Toro y Moi: the dancing king
Em 2017, quando era editado Boo Boo, dizíamos que Toro y Moi, o “homem no espaço”, prosseguia a sua viagem — Outer Peace é mais uma momentânea paragem desse inesgotável percurso, um dos mais fascinantes da música popular do século XXI. Vamos poder testemunhá-lo (e dançá-lo!) em Maio no Porto e Lisboa.
Não será por acaso que dá pelo nome de Fading a primeiríssima canção de Outer Peace, disco que é hoje editado, com o selo da editora independente Carpark Records, pelo americano Toro y Moi (ou Chaz, como é carinhosamente conhecido entre amigos e desconhecidos). Título ajustadíssimo: o disco ainda mal começou a rodar e Chaz já está a desaparecer, a tornar-se, uma e outra vez, numa coisa outra, eterno camaleão das sete vidas. É ele o dono de um império dos sentidos em permanente mutação (“Everything is fading, fading, fading / Guess I gotta have that faith in”) cuja única constante é a crença no prazer — esse vívido e vivido (e não tanto idealizado) de Ordinary Pleasur” (“Maximize all the pleasure / Even with all this weather / Nothing can make it better”, exorta ele).
Dois anos depois de Boo Boo e aqui nos encontramos novamente com Chaz, ou, como o apelidámos anteriormente, o “homem no espaço”, melómano cosmonauta à descoberta do espaço sideral, pouco importado em cravar bandeiras mas, antes, em viajar. Viajar, viajar, viajar: cometas, meteoritos, buracos negros, asteróides, nebulosas que jamais se esgotam no seu universo criativo. Parafraseando José Gomes Ferreira, a Chaz ninguém proibirá jamais de entrar em lugar algum, pois que ele é, por natureza, o esteta “espantado de existir”. À atmosférica synth-pop muito 80s de Boo Boo, trabalho envolto numa nostalgia onírica, onde tudo se arrastava lenta e melancolicamente, Chaz contrapõe agora, depois de uma regeneradora imersão (”I just want a long shower / I been feeling so crowded”, lindíssima linha em New House), velocidade e energia. Aceleração — rítmica, temperamental — que não cai do céu: onde antes Chaz partira de um lugar de decepção (o fim de uma relação amorosa) e de estranhamento (perante a fama que dele entretanto se acercou) para fazer Boo Boo, agora o momento é de uma outra positividade.
“Eu não sou uma pessoa muito de festas. Neste momento, estou mais interessado em levar uma vida saudável. Interessam-me os artistas que estão realmente a viver e não apenas a fazer projectos, pessoas que aproveitam a vida, que têm cuidado consigo. Não me sinto atraído por tipos materialistas, estou mais sintonizado com pessoas interessadas em criar uma comunidade, cuidar uns dos outros, em lidar com o sistema económico que rege as suas vidas”, diz-nos ao telefone de Oakland, na zona mais a este da Bay Area de São Francisco.
“Isto”, diz ele parecendo estar a chegar a esta conclusão pela primeira vez, “também me levou a esta ideia de fazer música mais. ‘contemporânea’”, como se a importância de fruir do momento presente na sua vida pessoal se tivesse transferido, subterraneamente, pavlovianamente, para a vontade em estar conectado com a música que está a ser feita actualmente, numa vontade de sincronização — artística, pessoal, existencial — com o mundo em que vive. Mudança — Boo Boo chegava a soar perfeitamente (belissimamente, também) anacrónico — que coincide, aliás, com o seu regresso a Oakland, depois de, no disco anterior, se ter isolado em Portland (no Oregon, a norte da Califórnia) para escrever aquele que é, talvez, o seu disco emocionalmente mais intenso.
“A mudança para Portland foi agradável, foi como uma sabática, um reset durante o qual tentei encontrar novos sons. Quando voltei aqui para Oakland, nem sequer tinha a certeza de que ia acabar a fazer um álbum. Foi mais: ‘Deixa ver o que sai daqui.’. Mas foi bom ir para Portland naquela altura, sair para ir fazer uma coisa específica noutro lugar foi algo que me deu motivação”, conta.
