Um teatro para crianças em diálogo com o mundo, o país e a cidade

Depois de mais de dez anos à frente da programação para crianças do Maria Matos, Susana Menezes faz do Teatro LU.CA, em Lisboa, um palco para questionar e estimular o pensamento. Sem respostas fáceis

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Susana Menezes, directora artística do teatro LU.CA Rui Gaudêncio

Por estes dias, a sala do Teatro Luís de Camões, em Belém, acolhe uma “mini-conferência para miúdas e miúdos curiosos” dedicada à questão “para que serve a cultura?”. José Maria Vieira Mendes, dramaturgo pertencente ao núcleo duro do Teatro Praga, comanda a sessão destas mini-conferências que pretendem desafiar as crianças a pensar o seu lugar na cidade, no país e no mundo, a partir de temáticas variadas. Desta vez, trata-se de um dos momentos integrados no ciclo As Crianças, Um Teatro e Uma Cidade, com que o rebaptizado Teatro LU.CA arranca a sua primeira temporada enquanto sala dedicada em exclusivo ao público infanto-juvenil.

Foi precisamente naquele espaço vizinho da residência oficial do Presidente da República que, em Dezembro de 2017, a vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, Catarina Vaz Pinto, anunciou ao Público a reconfiguração da rede de teatros da cidade, na sequência do encerramento do Teatro do Bairro Alto (onde residia o Teatro da Cornucópia) e da saída de Mark Deputter do Teatro Maria Matos rumo à Culturgest. Ao destinar o Maria Matos à exploração por parte de uma entidade privada (o concurso foi vencido pela Força de Produção), os conteúdos programáticos que ocupavam esse teatro foram distribuídos pelo Teatro do Bairro Alto (destinado à criação experimental e emergente) e pelo LU.CA​ (resgatado da cedência à colectividade local Belém Clube).

No caso do LU.CA, tratava-se também do reconhecimento do “projecto muito criativo” que Susana Menezes e a sua equipa vinham desenvolvendo no Maria Matos nos últimos onze anos – dez sob a direcção de Mark Deputter, um ano e meio com Diogo Infante –, autoras de uma programação viva e estimulante que crescera muito para lá da sala de ensaios com capacidade para 30 pessoas que tinham ao seu dispor. “Este é o único teatro em Portugal com programação para crianças e jovens [em exclusivo]”, contextualiza Susana Menezes ao PÚBLICO. “Curiosamente, é também um teatro municipal, o que significa que houve um entendimento, a dada altura, de que estes públicos precisam de mais espaço de relação com as obras e de que há um potencial de crescimento.”

A abertura das portas do LU.CA aconteceu em Junho passado, mas Susana Menezes quis dedicar os primeiros meses a estabelecer uma ponte com o sítio de onde vinha, oferecendo um palco maior a dez espectáculos marcantes dos seus anos à frente da programação para crianças e jovens no Maria Matos. Foi assim possível revisitar criações da bailarina Leonor Keil, da autora e ilustradora Catarina Sobral ou do Teatro Praga, assistir a um concerto de Bruno Pernadas ou a um DJ set de Pedro Ramos e Tomás Wallenstein. Não se tratou apenas de consumar “uma transposição afectiva de todo um programa que já tinha várias relações com públicos e artistas, e de um sítio onde as pessoas sabiam que encontravam propostas com certo tipo de características”, explica a directora do LU.CA. Tratou-se também de disponibilizar uma sala própria e com outras condições a artistas que tinham encontrado no Maria Matos “um local de trabalho e de laboratório”, ao mesmo tempo que um fio imaginário passava a ligar a Avenida de Roma a Belém, numa explícita continuação do mesmo projecto num outro lugar – “completamente diferente, longe, sem metro”.

“Ficámos surpreendidos com as pessoas que vieram connosco. Devo admitir que achava que teríamos mais dificuldades. Estes primeiros meses serviram sobretudo para provar que aquilo que estivemos a fazer [no Maria Matos] foi uma coisa importante.” A resposta a esse primeiro ciclo levou até ao LU.CA perto de 10 mil espectadores ao longo de seis meses, distribuídos entre espectáculos (dança, teatro, concertos), oficinas, instalações e “biblioteca do público” – uma pequena selecção de livros que, a cada momento, sugerem ligações com os temas desenvolvidos pelos espectáculos da sala principal.

