Lello já está a avaliar uma primeira edição d’Os Lusíadas para possível aquisição
Se o exemplar estiver em boas condições, o negócio poderá fechar-se em breve pelos 250 mil euros previstos na OPA lançada pela livraria portuense, mas a compra só será anunciada no feriado do 10 de Junho, dia de Portugal e de Camões.
A Oferta Pública de Aquisição (OPA) de uma primeira edição de Os Lusíadas por 250 mil euros, anunciada no domingo pela Livraria Lello, já deu origem a uma proposta de venda. O exemplar em causa está neste momento a ser estudado por uma comissão técnica de avaliação, à qual caberá certificar que o livro está em condições de conservação aceitáveis, mas, a julgar pelas fotografias enviadas, parece um candidato “credível”, disse ao PÚBLICO uma fonte da livraria.
Esta insólita OPA bibliófila, que oferece ainda 70 mil euros por uma primeira edição de Harry Potter and the Philosopher’s Stone, volume inicial da saga de J. K. Rowling, e 1500 euros por um exemplar daquele que é considerado o primeiro periódico impresso português, a Gazeta da Restauração, de 1641, foi anunciada pela presidente da administração da Lello, Aurora Pedro Pinto, durante a cerimónia que assinalou, no passado dia 13, o 113.º aniversário da histórica livraria portuense, cronicamente incluída nas listas internacionais das mais belas livrarias do mundo.
O regulamento desta OPA, divulgada numa sessão que teve a presença da ministra da Cultura, do presidente da Câmara do Porto e do ensaísta Eduardo Lourenço, prevê que todas as propostas de venda devam chegar à Lello até 13 de Março, ainda que as eventuais aquisições venham depois a ser anunciadas em momentos diferentes, aproveitando efemérides relacionadas com as obras em questão: o dia da liberdade de imprensa (3 de Maio) para a Gazeta da Restauração, o feriado do 10 de Junho para Os Lusíadas, e o dia de anos que J. K. Rowling partilha com a sua personagem Harry Potter (31 de Julho) para a primeira edição inglesa do livro que inaugurou a série.
O interesse da Lello pelo universo de Harry Potter, e esta sua circunstancial associação à epopeia camoniana, justifica-se pela possibilidade de que a elegante escadaria dupla da livraria tenha inspirado a sua irrequieta irmã ficcional da escola de feitiçaria de Hogwarts, hipótese nunca confirmada nem desmentida pela autora, que terá começado a escrever o seu best-seller no período em que viveu no Porto, no início dos anos 90.
Embora tenha sido lançada em 1997, há pouco mais de 20 anos, a primeira tiragem da edição original de Harry Potter and the Philosopher’s Stone (Harry Potter e a Pedra Filosofal na edição portuguesa), já atinge cotações francamente elevadas no mercado alfarrabista internacional, mas não pode propriamente equiparar-se, em valor, raridade, importância literária ou significado histórico a uma primeira edição d’Os Lusíadas.
Os exemplares dessa tiragem de 1572 cujo paradeiro é público resumem-se, em Portugal, a uma escassa dezena: quatro na Biblioteca Nacional, dois na Casa de Bragança, em Vila Viçosa, um na Academia de Ciências, um na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, um na Sociedade Martins Sarmento, em Guimarães, e um último no Ateneu Comercial do Porto. Isto, se considerarmos, de acordo com o juízo hoje maioritário, que as variações entre exemplares – a mais famosa, detectada já no século XVII, prende-se com a imagem de um pelicano no frontispício, nuns casos voltada para a esquerda do leitor, noutros para a direita – correspondem a diferentes momentos de impressão e não a duas edições distintas.
Exemplar do Ateneu não está à venda
O exemplar do Ateneu foi avaliado em 225 mil euros em 2014, num momento em que a instituição, atravessando graves dificuldades financeiras, chegou mesmo a ponderar vendê-lo. E a proximidade dessa estimativa com os 250 mil euros propostos pela Lello tornavam tentador imaginar que seria esse específico exemplar que a livraria tinha expectativas de poder vir a adquirir. Uma hipótese que o actual presidente da direcção do Ateneu, Rogério Gomes, desmentiu ao PÚBLICO, explicando que não só a instituição conseguiu, entretanto, reequilibrar as contas, como se prepara para arrancar com as comemorações dos seus 150 anos, que se cumprem em 2019, e pretende inaugurar uma grande exposição, que deverá tornar-se permanente, dos tesouros que a casa conserva: livros raros, manuscritos de autores importantes, quadros (incluindo um Pousão), esculturas, e muitas outras peças. Ora, sublinha Rogério Gomes, “a alma” dessa exposição será naturalmente a primeira edição d’Os Lusíadas.
Não é ainda conhecida a identidade do proprietário do exemplar proposto à Lello, mas sabe-se que há alguns (muito poucos) em bibliotecas particulares portuguesas, e designadamente no Porto. E não é certo, de resto, que este exemplar venha a ser adquirido. O regulamento da OPA exige que os livros pertençam a “uma primeira tiragem” – o que terá menos a ver com a polémica científica relativa à edição original do poema de Camões do que com o livro de Rowling, cuja primeira edição teve sucessivas impressões –, mas reserva-se também o direito de recusar quaisquer exemplares que não estejam em condições aceitáveis. E esta, sim, é uma disposição seguramente acrescentada a pensar n’Os Lusíadas. Os alfarrabistas e coleccionadores que o PÚBLICO ouviu acham o valor proposto pela Lello razoável para um bom exemplar, embora em peças tão raras, tão importantes e com tão escasso historial de vendas, nunca seja fácil estabelecer uma cotação.