Há um estado de espírito positivo latente na sua voz, mesmo se o registo é predominantemente tímido, contido, a contrastar com a exuberância e o arrojo da sua música e de toda a sua paisagem visual — não é por acaso que o tom roxo-tristonho da capa de Boo Boo é agora trocado pelas cores garridas, quentíssimas, da de Outer Peace. Uma paz, note-se, “exterior” — Chaz é demasiado maduro, subtil, auto-irónico, para se deixar seduzir pelos chavões da “paz interior”, até porque, tantas vezes, é no que está para além de nós, no com-os-outros (numa pista de dança, sim, mas também no exercício físico ou no contacto com a natureza, por exemplo, e Chaz é um entusiasta de hiking nocturno, como faz referência em Freelance), e não tanto nos nossos processos criativos, que ela — serenidade, apaziguamento, sabedoria — nos aparece e a podemos saborear. Da mesma forma, ainda, que, em vez do tronco curvado, cabeça baixa, da capa de Boo Boo, encontramos agora Chaz sentado à secretária, maquinaria musical em redor e olhar focadíssimo no monitor enquanto faz aquilo de que mais gosta.
Na verdade, durante largo tempo, a música foi apenas um hobby paralelo à sua actividade como designer gráfico, ocupação que, qual toque de Midas, explica o extremo bom gosto visual de tudo aquilo em que põe as mãos (nomeadamente, os seus estupendos videoclips, dos melhores que a última década nos deu). Algo em que custa a crer, tal é a prolixidade da sua obra, mas sobre a qual Chaz chegou já a dizer tratar-se uma verdadeira necessidade: para se sentir livre, para continuar a fazer música com gosto e entusiasmo, ela tinha de ser, paradoxalmente, secundária na sua vida — pelo menos no papel, claro. “Freelance”, de outro ângulo, também fala sobre isso: a importância de nos mantermos activos em várias frentes, de, por nossa iniciativa, perseguirmos aquilo que nos dá gozo (hustling, em bom american english), e do papel da tecnologia — ora potenciador, ora anestesiante — nessa rota.
Depressa e bem, há Chaz quem
Esta alegada “lateralidade” da música é, de facto, difícil de aceitar quando se atenta no repertório deste americano de 32 anos, filho de mãe filipina e pai afro-americano, criado em Columbia (Carolina do Sul, na costa oposta à Califórnia onde hoje vive). Numa casa sem músicos mas com música a abarrotar, Chaz começou por aprender o piano aos 8, guitarra aos 12 (era o tempo em que tentava imitar Elliot Smith ou os Bright Eyes), quatro anos depois gravava em bandas rock e punk de amigos e, aos 21, com o primeiro computador nas mãos, ninguém mais o parou no admirável mundo da criação digital.
“Os meus pais estavam sempre, sempre a ouvir música: ao pequeno-almoço, durante o fim-de-semana, enquanto faziam limpezas. Lembro-me de acordar com música e a minha mãe a dançar a Madonna aos berros! A minha intuição musical vem toda das coisas dos meus pais”. “Na verdade”, afirma enquanto parece novamente chegar a uma ideia em que nunca pensou antes, “acho que, no fundo, estou sempre a tentar criar música de que os meus pais gostem. Acho que isso está no meu subconsciente. Eles ainda estão juntos, não sei como, é muito difícil. Mas estão. Têm algo especial”.
De 2009 para cá, Chaz lançou mais de uma dezena de trabalhos (entre EP e LP) na qual quantidade é, para finalmente variar, sinónimo de qualidade. Nunca redundante, nunca ensimesmado; heterodoxo, desviante, imprevisível. Não é fácil, de facto, erigir um edifício destes, no qual, ao contrário do que a teoria ensina, a diversidade não constitui nunca impedimento à coesão e coerência sónicas — algo que, quando se fala no seu nome, nem sempre parece estar devidamente consciencializado, próprio de uma supersónica era em que a análise a uma obra-de-conjunto é descurada à conta dos fogachos, epifenómenos, aos quais por vezes se prefere acorrer. Do indie rock à electrónica, da synth-pop ao funk, do disco à pop mais barroca e ao hip-hop, eis Toro y Moi sempre sob o signo de uma sofisticada sensibilidade e, não menos importante, do experimentalismo — ou, mais prosaicamente falando, da curiosidade.
