está com a extrema-direita sobre a imigração, mas quer continuar no euro e na Europa, quer preservar uma direita eurocompatível. A estratégia de Salvini é, pelo contrário, fazer explodir a Europa.

De ruptura?
De ruptura. Orbán não quer sair da Europa, não quer o “Brexit” húngaro. Creio que Salvini quer dinamitar a paisagem política europeia e pensa que a crise actual e a crise migratória, em particular, criam as condições ideais para isso. E há outras coisas que não podemos ignorar. Há um descrédito nas elites políticas e um descrédito na própria Europa que lhe abrem espaço para tentar cavalgar a onda, até porque conta agora com muito mais aliados na União Europeia. Vai jogar tudo nas eleições europeias, que vê como uma grande oportunidade.

Entretanto, muita gente acreditou que Emmanuel Macron podia ser a resposta a estas tendências populistas e nacionalistas. E eis que entram em cena os gilets jaunes. A resposta de Macron ainda vai a tempo?
Há três momentos nessa resposta. Uma primeira tentativa de desactivar ou de neutralizar o movimento, quando Macron anunciou medidas equivalentes a 10 mil milhões de euros a favor das camadas sociais mais desfavorecidas, duas ou três semanas depois do início das manifestações. Foi uma espécie de “je vous ai compris”. Há um problema real que é a fractura social ao qual eu respondo com uma série de medidas fiscais e orçamentais. Rapidamente se percebeu que não estava a ter o efeito desejado. Houve uma segunda tentativa, num registo diferente, no final de Dezembro, que se centrou no apelo à ordem. A violência é inaceitável, há outras formas de protestar, não vamos tolerá-la. Também não teve resultados. Estamos agora numa terceira fase, que é o “grande debate democrático”, cuja ideia é dizer: vocês contestam o funcionamento das instituições, da democracia, criticam o poder confiscado pelas elites; pois bem, vamos discutir isso tudo, sem tabus. Mas hoje também se verifica que o movimento já perdeu uma parte da força e da sua audiência. São menos numerosos, mas talvez mais radicais.

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"Angela Merkel recebeu os refugiados para expiar os pecados da Alemanha"

Crê que esta terceira fase pode resultar nalguma coisa de novo?
É difícil de prever. Creio que, para o núcleo duro dos gilets jaunes — os que se manifestam todos os sábados e que caíram claramente para o lado da violência — será difícil. Mas é preciso perceber que esta violência não é igual às outras, como se dizia inicialmente: os bons gilets jaunes, abandonados pela sociedade, vítimas da mundialização, etc.; e os maus, que se aproveitavam deste movimento. Descobriu-se, nas prisões que foram feitas depois das manifestações, que, embora houvesse militantes de extrema-esquerda e de extrema-direita, mais os segundos de resto, que uma grande parte das pessoas presas, por exemplo nos actos de pilhagem, eram gente comum que nunca tinha participado em manifestações ou em partidos políticos. Deve manter-se a distinção entre o movimento e os casseurs, mas não é só isso. Os gilets jaunes perceberam muito bem que o seu eco nos media e a atenção constante da sociedade se devia apenas ao facto de manterem um elevado nível de violência. Compreenderam que havia uma correlação muito forte entre o ritual dos sábados e a atenção dos media. Perceberam que ocupam as cadeias de televisão em contínuo justamente porque praticam a violência.

Isso representa uma forma nova de se contestar nas democracias sem resposta fácil.
Sim. Em democracia, a forma de resolver os conflitos é a negociação. Mas como negociar com gente que rejeita qualquer representação? Eles eliminaram imediatamente aqueles que, numa ou noutra altura, quiseram arvorar-se em porta-vozes. Em segundo lugar, como iniciar uma negociação com um movimento cujas reivindicações são um catálogo absolutamente diverso em que cabe praticamente tudo, incluindo coisas que são absolutamente contraditórias entre si? Foi talvez para contornar este problema que Macron lançou o seu grande debate. Neste momento, o único sítio onde pode haver algum diálogo são as mairies [câmaras municipais], com presidentes que são democraticamente eleitos e que são, aliás, o pessoal político que, em França, recolhe maior confiança por parte dos cidadãos. Foi uma escolha inteligente de Macron, mas é uma descoberta tardia do Presidente, que tinha ignorado os municípios — é este, de resto, o outro aspecto importante do debate actual.

