A oficina de Gato Preto dá para uma rua estreitinha, estreitinha. Basta alçar os cotovelos para tocar nas paredes que a limitam, qual corredor branco sem tecto ou janelas. É na pequena oficina que José Santos entretém parte dos dias, agora que a reforma o afastou das lides da pesca e da carpintaria. Nas paredes, sobem gaiolas de pintassilgos - “era armador, corria tudo mais um colega meu, mas agora proibiram”; uma colecção de calendários e bibelots apimentados por todo o lado – já nem se lembra bem como terá isto começado, mas o certo é que “a vida toda foi recebendo presentes”, incluindo de casamento, com seios e falos a descoberto, ri-se; e ferramentas por tudo quanto é canto.
A alcunha de Gato Preto ganhou-a quando era pequeno. Na altura, ainda morava numa barraca de madeira atrás da Igreja Velha, a cerca de 600 metros daqui. Certo dia, o pai achou uma placa onde se lia “gato preto”, “pregou aquilo num pau” e deixou-a na horta atrás do casebre. Como José Santos era “o mais rebelde” dos miúdos do bairro, sempre “emaranhado por todo o lado”, a alcunha pegou e ficou até hoje.
O grupo mal cabe dentro da oficina onde José Santos conta a história, dividindo atenções com Cavalinho, o cão “abandonado” que o bairro adoptou e que vai saltitando de mãos em mãos, a pedir festas. “Passa aqui parte do dia, depois vai dormir a casa de um vizinho.” Laura, a mulher, deixa o peixe por arranjar para vir oferecer-nos ginjinha caseira feita pelo irmão. É o primeiro encontro desde que começámos o passeio de bicicleta guiado por Joana Paula Silva, proprietária da Varina Bike Experiences. E a conversa demora-se.
A Rua 15, herança mais aparentada daquilo que terão sido os primeiros bairros de pescadores da Costa da Caparica, é paragem obrigatória nos passeios da Varina. De nome peixeiro, as visitas guiadas da empresa familiar criada em 2017 estão sempre ligadas ao que de mais característico existe desde a Trafaria à Costa da Caparica: as lides do mar. Por isso, aqui estamos, na viela pedonal que nasceu quando as barracas dos homens do mar foram enxotadas da Rua dos Pescadores para ali se erguer um dos primeiros bairros veraneantes da Costa e o Hotel Praia do Sol, a primeira unidade hoteleira inaugurada a sul do Tejo, “ainda o Algarve não era nada”, em 1934.
“Os empresários convenceram as pessoas a ir construir as barracas no sítio onde indicaram.” Uma zona “que não interessava para nada”, “longe de tudo”, que, durante anos, foi apelidada de “ilha do sumiço”. Quem há-de contar-nos esta parte da história é Francisco Silva e Mário Raimundo, historiador e pescador, numa outra visita. Mas tanto a casa de Laura e de José na Rua 15 como a oficina, numa perpendicular, fizeram parte desta ilha de barracas. Foi José que fez da madeira cimento quando todo o bairro começou a refazer as cabanas em alvenaria, cada moradia do seu feitio, enganchadas umas nas outras. Do mobiliário, só as cadeiras não foram feitas por ele. As escadas para o primeiro andar são já uma das atracções da visita.
A vida foi levada entre o barco e o serrote. “O meu avô era pescador e eu fui logo de pequeno. Depois andei na serventia de carpintaria e estive vários anos a trabalhar. Mas fazia as duas coisas. Tinha a pasta do almoço para quando vinha da pesca ir logo para Lisboa.” Quando a última carpintaria onde trabalhou fechou, já na Costa da Caparica, José Santos ficou só com os biscates na oficina e a pesca. “Íamos para o cabo Raso e apanhávamos aqueles maus tempos. Depois chegou a idade, a nossa vida organizou-se e eu reformei-me”, conta. Aos “69 anos e meio”, só há uma coisa que ninguém tira a Gato Preto: “Todos os dias vou à praia ver o mar”.