Fecho e arranque

Com a chegada de Janeiro de 2019, abre-se um momento que é simultaneamente de fecho e de arranque. Depois de a herança do Maria Matos ter sido reclamada e sinalizada, agora é tempo de construir uma nova vida. É esse também o propósito do ciclo As Crianças, Um Teatro e Uma Cidade, que se estende até final de Janeiro e que tem na conferência com o mesmo título, dias 24 e 25, o seu momento-âncora. Através da presença de representantes do Théâtre Am Stram Gram, de Genebra, e do BRONKS Theater for a Young Audience, de Bruxelas, o LU.CA quer “ir buscar informação lá fora”, a quem já tem experiência no território com teatros vocacionados para estes públicos. “É uma forma de percebermos qual é o nosso lugar, que espaço vamos ter nesta cidade”, diz Susana Menezes. “Até porque uma cidade existe sobre placas e com a existência de um equipamento novo, seja ele um teatro para crianças ou para adultos, um museu ou uma nova biblioteca, toda ela se agita e reorganiza.”

A conferência quer dar também voz a artistas (Catarina Sobral e Pedro Penim) e a outros interlocutores que ajudem a pensar se a criação e a programação vão “no bom caminho”. E, claro, escutar as crianças, “perceber se aquilo que elas imaginam é exactamente aquilo que querem ver, ou se preferem, ainda assim, ser sempre surpreendidas”. Este é sobretudo um mês para uma troca de ideias que ajude o LU.CA a definir de forma mais clara o seu plano de futuro. Mas que não será apenas dedicado à discussão, e que incluirá a 26 e 27 um programa do Festival Play, com uma selecção de filmes que reflectem sobre a vida nas cidades.

O início da programação regular do LU.CA marca também a exploração de uma série de propostas que a anterior vida no Maria Matos não permitia. “Desde logo, os vários espaços podem ser contaminados sem estarmos a interferir com o trabalho de outros”, começa Susana Menezes. “Isto faz com que possamos fazer desafios a um leque muito maior de artistas e a muitas mais áreas – desde as artes plásticas, a fotografia, o design, a literatura, o teatro e dança, entre outros.” Assim, e na prática, o que esta mudança de paradigma possibilita é, por exemplo, a forma como se materializará o ciclo Porque Desenhamos nas Paredes?, que ocupará a primeira quinzena de Fevereiro, e que ajudará a reflectir sobre a presença dos graffiti e da arte urbana na paisagem da cidade. O foco vai estar sobre o desenhador António Jorge Gonçalves, responsável por uma instalação em torno da história do graffiti, por uma oficina de desenho em tempo real e pelo espectáculo Válvula, partilhado com o MC LBC Soldjah. Para finalizar, lugar ainda para uma conversa que questionará o papel do graffiti na ocupação do espaço público e enquanto lugar de desobediência.

De 14 a 17 de Fevereiro, voltarão as mini-conferências, desta vez com Maria João Mayer Branco a levantar o véu sobre o namoro. São bolsas de pensamento que “acontecem porque se cruzam com a faixa etária das crianças em que elas iniciam estas perguntas sobre temas aparentemente mais difíceis de explicar – como religião, utopia, namorar, arte, política”, justifica a directora do LU.CA. A ideia é construir um lugar em que se fale abertamente destas temáticas e em que as crianças possam colocar as suas questões e expressar livremente as suas ideias acerca de cada tema. É um formato reconhecidamente mais difícil do que aquele que é proposto pelos espectáculos, mas que se integra numa perspectiva de fugir a uma programação mais previsível e facilitista.

E esse é também um elemento de ligação ao mundo adulto. Daí que a programação do LU.CA não tape os olhos nem os ouvidos aos debates que decorrem na sociedade portuguesa, trazendo também para esta sala do século XVIII, recuperada pelos arquitectos Manuel Graça Dias e Egas Vieira, temas como as questões de género, o feminismo ou o racismo. “Existimos neste tempo e queremos ser um teatro com uma apresentação contemporânea”, argumenta Susana Menezes. “Por isso temos de estar sempre em diálogo com o que acontece no mundo, no país, na cidade.”

Exemplo claro dessa ligação ao exterior é o espectáculo de teatro que Crista Alfaiate e Diogo Bento criaram para apresentação entre 10 e 17 de Março. Niet Hebben (Carta Rejeitada), coloca a actriz sozinha em palco a relacionar-se com cartas que ajudam a pensar o feminismo, o pós-colonialismo ou a guerra. Mas sempre tendo em conta que o público-alvo são as crianças. Simplesmente, quer seja com o Teatro de Marionetas do Porto, com o novo concerto de Bruno Pernadas, com o Baile de Carnaval a cargo do DJ Crazyman e da VJ Severa, com as Histórias do Teatro Luís de Camões ou com o projecto de colaboração entre alunos e artistas intitulado Labor (tudo a acontecer até final de Março), Susana Menezes quer fazer do LU.CA um teatro em que se “desmontem ideias pré-concebidas sobre o que são as práticas performativas”. E sobretudo, abrir as portas a uma sala em que as ideias circulem livremente.

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