Não há intermediários?
Há muitas causas para os gilets jaune, mas uma delas é o desaparecimento dos corpos intermédios — sindicatos, patrões, associações profissionais, mas também câmaras, que são os mediadores entre os cidadãos comuns e o sistema político. Macron desdenhou-os ao ponto de se recusar a participar no Congresso dos Maires da França e reduziu os seus meios financeiros. Escolher agora as câmaras é uma coisa boa. Não haver temas tabu também é. Aliás, Macron participou agora [na semana passada] no primeiro debate numa câmara da Normandia, que durou sete horas. Esteve sete horas de pé numa sala completamente apinhada de gente comum, mas também pelos chamados “notáveis locais”. Diz-se que se saiu muito bem. Mas estamos ainda perante o início do processo e a maior dificuldade, penso eu, vai ser ultrapassar o cepticismo reinante perante a política e perante as elites políticas.

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Macron entre presidentes de câmara, em Souillac, sul de França

Mas há temas que provavelmente vão destacar-se.
Sim. Temos a questão da fiscalidade e um conjunto de problemas sociais ligados ao que podemos chamar de classes médias baixas, que sofrem um pouco por toda a parte no contexto da mundialização. E que não são diferentes das pessoas que votaram pelo “Brexit” ou que alimentaram o Tea Party na América. É o mesmo perfil de pessoas, acompanhado pela mesma rejeição das elites políticas, pela rejeição do peso dos impostos e da sensação de que o dinheiro resultante do crescimento vai não sabem bem para onde, mas nunca para elas. 

O que surpreende é que este movimento emergiu subitamente do nada. Com características muito diferentes das habituais manifestações francesas contra as reformas.
Ninguém estava à espera, é verdade. No início, era apenas contra uma taxa ecológica sobre os combustíveis, preparada por um ministro demissionário, Nicolas Hulot, que viria a abandonar o Governo depois de a ter imposto ao Governo. Foi o catalisador ao qual se juntaram depois muitas outras reivindicações. Mas foi também um revelador. Descobriu-se que uma parte desta população que não faz parte dos mais pobres da sociedade, a referida classe média baixa, que trabalha, que faz 30 ou 40 quilómetros para ir trabalhar porque, nos sítios onde vivem, os transportes públicos são mais raros.

Não há metro à porta.
É, aliás, interessante verificar este contraste absoluto. Em Paris, a moda entre os BoBo [designação dada a uma parte das elites citadinas: “Bon chique, Bon genre”] é não ter carro. Eles podem dispensá-lo porque dispõem de uma rede de transportes eficaz. Para as pessoas das cidades, a questão política mais importante deste século são as alterações climáticas e o ambiente. Do outro lado, há este movimento que não tem o mínimo interesse pelas alterações climáticas e que apenas diz: eu preciso do meu carro para ir trabalhar, levar os filhos à escolha e ir fazer as compras do mês à periferia.

Há dois mundos?
Há dois mundos. A França urbana das grandes cidades que é bastante próspera, e a França periférica. Mas o que deixou as pessoas ainda mais espantadas não foi tanto o carácter súbito do fenómeno, que ninguém previu, mas esse ódio, essa cólera que se exprimiu espontaneamente e sem disfarces. E esta raiva às elites é nova. Uma raiva que atinge as elites políticas, mas também as instituições, que exige a dissolução do Parlamento e que se exprime contra um Presidente que foi eleito há menos de dois anos. Embora seja preciso pôr as coisas na sua dimensão. Hoje, é um movimento que reúne 50 mil a 60 mil pessoas num país de 66 milhões. O que eles conseguiram, através da violência, foi ocupar o espaço público e isso é completamente novo.