A Rua 15 “nunca será igualada”
O nome oficial é Rua Mestre Adrião, “um pescador famoso do século XIX”, mas todos a conhecem por Rua 15. É a mais colorida da Costa da Caparica, de chão pintado todos os anos pelos moradores com as sobras das tintas dos barcos, por alturas do São João. “Pelo menos uma semana antes, começam a pintar a rua com símbolos da pesca, barcos, corações, flores, frases, nomes”, enumerava Joana quando aqui chegámos. “Rua 15 é nossa / E por nós muito amada / Façam o que fizerem / Nunca serás igualada / Nesta rua nasci / E nela me criei / Com pessoas muito boas / A qual eu as amei”, lê-se em dois gordos corações bordados a vermelho e a amarelo.
Durante as festas populares, conta Joana, a rua transforma-se: “As famílias põem as mesas cá fora e começam a oferecer cerveja, carne, sardinhas assadas.” Por vezes, no Verão, quando Joana aqui pára com os turistas, também a mesa se abre na rua com petiscos e dois dedos de conversa com os moradores. Se calha passar a vizinha que canta o fado, deixam-se ficar para uma ou duas músicas.
Na Varina, apesar de os roteiros estarem mais ou menos definidos, não existem dois passeios iguais. Tudo depende de quem se encontra pelo caminho. “Às vezes é difícil e faz com que tenha mais trabalho só para fazer os contactos.” Há que saber quem estará por casa, o que há na lota nesse dia, se existe alguma exposição alusiva à pesca numa das associações que seja interessante visitar. E depois coordenar tudo com a duração do passeio e com o interesse dos clientes. Mas Joana defende que “é isso que dá riqueza” aos passeios. “São comunidades com imensas dificuldades e muito pouco valorizadas e a nossa passagem, o nosso cumprimento, o passarmos pelas vilas deles, mostrarmos os produtos deles, também é uma forma de sentirem que fazem parte e que gostamos deles.”
Há cinco anos que Joana, 31, se mudou de Lisboa para a margem sul. Primeiro para a casa de férias da família na Quinta de Santo António, depois para uma casa arrendada aqui na Rua 15. Foi quando conheceu Gato Preto, Laura e os outros vizinhos. Se ficava dois dias fechada em casa a escrever a tese em Sociologia, ligavam-lhe a perguntar se estava tudo bem. “Este tipo de coisas aquece o nosso coração”, diz para explicar porque gostava de morar na Rua 15 – saiu quando a senhoria decidiu transformar o edifício em alojamento local – e agora na Cova do Vapor. “Eu sou só um veículo para eles [turistas] se deliciarem com o que existe aqui, tal como eu me delicio”, reitera.
Da Arriba à Costa
Do cimo da Arriba Fóssil, tudo se vê. “Começámos na Trafaria, ali junto ao rio, e vamos visitar aquela vila piscatória, Cova do Vapor, um sítio muito especial porque é também onde o rio Tejo encontra o mar”, vai apontando Joana. Aos nossos pés, alonga-se a Costa da Caparica até quase a perdermos de vista, “um dos destinos de praia mais famosos dos lisboetas e uma área de surf muito boa para principiantes”.
É neste miradouro natural sobre a faixa costeira da margem sul que fazemos a primeira paragem para que se apresente ao que viemos. “A história da Costa da Caparica é curiosa porque é completamente diferente de Lisboa e está quase toda ela ligada à cultura da pesca. Começou com muito poucas famílias de pescadores e é por isso que ainda hoje muitos se tratam por primos a toda a hora – sabem que provavelmente vieram da mesma família”, conta a guia.
Entretanto, começam a chegar os banhistas e a construir-se casas de veraneio. Nos anos 1970, é toda a zona sul da Costa que se desenvolve, subindo em palmeiras e prédios altaneiros. “Na altura, toda a gente queria ficar ali.” O lado direito estava cheio de parques de campismo para “pessoas com menos dinheiro”, e os mais abonados “queriam comprar casas na zona lá ao fundo”. Hoje, compara, é “completamente ao contrário”: “Toda a gente se queixa que lá só existem edifícios enormes e nenhumas lojas tradicionais.”
Antes de seguirmos caminho, Joana há-de apontar ainda o 2.º Torrão, “um bairro de lata cinco vezes maior do que a Cova do Vapor”, que “só teve água há dois anos”. E há-de parar várias vezes para condenar o entulho que se acumula na falésia, criticando a falta de prevenção e de fiscalização. “Logo no primeiro ano, fizemos uma campanha de voluntariado para recolher lixo e estamos a pensar voltar a realizar uma acção semelhante este ano.”
