Trafaria: um roteiro histórico pela vila onde melhor se come

De espaço de quarentena à Biarritz portuguesa, sem esquecer a pesca ou a paisagem construída pelo homem. A história devolve-nos à Trafaria onde, garantem-nos, vale a pena ficar para uma refeição demorada.

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Rui Gaudêncio

“Toda esta zona onde temos os pés estava submersa há 18 milhões de anos”, recua no tempo Francisco Silva, historiador do Centro de Arqueologia de Almada. Daqui ao Montijo existia uma “espécie de golfo marinho” e Francisco escolhe começar a história da Trafaria lá tão atrás na cronologia para que se entenda a geografia do presente. A mudança dessa paisagem marinha para a paisagem fluvial que hoje conhecemos acontece “no momento em que o fundo marinho começa a elevar para sul”, fruto da falha geológica existente no Tejo.

É esse processo que vai dar origem à Arriba Fóssil que, se por um lado traz chão a todo este novo território, por outro lado isola-o do resto da região. Toda esta faixa costeira até à Fonte da Telha era uma “zona completamente deserta, inóspita e inabitada”, que “não interessava”. “Ninguém vinha aqui fazer nada, era só areia, frio e vento”, vaticina. Há quem diga que o nome Trafaria venha da junção de duas palavras: trafa (ponta), de origem islâmica, e arena (areia), de origem latina. “A Trafaria não era mais do que a ponta da areia.”

São essas descrições que nos trazem aqui, onde temos os pés, frente ao antigo presídio da Trafaria, a primeira paragem deste roteiro pela história da vila. Foi aqui que foi erguido o primeiro edifício da zona: um “impedimento”, mandado construir pelo cardeal D. Henrique, em 1565, precisamente por este ser “um sítio de difícil acesso e inóspito”. Era aqui que ficavam em quarentena as pessoas e as mercadorias que chegavam de navio a Lisboa, como medida de controlo sanitário e aduaneiro. “É a partir desse momento que começam a viver pessoas na Trafaria, para gerir esse processo.”

Paralelamente, o edifício começou a ter funções militares. Na muralha virada ao Tejo ainda é possível ver as pedras mais antigas na base, que correspondiam a uma esplanada de artilharia que funcionou aqui. Mais tarde, passa também a receber condenados ao degredo. Só no século XIX é que o espaço é reformulado e é construído de raiz o conjunto de edifícios que hoje vemos, em ruínas, para funcionar como presídio militar. Exerceu essa função principalmente durante as Guerras Liberais e o Estado Novo.

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O antigo presídio começou por funcionar como impedimento, teve funções militares e chegou a ser fábrica de guano e conservas Rui Gaudêncio

Entre um momento e outro, foi de tudo um pouco: fábrica de guano de peixe, fábrica de conservas, viveiro das matas nacionais, abrigo de galeotas reais, habitação particular. “Bulhão Pato já vinha para aqui caçar muitas vezes e refere, inclusive, que ficava alojado numa casa dentro do antigo presídio”, conta Francisco Silva. Nos últimos anos, o edifício, propriedade da Câmara Municipal de Almada, tem sido cedido à Associação Ensaios e Diálogos para ali desenvolver as suas actividades (o grupo foi um dos promotores do projecto Casa do Vapor, realizado em 2013).

Os portões estão encerrados, por isso não chegamos a visitar as antigas celas e continuamos caminho, contornando o presídio. Nas traseiras, ainda se encontram as ruínas da igreja de Nossa Senhora da Conceição, construída pelos moradores quando os muros fecharam ao povo o acesso à capela do presídio. Nessa altura, já uma comunidade piscatória se havia instalado na Trafaria e foi nesta igreja que se constituiu a primeira confraria de pescadores da vila, no século XVIII.

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Os barcos que se vêem abandonados junto à estrada “estão todos para abate”: eram da apanha da amêijoa mas ela "desapareceu toda" Rui Gaudêncio

“Os pescadores de Almada estavam muito ligados à pesca de rio, são gentes vindas de Ílhavo e do Algarve que vêm fazer a pesca de mar, principalmente a arte xávega”, esclarece o historiador. É na Trafaria que estas populações primeiro se instalam. A Costa da Caparica era simplesmente “a praia das pescarias”, até ao momento em que as barracas de madeira lá construídas começaram a tornar-se habitação permanente para alguns pescadores.

Hoje, as pequenas embarcações que se vêem junto à praia estão ligadas “à pesca local”. O peixe apanhado - “linguado, robalo, douradas” - é vendido logo ali na pequena lota, para sustento de algumas famílias da vila. Já os barcos que se vêem abandonados junto à estrada “estão todos para abate”: “Eram da apanha da amêijoa com ganchorra, mas essa pesca já não se faz, a amêijoa desapareceu toda”.

De impedimento à Biarritz portuguesa

Na Rua Guedes Coelho, o edifício no número 7 ajuda a contar outro momento da história da Trafaria. No século XIX, ir à praia “tornou-se uma actividade social muito importante” e a vila, por estar perto de Lisboa, acessível com a inauguração do barco a vapor que fazia a travessia do Tejo, transforma-se na estância balnear predilecta da “população burguesa” da capital. São desse tempo muitas vivendas que ainda hoje se vêem, muitas recentemente recuperadas, com fachadas de azulejos e telhados inclinados, inspirados nos chalets suíços que então se associavam às férias.