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E aparentemente não há mecanismos institucionais para lhes responder.
Outra coisa muito importante. Normalmente, quando há uma crise como esta numa democracia, as pessoas viram-se para a oposição. Em 1997, o Presidente Chirac, confrontado com uma greve gigantesca contra as reformas da segurança social e pensando que estava a ser muito hábil e que tinha a maioria da sociedade com ele, dissolveu a Assembleia e convocou novas eleições.

E perdeu.
O importante não é o facto de ter perdido, mas antes que havia outro partido, o Partido Socialista, com soluções diferentes, que ganhou. Ele perde, mas tem diante de si um PS que é a alternativa, que tem um programa e que diz aos eleitores: votem por nós, que temos ideias diferentes.

Hoje não.
Hoje ninguém pode dissolver a Assembleia, a não ser alguém que queira dar o poder a Marine Le Pen. Basta olhar para as sondagens para ver que nenhum outro partido conseguiu beneficiar com os gilets jaunes. Nenhum. Os republicanos, que estavam em 10%, continuam aí. Os socialistas mantêm-se à volta de 6%. Além disso, ninguém os ouve. Desapareceram. Neste contexto, se a opção fosse eleições legislativas, não haveria qualquer alternativa.

A não ser Le Pen.
Nem isso. Ela pode ganhar as eleições, mas não tem meios para governar. As sondagens não chegam a dar-lhe 25% [um pouco mais do que na primeira volta das presidenciais], o que não garante, muito longe disso, a maioria. E o seu partido não representa uma alternativa de Governo. Aliás, a República em Marcha mantém os 24% de intenções de voto [que Macron conquistou na primeira volta das presidenciais de 2017]. Por isso, o grande diálogo nacional, por um lado, e as eleições europeias, por outro, surgem um pouco como a saída possível para o Governo. Querem resolver os novos problemas que foram negligenciados? O grande debate oferece-vos a possibilidade de os levantar. Querem exprimir-se através do voto? Em três meses haverá essa oportunidade nas eleições europeias.

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Macron sai pessoalmente muito fragilizado.
Tem um trabalho difícil pela frente porque tem de admitir que cometeu erros. Macron não gosta nada disso. Está a fazê-lo agora progressivamente, já admitiu que se enganou. Creio que cometeu um erro ao concentrar demasiado poder no Eliseu, não deixando espaço ao seu primeiro-ministro. Na V República, a vantagem de um primeiro-ministro é que ele resguarda o Presidente e é sempre uma válvula de escape.

Não é esse o estilo de Macron.
Não. Macron quis gerir tudo. É esse o problema quando se é demasiado inteligente e se acredita ser o primeiro da classe. A segunda coisa é que Macron não cumpriu o guião com que foi eleito. Toda a sua campanha foi o movimento Em Marcha, assente na ideia de que era preciso que a sociedade civil tomasse a iniciativa para transmitir as preocupações dos franceses, sendo a partir daí que se construiria o programa de Macron. De baixo para cima. Seria isso que permitiria a renovação da classe política. Parece que Macron, logo que foi eleito, se esqueceu do modelo e da filosofia com que criou o Em Marcha.

Não resistiu ao modelo da monarquia republicana?
Exacto, adaptou-se ao molde da monarquia republicana própria da V República, com o seu momento jupiteriano e a verticalidade do poder. Fez exactamente o contrário.

O vento começa a mudar. Mas está a mudar num contexto em que não se vê quem possa beneficiar. A única que aproveita é Marine Le Pen. E, num grau muito mais limitado, um pouco [Jean-Claude] Mélenchon. Ele tentou cavalgar o movimento, ficou muito excitado, utilizou uma linguagem revolucionária — 1789, etc —, mas isso não funcionou. Le Pen fez o contrário. Adoptou uma atitude serena. Mencionou duas vezes os gilets jaunes no seu discurso do Congresso que realizou recentemente, mas limitou-se a dizer que tudo o que eles dizem hoje é o que ela diz desde há muito. Contra a globalização, contra a Europa, contra as elites tecnocráticas. Acreditou-se que, com o seu duelo perdido com Macron, estava acabada. Está de regresso. Por enquanto, parece ser a grande beneficiária da crise.