O caminho de terra vai ganhando buracos, subidas, lamas e descidas. Por vezes, é preciso levar a bicicleta pela mão, por questões de segurança. Mas o pequeno motor vence tudo o resto sem esforço. “É a minha primeira experiência numa bicicleta eléctrica”, confessa Tara Chandra, londrina de 31 anos, a única turista entre a comitiva feita de amigos de Joana, que aproveitaram a oportunidade para vir conhecer o passeio. “É muito divertido, mas tem de se ter cuidado, porque, de repente, podes ir mesmo depressa.” Por outro lado, contrapõe, nunca foi tão fácil “subir uma encosta”.
Não é que haja muitas para vencer ao longo do trajecto. Na falésia, pedalamos entre panorâmicas sobre o mar, campos verdes e figueiras. “No Verão, paramos para comer figos das árvores. Não têm dono, que se saiba”, conta Joana. Por vezes, cruzam-se com o pastor e dezenas de ovelhas, mas esta manhã a falésia está entregue ao silêncio. Passamos pelas ruínas do Ondaparque, encerrado em 1996, e seguimos caminho rumo à Costa da Caparica. A pausa faz-se no snack-bar O Escondidinho, mesmo junto à Rua 15. “Dá para ver alguma beleza natural mas também um outro lado de Portugal que nunca conheceria se ficasse confinada a Lisboa”, vai analisando Tara entre chá, café e fatias generosas de bolo de cenoura e chocolate.
A pesca é “até morrer”
Daqui ao mar, bastam umas pedaladas. A lota já está fechada mas Mário Raimundo espera-nos junto às fileiras de casinholas que o programa POLIS ergueu para os pescadores. Antigamente, tudo cabia em cada contentor, agora um alvéolo destes não chega para duas redes, umas bóias, coletes e outros utensílios, há-de criticar. Está quase tudo arrumado em grandes baldes de plástico lá fora. Cá dentro, não cabemos todos. Vamos entrando à vez para espreitar, enquanto a conversa prossegue.
Dias depois, haveremos de voltar a encontrar Mário, quando regressarmos com Francisco Silva. Mas o passeio de bicicleta, focado nas vilas piscatórias, também por aqui pára para ouvirmos as histórias da tradição da arte xávega.
A companha de Mário Raimundo é composta por oito “artes”: “Duas que deixou o meu velho e outras seis que fiz eu e outro.” “Demorámos um ano e era dia e noite.” Ao mar, só vai a partir de Março. “A gente parou porque o tractor avariou-se, senão ainda lá andávamos. Mas os gajos estão a pedir muito dinheiro e ando a ver se alguém me dá algum para comprar um novo.” De canivetes pendurados ao pescoço, Mário tem feito contas ao Inverno a “arranjar as redes”.
Anda na xávega desde os sete anos. “Naquela altura, a gente tinha de ajudar os pais nem que fosse para a gente se calçar.” Começavam por tirar a água do barco, depois passavam a recolher a corda e daí entravam na faina. “Normalmente temos ali dez ou 15 homens, conforme.” Alguns têm “outras funções de pesca” no resto do tempo, outros vão “ver se aproveitam alguma coisa” para o almoço.
Quando Mário Raimundo começou havia 23 companhas desde a Costa à Fonte da Telha. Restam dez. Ainda trabalhou como “banheiro”, andou a carregar gás e a descarregar aviões no aeroporto da Portela. “Depois o meu segundo pai morreu e eu tive de vir tomar conta disto.” Tinha 37 anos. “A gente na vida tem muitos amores. Uns vão ficando para trás, ficam cá outros. A pesca é até morrer.”
A mãe é transmontana, tem hoje 94 anos. Ele 74. “Veio com uns senhores para tomar conta de dois miúdos, na época balnear.” Cara “muito bonita”, o pai, pescador da terra, “não era de somenos”. “Encantaram um com o outro, mas o meu pai depois fugiu, não queria nada com ela”, conta Mário sem perder o sorriso largo, de menino travesso, com que termina todas as frases.
