Na Cantuária, quem conta um conto acrescenta outro conto
Foi o maior centro de peregrinação do Norte da Europa durante séculos. Situada a menos de uma hora de Londres, tem na catedral o maior ponto de atracção mas, perdendo-se nas suas ruas, o viajante rapidamente encontrará outros pontos de interesse e recantos menos turísticos.
Ela impõe-se logo à distância, depois insinua-se por entre as ruas estreitas e por vezes empedradas da cidade, até que finalmente se revela, majestosa, em todo o seu esplendor, banhada pelos últimos raios que anunciam um crepúsculo precoce.
A noite cai cedo sobre a Cantuária. A catedral deixa-se envolver por uma neblina que, com aquela luz mortiça que se espalha, criando cada vez mais silhuetas, torna a visão fantasmagórica.
Se a igreja cristã inglesa fosse um filho, a mãe seria seguramente a catedral de Cantuária, a razão maior para a cidade integrar a lista de Património Mundial da UNESCO, cenário de uma história tão remota como a afirmação do cristianismo em todo o Reino Unido.
A neblina adensa-se, pouco mais permite ver.
E a manhã desperta com um sol quase tão pálido como as luzes na noite anterior. This is England.
Ali está ela, outra vez, depois de um jogo matinal às escondidas. Se, contemplada de fora, se mostra tão imponente, quase inacessível, erguendo-se como se fosse dos deuses e não dos homens, uma vez no interior a catedral parece exibir-se na presunção de cativar. Aqui e acolá, monumentos comemorando as batalhas da nação, mais à frente o túmulo e a túnica heráldica de um dos mais proeminentes belicistas do reino, Eduardo, o Príncipe Negro (1330-1376), que, mesmo numa altura em que já a Família Real exigia ser sepultada na abadia de Westminster, manifestava, esse filho mais velho de Eduardo III, o desejo de ser cremado e de ter os seus restos mortais depositados na catedral de Cantuária, lugar de peregrinação e de penitência.
Eduardo, príncipe de Gales com apenas 13 anos, para se salvar dos seus pecados, como o infame saqueamento da cidade de Limoges durante a Guerra dos Cem Anos, valendo-lhe gozar ainda mais do estatuto de príncipe da Aquitânia, achava que, na morte, Cantuária lhe poderia valer pelas atrocidades cometidas em vida.
A catedral de Cantuária está para o Reino Unido como Fátima para Portugal. É o Vaticano da Grã-Bretanha. Da igreja mandada levantar por Santo Agostinho, apontado como um dos maiores evangelizadores, a par de São Patrício, na Irlanda, e de São Bonifácio, na Alemanha, nada resta e muito do que se ergeu posteriormente foi, salvo raras excepções, lambido pelas chamas em incêndios que afectaram a catedral.
Atrás do altar sei que está uma escada que me irá conduzir à cripta, um lugar onde não chega o ar mas que é como a foz de um rio, este de turistas, todos desejando ver aquele espaço cavernoso que ofereceu resistência a um desses incêndios, em 1174, fatal para a catedral, erguida pouco mais de cem anos antes. Muitos desses turistas nem prestam atenção às esculturas originais que decoram aquele mar de pilares.
Santo Agostinho, enviado pelo Papa Gregório I, o Grande, chegou a Cantuária em 595 e, dois anos mais tarde, era nomeado arecebispo, iniciando uma rápida conversão do país, dos anglo-saxões pagãos ao Cristianismo – ainda hoje, aquele que também é conhecido em Portugal como Agostinho de Cantuária, é apontado como o apóstolo da igreja inglesa.
No interior da catedral, onde me encontro, encontrou-se Thomas Becket com a morte. Este arcebispo, em permanente conflito com Henrique II, o rei que desejava dominar a política e o clero, impondo as suas regras, tornou-se um defensor intransigente dos direitos da igreja, foi obrigado a fugir para França e um dia, chegando a Sandwich, também no condado de Kent, não sonhava (reza a lenda) que o soberano pudesse ter proferido, por essa altura, em 1170, palavras como: não haverá ninguém capaz de me livrar deste padre turbulento?