Finalmente, há outro aspecto que não mencionámos, que é o fenómeno da comunicação através das redes sociais.
É um movimento impensável sem as redes sociais. Fecham-se dentro de si e têm a possibilidade de dizer mentiras colossais sem serem confrontados. Mas há um segundo elemento que joga a favor do movimento: o facto de tudo o que eles fazem ser transmitido pelos canais de televisão em permanência. Os canais de notícias viram as suas audiências subir de cada vez que mostravam a violência em directo. Passaram a transmitir os gilets jaunes em permanência, como se nada mais se passasse à face da terra. Não são só os media sociais que permitiram criar esta comunidade sem qualquer interferência do exterior. É também este eco nacional graças às televisões que transmitem o movimento 24 horas sobre 24.

Voltando à Europa, o problema é que, quando olhamos para Berlim e Paris, de onde se esperaria alguma capacidade de liderança, constatamos que predomina o imobilismo. Como se nada de especialmente grave estivesse em jogo.
Macron está à espera há ano e meio. Foi eleito, criando um forte élan europeu, fez quatro discursos sobre a Europa de grande fôlego: na Sorbonne, em Atenas, no Parlamento Europeu e em Aix-la-Chapelle. Tem uma ideia. Não houve resposta alemã.

Quando foi eleito, os alemães diziam que tinham finalmente um parceiro reformista à sua altura. Mas as eleições alemãs criaram um elevado nível de incerteza também na Alemanha. Há a ilusão de uma aliança que deixou de funcionar?
É verdade. Entre outras coisas, porque a Alemanha, que era uma excepção, talvez tenha deixado de o ser. Estamos a viver o fim da excepção alemã. Pensava-se que a Alemanha não sofresse os contragolpes da extrema-direita. E agora descobre-se que, mesmo na a CDU/CSU, há uma grande proximidade com a direita austríaca e até com Orbán. Há uma espécie de contínuo Munique-Viena-Budapeste. Descobrimos que há agora uma corrente nacionalista populista muito forte. Isso muda o quadro político. Hoje, os dois grandes partidos estão enfraquecidos, sobretudo o SPD, mas também a CDU e a chanceler está, ela própria, enfraquecida, é contestada dentro do seu partido, ao ponto de ter abandonado a liderança.

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Angela Merkel FABRIZIO BENSCH/Reuters

No auge da crise migratória, Merkel foi apresentada como a heroína. Foi aquele momento em que Obama estava a sair de cena e os editoriais do New York Times e de outros jornais escreviam: a chama da democracia liberal passa agora para as mãos de Merkel. O seu gesto foi certamente de grande generosidade, mas em política não há apenas gestos. É preciso mais qualquer coisa, sobretudo quando se quer ter a liderança europeia. Se Macron não consegue fazer a Europa com quatro discursos, ela também não pode fazê-la só com um gesto generoso ou porque a Alemanha é a economia mais poderosa. E aí faltou-lhe uma visão. Se me perguntassem hoje qual é a visão da Europa de Angela Merkel, eu não saberia dizer.

Nalguns aspectos, ela procurou ir ao encontro de Macron, noutros não.
É um europragmatismo que vai muito bem com o bom tempo, mas não chega em momentos como este. Não chega. É a Europa do bom tempo, que já não existe.

Macron gerou uma onda de esperança com o seu programa: a divisão esquerda-direita está a ser substituída pela divisão abertura-fechamento. Está em grande dificuldade. Perdeu o élan europeu?
Ele acreditou que podia transpor para a Europa as suas ideias. Da mesma maneira que a Europa de Leste queria transpor para a Europa as suas. Queria transpor para o plano europeu o que tinha conseguido no plano interno. Acreditava que conseguia recompor a paisagem política europeia à volta destes vectores. Pode não ser suficiente para fazê-lo mudar de rumo, mas chega para enfraquecer também a sua mensagem no plano europeu. A forma como formulou a sua política — liberalismo contra nacionalismo, abertura contra fechamento — enfrentaria sempre muitas resistências na Europa. É, aliás, isso que lhe diz a chanceler, precisamente porque esta clivagem atravessa a direita alemã. Está bem para os Verdes, até pode estar bem para a CDU ou para parte dos sociais-democratas, mas vai contra a CSU e outras forças à esquerda. As coisas são muito mais complicadas.