Eram “tempos terríveis”. Quando chovia, tinham de “andar por cima de pontes” entre as barracas de madeira. Depois foram morar para o novo Bairro dos Pescadores, erguido durante o Estado Novo. Se Henrique Tenreiro, então presidente da Junta Central das Casas dos Pescadores, “era fascista”, a Mário pouco importa. “Fez ali uma casa dos pescadores [actualmente, o Centro de Saúde da cidade], com médicos, enfermeiros, escola para os miúdos. Tínhamos creche como os ricos.”
Os tempos não podiam estar mais diferentes. “Antes só vinha quem tinha dinheiro, agora é quem está desassossegado, só gente vadia”, critica, sem rodeios. “Eram pessoas que se interessavam pela gente e que não deixavam tocar nos pescadores, agora toda a gente toca na gente”, compara. Em frente, já se vêem alguns dos 22 apoios de praia, bares e restaurantes que vieram substituir os antigos edifícios no âmbito do programa POLIS, em 2008. “Estão quase todos aí a balão de soro.” O restaurante à nossa frente “já teve quatro donos”, garante. “É a forca, porque pedem muito dinheiro de renda e eles não fazem.”
Os avós do mar
A conversa vai correndo calma como a manhã de Inverno. Quando damos por ela, já vamos muito para lá do tempo previsto. O resto do caminho faz-se em contra-relógio. Primeiro pela ciclovia junto ao paredão das praias da Costa da Caparica – e é ver os surfistas nas ondas suaves e alguns caminhantes de fim-de-semana, casais e miúdos a correr pelo passeio ou sentados no areal. Está um daqueles dias épicos de Inverno: céu limpo, muito sol e uma brisa que nos mantém despertos. Tão distante do caos que a Costa se pode tornar durante os meses de Verão. Depois, entramos na mata de São João, pedalando entre os pinheiros, até chegarmos à Cova do Vapor.
“A população é muito idosa e tem muitas dificuldades”, resume Joana à entrada da aldeia. À esquerda, aponta, está a única paragem de autocarro onde pára uma única carreira. À direita, os únicos contentores do lixo que servem toda a população. “As pessoas daqui são muito isoladas mas, ao mesmo tempo, existe um sentimento de comunidade muito forte”, vai explicando em inglês.
Joana vai chamando a atenção para os nomes das ruas, enquanto pedalamos pelo miolo desordenado de pequenas casas, todas diferentes. Cruzamos a Rua das Flores e a da Alegria, passamos pela minúscula Avenida dos Milionários e percorremos a Quinta Avenida. “As casas agora estão completamente diferentes mas esta é uma das mais originais, porque antigamente todas eram assim, mais pequenas e em madeira.”
Apesar de “Almada não assinalar a Cova do Vapor no mapa”, alguns turistas, especialmente franceses, já vêm directamente à procura da aldeia piscatória. E muitos têm comprado casas por aqui. Num cotovelo de rua junto à praia concentram-se diferentes nacionalidades: “Esta é de um holandês, ali está a de um francês, aquela acho que é de um alemão.” Se antes as pessoas “tinham muito medo” de cá vir, agora o Verão enche-se de turistas, portugueses e estrangeiros. “No ano passado, fecharam a entrada da aldeia pela primeira vez ao trânsito, só entravam moradores.”
O grupo vai retorquindo os “bons dias” de quem passa na rua e seguimos caminho até à Trafaria. É no terminal fluvial que todos os passeios começam e terminam, junto à loja da Varina. No início, ainda abria diariamente, com bicicletas para alugar (10 euros a jornada) e passeios por marcação. Mas, neste momento, serve mais como ponto de encontro e de divulgação. Todos os serviços têm de ser reservados antecipadamente.
Em breve, vão ter mais um programa no catálogo, o primeiro inteiramente dedicado à gastronomia local. “As aulas de cozinha estão super na moda e nós tínhamos de criar serviços alternativos à bicicleta”, justifica. O local escolhido? O Centro Social da Trafaria. Com que chefs? Os “avós do mar”. “É uma forma de também dar resposta à problemática do isolamento das pessoas que aqui vivem e envolvê-las mais uma vez.” O lançamento está previsto para Março. A ideia é que a experiência termine num almoço, com os pratos que foram confeccionados, “tudo focado nas receitas do mar aqui da zona”.