Um dos autores deste artigo lembra-se de o saudoso alfarrabista portuense Manuel Ferreira lhe mostrar, emocionado, uma peça de tecido branco, muito semelhante a um pano de altar, que em tempos embrulhara um magnífico exemplar da primeira edição d’Os Lusíadas. Anos depois, o livreiro ainda não se conformara por se ter visto obrigado a intermediar a venda do livro para o Brasil, após ter feito todos os esforços para conseguir um comprador em Portugal. O seu filho Herculano, que hoje dirige a Livraria Manuel Ferreira, já não recorda o valor exacto da transacção, ainda em escudos, mas diz que, “na época, dava para comprar um bom apartamento”.
No entanto, os 250 mil euros avançados pela Lello podem tornar-se um preço francamente alto se o exemplar tiver falhas relevantes. Para se ter uma ideia, o empresário Aprígio Santos, ex-presidente do clube desportivo Naval 1.º de Maio, adquiriu em 2004 uma primeira edição d’Os Lusíadas por 32 mil euros, mas o frontispício e a primeira página de texto tinham sido substituídas por fotocópias.
Ora, sendo evidente que os propósitos da iniciativa da Lello se situam mais no domínio do marketing do que no terreno estrito da bibliofilia – o eventual vendedor obriga-se, por exemplo, a permitir, a divulgação da sua identidade e a utilização da sua imagem nos meios de comunicação ou nas plataformas digitais da Lello “para promoção da OPA” –, é de crer que um exemplar ao qual falte, por exemplo, a icónica página de rosto, dificilmente poderá interessar.
Uma raridade contemporânea
Se não alimentou séculos de querelas académicas, como a d’Os Lusíadas, a identificação e valorização de uma editio princeps de Harry Potter and the Philosopher’s Stone também tem as suas subtilezas.
“Que eu conheça, em Portugal, não há nenhum exemplar. A história da primeira edição é um bocadinho complicada: produziram-se 500 exemplares de capa dura, que são os mais valiosos, e de que neste momento se estima que só existam 300 no mercado", explica Nuno Gonçalves, da leiloeira Nova Ecléctica. “Um deles foi vendido em Londres por 160 mil libras [um pouco mais de 180 mil euros].”
Depois dos livros de capa dura, seguiram-se os exemplares de capa mole (paperback), menos valiosos do que os primeiros. “Esses, por serem mais comuns, são vendidos por 5 mil libras ou menos. Mas convém lembrar que as pessoas que os compraram no dia de lançamento pagaram cerca de 13 libras”, observa o alfarrabista, que integra a comissão técnica de avaliação criada pela Lello para esta OPA.
Tudo isto diz respeito à versão inglesa do livro. A versão portuguesa, porém, não reúne o mesmo entusiasmo: “Não tem relevância no mercado, pelo menos de momento. Estou convencido de que eventualmente possa ter algum interesse, no sentido de os coleccionadores juntarem todas as primeiras edições, e ainda pela ligação que J. K. Rowling tinha a Portugal”.
Apesar de os livros já serem (por si só) valiosos, Nuno Gonçalves sublinha que há algo simples que pode catapultar o valor do livro para números estratosféricos: um autógrafo manuscrito relevante.
O PÚBLICO chegou à fala com um coleccionador ávido de primeiras edições de livros populares, muitos deles autografados, que confirma esta afirmação. Na sua livraria está a edição original inglesa da saga O Senhor dos Anéis assinada por Tolkien, livros da biblioteca pessoal de Charles Dickens e uma primeira edição de Drácula, autografada por Bram Stoker. “Nunca pensei em vender estes livros, dá-me prazer mostrá-los às pessoas que vêm de todo mundo para os ver”, afirma Reid Moon, proprietário da Moon's Rare Books, no Utah, EUA.
Moon tem o livro que a Lello pretende, e em dose dupla. Mas não se limita a possuir dois exemplares da primeira edição de Harry Potter and the Philosopher’s Stone”: ambos mostram assinaturas que aumentam exponencialmente o valor de mercado. “Num desses livros, tenho o autógrafo do Daniel Radcliffe, o actor que interpretou Harry Potter. Na altura, ele tinha 11 anos e ainda nem se estreara o filme inicial”, conta o coleccionador. O outro exemplar, também uma primeira edição, ainda é mais valioso: “Para além do autógrafo do Daniel, tem também o de Emma Watson e de Rupert Grint, que desempenham os papéis de Hermione Granger e Ron Weasley”.
Para além destes exemplares assinados pelos actores, Reid Moon chegou a ter uma primeira edição autografada pela própria autora, J. K. Rowling, mas acabaria por vender o livro a um coleccionador por 35 mil dólares, ligeiramente mais do que o que Aprígio Santos desembolsou pela sua primeira edição d’Os Lusíadas…
O primeiro livro da saga Harry Potter foi lançado em 1997, há pouco mais de duas décadas. “O fenómeno é recente e, em 20 anos, os livros tiveram uma hipervalorização”, diz Nuno Gonçalves. “Os leiloeiros têm sempre muitas dificuldades em estabelecer os valores destes livros”.