A pergunta foi, alegadamente, escutada por quatro cavaleiros que a terão entendido como uma ordem, a ponto de se colocarem a caminho de Cantuária. A 29 de Dezembro desse mesmo ano, no coração da catedral, Thomas Becket era assassinado sem desconfiar que haveria de tornar-se no principal alvo de todas as peregrinações a Cantuária (a sua canonização, apenas três anos mais tarde, também estimulou a fé) desde então. Num mártir. Já lá vão quase 850 anos.
Os contos de Chaucer
De quando em quando volto as costas e observo ou sinto-me observado pela catedral que se projecta contra um céu de um azul indefinido. De repente, sem a procurar, tenho, à minha frente, na junção da Best Lane com a High Street, a estátua de Geoffrey Chaucer.
"E lá se vão expertos palmeirins
Rumo a terras e altares e confins;
Da vária terra inglesa, gente vária
põe-se a peregrinar à Cantuária
Onde jaz a sagrada sepultura
Do mártir que lhes deu auxílio e cura.
Naquele tempo, estando eu hospedado
Em Southwark, na estalagem do Tabardo
Pronto a seguir, em devoção, sozinho
Na próxima manhã, no meu caminho
Eis que de noite, unidos em viagem,
chegam uns vinte e nove a essa estalagem;
Gente variada, todos peregrinos,
Ajuntados no acaso dos caminhos,
Rumando à sepultura milagreira."
Considerado o pai da literatura inglesa, Geoffrey Chaucer (1342-1400), terá inspirado William Shakespeare e ainda hoje é recordado por ser o primeiro escritor no país a utilizar personagens na sua obra (nem sempre ficcional), tornando célebres (os inacabados) Tales of Canterbury. A obra, escrita em inglês médio (difícil de definir o significado nos dias de hoje) entre 1387 e o ano da morte de Geoffrey Chaucer, é a história, aparentemente tão real, de 24 peregrinos (na estalagem eram 29, daí não estar terminada, além do facto de que, eventualmente, a ideia inicial passava por um conto à ida e outro no regresso), percorrendo os caminhos entre Londres e Cantuária.
São personagens de diferentes classes sociais: há cavaleiros e escudeiros, mercadores e monges, há padres e estudantes, moleiros e feitores, um tintureiro e uma admirável viúva de cinco maridos. Mas há também um vendedor de indulgências, um conto no qual, para a época, Chaucer terá ofendido os mais moralistas.
Na pousada, na véspera, alegadamente por sugestão do hoteleiro, ficou definido que cada um deveria contar uma história ao longo do percurso, com a promessa de que o melhor conto, eleito em democracia, entre todos aqueles que rumavam até esse túmulo dos milagres, teria direito a um jantar.
Verdade ou não, Tales of Canterbury, como um pilar que sustenta a catedral, desempenhou igualmente um papel central para desenvolver a indústria do turismo na capital de Kent. Nesses contos, para tantos imorais, fala-se de adultério, deboche, crime e de relações amorosas em que a conversa mordaz surge com mais frequência do que seria de supor por esse tempo.
Geoffrey Chaucer retracta-se, perto da morte, desculpa-se aos deuses e aos homens, pelo baixo nível moral dos seus contos; há nele, como em Eduardo, o príncipe negro, um sentimento de arrependimento.
A catedral e os contos preenchem tanto a mente do viandante que, mais do que seria habitual, nenhum deles ocupa os seus pensamentos com outros protagonistas de Cantuária, como Cristopher Marlowe, dramaturgo, poeta e tradutor num tempo associado à Rainha Isabel I, nessa época de esplendor da história inglesa.
Na Cantuária descobre, sem andar muito e desde que se foque na localização (The Friars), o New Marlowe Theatre, um sucessor daquele que foi demolido em 2009, capaz de receber, dois anos mais tarde e sem paralelo na região, nesse Sudeste inglês que parece estar a milhas de distância das grandes metrópoles, as melhores companhias e as mais mediáticas produções .
Era filho de um sapateiro, Cristopher Marlowe. Ninguém conhece a sua data de nascimento. Sabe-se que foi baptizado a 26 de Fevereiro de 1564, precisamente dois meses antes do baptismo, também, de William Shakespeare, em Stratford-upon-Avon.