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Na Rua da Colónia Balnear, um painel de azulejos assinala a visita da rainha D. Amélia à Trafaria Rui Gaudêncio

Em 1901, é fundado o “clube dos banhistas” no número 7 à nossa frente, uma associação de acesso exclusivo para os veraneantes, que chegou a ter salas de casino – nome pelo qual ainda hoje quase todos conhecem o clube Recreios Desportivos da Trafaria, criado em 1940. Era a “Biarritz portuguesa”. A rainha D. Amélia chega a vir inaugurar a primeira colónia de férias para crianças desfavorecidas de Lisboa, que vinham a banhos à Trafaria “porque fazia bem à saúde”. “O primeiro posto de socorro a náufragos, de apoio balnear, foi aqui”, acrescenta Francisco Silva.

Vendo o grémio dos banhistas, também a população local quis um espaço de convívio e de lazer e acaba por fundar, pouco depois, o Clube Recreativo Trafariense. O edifício original ficava no bairro mais antigo da vila, mas a actual sede de “uma das bandas filarmónicas mais antigas do concelho” está hoje localizada na Avenida da Liberdade, estrada construída nos anos 1950 sobre a ribeira da Enxurrada (que ainda corre ali por baixo).

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A Igreja de São Pedro é um dos pontos de visita no Largo da República Rui Gaudêncio

Não muito longe, fica o Largo da República. Espreite a Igreja de São Pedro, o mercado e a biblioteca, inaugurada em 2014. E se passar pelo quartel dos Bombeiros Voluntários da Trafaria, fique a conhecer a história que ilustra bem a rivalidade que “sempre existiu” entre a população de cá e a de Almada. A primeira corporação foi criada em Cacilhas e daí nasceram duas dependências: na Costa da Caparica (ainda se mantém) e na Trafaria. “Como tinham um carro-bomba já muito velho, os de cá fizeram uma subscrição para comprarem um novo. Mas os bombeiros de Cacilhas acabaram por ficar com o novo e mandar para cá outro velho. Foi de tal maneira que estes zangaram-se e autonomizaram-se.”

O peixe, preferiam vendê-lo em Lisboa só “para não pagar direitos em Almada”. E se perguntar por um clube de futebol, são “todos do Belenenses”. Já no século XVIII, a autarquia de Lisboa enviava uma carta ao presidente de Almada a perguntar por que é que na capital tinham sabido primeiro do enorme surto de paludismo que assolava a Trafaria.

Uma paisagem criada pelo homem

Depois do impedimento, dos pescadores e dos banhistas, veio a fase industrial. Chegaram a existir na Trafaria três fábricas de conservas (hoje em ruínas) e uma de fabrico de explosivos (mais tarde, recolocada junto à Cova do Vapor, antes de encerrar permanentemente). Os silos de moagem de grande parte dos cereais utilizados pela indústria panificadora portuguesa raramente desaparecem do horizonte, marcando a paisagem ribeirinha. Seguimos pela Avenida 25 de Abril, para uma última paragem. O edifício onde actualmente está sediado o posto territorial da GNR foi, em tempos, a moradia oficial do director das Matas Nacionais. Todo o arvoredo que se começa a ver daqui não existia até então. Era uma zona de “pântanos e juncais”, para onde Bulhão Pato vinha muitas vezes à caça.

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Os silos do Terminal da Silopor marcam o perfil ribeirinho da Trafaria Rui Gaudêncio

“Toda esta mata que vemos, daqui até à Costa da Caparica, é fruto de um processo definido, que incluía valas de drenagem e plantação de pinheiros.” Conta o historiador que já nesta altura se faziam as primeiras experiências com acácias no viveiro das plantas, à data “uma coisa extraordinária”. Mas, numa primeira fase, a mata foi plantada com “pinheiros de Alepo”, uma espécie que tem “sementes que voam”, “parecem umas asinhas”. “Toda esta paisagem foi transformada pela mão do homem.”

Daqui, pode continuar caminho até ao Bairro Madame Faber, o primeiro bairro social da Trafaria, mandado construir pela proprietária da fábrica de explosivos, ou descer até à praia pela Rua Alexandre Braga. Não se aconselha uma ida a banhos, mas tanto o areal quanto o paredão convidam a passeios demorados. E fica o conselho de todos quantos entrevistámos: ao contrário da Costa da Caparica, onde a restauração se tem descaracterizado e perdido qualidade, na Trafaria ainda se encontram muitos e bons restaurantes de comida tradicional. Aproveite.

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Os fortes da Raposeira e de Alpena têm das melhores vistas panorâmicas sobre a costa Rui Gaudêncio

Com o estômago reforçado, deixamos uma última sugestão: suba pela estrada militar até aos fortes de Raposeira e de Alpena para vistas panorâmicas sobre toda a faixa costeira e espreite as peças de artilharia e as antigas fortificações, que outrora integraram a defesa militar de Lisboa, actualmente em ruínas. No caminho para Alpena, repare como os arbustos à esquerda foram o “vértice de um octógono”. É umas das mais bem conservadas fortificações construídas na altura das invasões francesas, “normalmente feitas só com terra”.

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