Sem o eixo Paris-Berlim a funcionar, com a entrada em cena dos nacionalismos, o risco de fragmentação europeia existe?
Sem dúvida. Há um risco de fragmentação no seio da União, do qual o “Brexit” é a versão extrema, mas as linhas de fractura são visíveis. A erosão dos partidos tradicionais e a crescente dificuldade em fazer os compromissos que funcionavam ao nível europeu — talvez até um pouco em excesso —, isso acabou. É preciso pensar de outra maneira. E hoje o que vemos são esses sinais de fragmentação dentro dos países-membros e não apenas entre os países-membros. Na Itália, por exemplo, incluindo no interior do próprio Governo, há os que querem mais despesa pública e os que dizem que não querem mais impostos. A Catalunha é uma revolta fiscal disfarçada de reivindicação identitária.

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Não quer partilhar a sua riqueza com o resto da Espanha.
É isso. A Bélgica é um pouco a mesma coisa. Na Grã-Bretanha, há a questão escocesa. Acreditámos que a balcanização era um fenómeno apenas do Leste. Hoje temos uma espécie de balcanização também a Ocidente.

Há já alguns anos, disse-me que a Europa se tinha construído contra a geopolítica e agora, que ela estava de regresso, não sabia como agir.
A Europa não está preparada porque, justamente durante demasiado tempo, manteve a convicção de que a relação transatlântica lhe permitia prosseguir a integração europeia sem ter necessidade de se preocupar muito com as questões de natureza geopolítica. As grandes questões internacionais e as questões de segurança eram da responsabilidade dos EUA. Aliás, havia uma visão britânica, que também convinha aos países da Europa de centro-leste, mais ou menos assim: a soberania é nossa, a segurança é dos EUA e da NATO, e a prosperidade é da União Europeia. E agora descobre-se que isto deixou de funcionar. Há um novo imperativo, devido às circunstâncias que mencionou, no sentido de repolitizar o projecto europeu, que já não pode limitar-se à prosperidade económica. A leste, Putin mantém esta espécie de guerra híbrida na Ucrânia, algo que é visto como uma ameaça, sobretudo pelos países como a Polónia ou os países bálticos, que estão na primeira linha. E há a ameaça no Sul, com a decomposição dos Estados, a guerra, o terrorismo, a imigração. A isto soma-se a incerteza sobre o nosso aliado americano. Se, nestas circunstâncias, os europeus — todos, do Leste, do Sul ou do Norte — não são capazes de pensar que o seu destino comum deve exigir uma resposta comum, então estão condenados.

Mas sem uma liderança e uma estratégia comum é difícil.
Seria preciso uma liderança política forte e é precisamente o que nos falta. Não é o problema de a Comissão fazer isto ou aquilo, é o problema da vontade política dos Estados. Estamos perante uma mudança brusca da História — se a Europa escolher sair da História, acabará dominada por um mundo onde contam a China, os EUA e outras grandes potências como a Rússia ou a Índia. Acabará irrelevante.

Quando Macron diz que a Europa é a última fronteira do multilateralismo, não dispõe de muitos instrumentos para o defender.
Também diz que estamos numa nova situação em que a Europa reencontrou o sentido trágico da História. O que idealizámos depois da Guerra Fria acabou. Quem não compreender isto está condenado. Continuar a dizer que a Europa é apenas a prosperidade que saiu da História é renunciar a tudo. E isso, mais tarde ou mais cedo, conduziria ao apagamento e à fragmentação. Se queremos ter alguma influência, comecemos pelo Leste e pelo Sul.

Pelos “banlieues” da Europa, como diz numa das suas obras mais recentes.
O que é novo nesta situação é que acreditámos que o centro difundia os seus valores e as suas normas para a periferia, incluindo a estabilidade e a democracia. Hoje é o inverso que se verifica. A interpenetração é tal que quase deixou de haver centro e periferia.

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