Falam dele, de Marlowe, como espião. Como um génio de cuja fonte bebeu Shakespeare. Como homossexual. Em Eduardo II, Marlowe percorre a vida do rei e do seu amante, Gaveston, nele fala de supostas relações homossexuais entre Alexandre, o Grande e Heféstio, que acompanhou, desde o início e como general de cavalaria de elite, as campanhas asiáticas do comandante invicto, de Hércules e de Hilas, tanto destaca os soberanos como recorda, entre sábios, o amor de Tullius por Octavius, de Sócrates por Alcibíades.
Christopher Marlowe nasceu, alegadamente, na Cantuária.
O lado menos badalado
É por Cristopher Marlowe e outras figuras tão ligadas à história de Cantuária, como Thomas Becket ou Eduardo, o Príncipe Negro, como Geoffrey Chaucer, que o viajante começa a ignorar, à medida que percorre algumas das ruas apertadas da cidade, Santo Agostinho.
Não são muitos os turistas que se acercam do espaço que, nos arredores da cidade, era, 600 anos depois do nascimento de Cristo, uma das mais importantes abadias do Norte da Europa, hoje em ruínas, aqui e acolá vizinha de uma árvore que ameaça secar, Património Mundial da UNESCO – é a Abadia de Santo Agostinho, com as suas paredes despidas, levantada em 597, ano que coincidiu com a nomeação de Santo Agostinho como arecebispo da Cantuária, símbolo do ressurgimento do Cristianismo no Sul de Inglaterra, memória desse homem que desafiou fronteiras para expandir a fé cristã no Reino Unido.
Um outro monumento, uma igreja, na Holmes Road, a St. Martin's Church, está igualmente inscrita na lista de Património Mundial da UNESCO, um estatuto que decorre do facto de ser considerada a igreja paroquial mais antiga do Reino Unido com serviços religiosos ininterruptos.
É provável que essa não seja a única razão: no lugar onde foi construída a abadia, encontrou-se, pela primeira vez, a rainha Bertha, mulher do soberano saxão Ethelbert, com o recém-chegado de Roma, Santo Agostinho, num tempo em que o século VI corria para o seu final.
Não ignoro os museus de Cantuária. Nem o Royal Museum & Art Gallery, com a sua fachada no estilo neo-Tudor, um testemunho da época vitoriana, nem muito menos o museu romano, com as suas caves, os seus aposentos reconstruídos, a sua cozinha, o cenário onde se realizava o mercado, mais os seus mosaicos.
A cada passo sinto que há muito mais para oferecer, a qualquer hora do dia, de que a Cantuária não se resume à sua catedral.
A manhã do dia seguinte acorda bonita, com uma luz mais diáfana. É por essa altura que os meus olhos se plantam numa porta, na única sobrevivente desses dias de antanho, medievais, sob a qual o tráfego se vai acentuando às primeiras horas do dia, ignorando que ali ao lado, pelo meio dos canais, se vive uma vida menos sobressaltada, cheia de intimidade, de silêncio, de encontros fortuitos, que decorre por entre suaves murmúrios. Fito a West Gate. Não muito longe está a House of Agnes, do século XIII, que Charles Dickens não ignora em David Copperfield.
O marulho não se escuta mas a água corre, um amplexo de serenidade envolve este recanto menos turístico da Cantuária, nada fazendo crer que estamos numa das cidades que, em tempos medievais, muitos apontavam como a capital dos mais misteriosos assassinatos. Para lá estão os serenos canais, as casas, com as suas traves em madeira, por vezes reflectidas nas águas como num espelho, acolhendo o jogo de sol e sombra a esta hora. No silêncio, as memórias avivam-se.
“Uma casa muito antiga ao longo da estrada... inclinada, tentando ver quem passava na calçada mais em baixo”, dela escreveu, dessa estrutura e porta do século XVII, Dickens, também em David Copperfield, provavelmente o seu livro mais autobiográfico. Há quem lhe chame a Crooked House, a Sir John Boys House, King's Gallery ou Old King's Shop. Muitos nomes, múltiplas funções e origem desconhecida.
Os meninos, recortados pela porta inclinada, têm a escola à espera.
Há mais memórias da Cantuária, das suas ruas, de High Street, St Margaret's Street, de Mercey-lane, a La Mercerie, onde os peregrinos adquiriam recordações materiais da sua visita à cidade. Não têm conta, os contos da Cantuária.
Ao longe, avisto pela última vez a catedral.