É isso que imediatamente apetece dizer dele, rapaz de minúsculos e achinesados olhos por detrás dos seus castiços óculos: Chaz é, acima de tudo, um curioso. Sem querer assoberbar o leitor, manda o rigor, porém, que o lembremos de que esta pequena bíblia da música popular contemporânea não se esgota aqui, outros pseudónimos, e respectivos projectos, gravitando em paralelo: Chaz Bundick (que, juntamente com os The Mattson 2, editou a peça de rock jazzístico Star Stuff, 2017), Sides of Chaz (Sweet Tea, 2013, o sides apenas sublinhando o cariz poliédrico da sua obra), PLUM (PLUM e BECOME, 2016 e 2017) e, claro, Les Sins (LP Michael, 2014, donde consta esse maravilhoso single Why).
Foi justamente por este último, aliás, que a nossa conversa principiou: sendo Outer Peace, predominantemente, um disco tão dançante, house festivo quer para grandes clubs nocturnos como para uma house party de liceu, o que o levou a editá-lo como Toro y Moi, e não como Le Sins? “Tive algumas dúvidas, mas, assim que comecei a cantar, tive a certeza de que seria como Toro y Moi. Em Les Sins, eu não canto, é essa a maior diferença. Mas foi o projecto Les Sins que me deu motivação para fazer um disco como este, porque tenho estado sempre a tocar como DJ, imerso naquela clubbing life, nos sons, reacções, nas emoções do público. Isso deu-me vontade de ir para este lugar. Estar nesse mundo levou-me a fazer esta espécie de club album”.
Para trás parece ter ficado, definitivamente, o rock, esse de June 2009 (2009) ou What For? (2015), se bem que tal distanciar não constitua, bem vistas as coisas, um afastamento deliberado ou “em bloco”: entre esses dois discos, por exemplo, pontifica Anything In Return (2013), belíssima peça synth-pop sem espaço para guitarras rockeiras. Chaz diz-nos que considera “extremamente desafiador trabalhar com guitarras hoje em dia. Não penso que o rock esteja ‘morto’, mas não é o género primordial neste momento, o que não é uma coisa má. Eu quero continuar a ter guitarras na minha música e sinto que há uma forma de continuar a fazê-las crescer! Mas não é só uma questão de género, é também uma questão dos tempos actuais. Actualmente, o rock em si mudou, e sinto que era altura disso. Mas as guitarras voltarão a seu tempo! E elas continuam, apesar de tudo, a ser populares, basta ouvir Mac DeMarco, o Rex Orange County. Eles são, definitivamente, rock, mas claro que não vão fazer os hinos rock, de estádio, como antigamente. Pessoalmente, adoro o desafio de manter o rock popular, ou, pelo menos, um certo tipo de rock. Simplesmente, não está tanto no meu background neste momento”.
2017, por seu turno, foi o ano de Toro Y Rome Vol. 1, surpreendente projecto entre Chaz e o peculiar e estimável rapper Rome Fortune (e um dos poucos rappers recentes que, originário de Atlanta, cidade-berço do trap, faz música com pés e cabeça), EP que, tendo já um pé no house, soa a uma espécie de ponte entre Boo Boo e Outer Peace (embora Chaz até nos revele que alguns dos instrumentais correspondem a sobras de Boo Boo). “Sempre esteve na minha cabeça fazer hip-hop e muita gente pergunta-me se algum dia vou rappar, mas duvido que o faça em breve. Mas, se o fizesse, não seria nada do que as pessoas esperam! Eu quero fazer música com intensidade, não gosto de clichés. Seria algo weird! No trap, eu não sei o que eles dizem na maior parte do tempo. E, ao mesmo tempo, é tão previsível! Normalmente, não consigo prestar atenção porque já sei como vai ser logo a seguir ao primeiro verso”.
Este constante, desalinhado, vai-e-vem na sua obra só sublinha o cariz prazeroso, recreativo, de Chaz nos seus processos: “Estamos numa era em que tudo parece aleatório, e as pessoas parecem estar ‘Ok’ com isso. Antes, isso incomodava-me mais. Era mais ‘artístico’ com os meus discos, no sentido em que queria que eles fossem sempre um bocado ‘conceptuais’. Mas agora cheguei a um ponto em que só quero fazer música, não tenho tempo para me assegurar de que as canções estão todas na mesma linha. Ninguém se preocupa com isso, por isso vou só continuar a fazer música. Do tipo: ‘Vou é fazer bangers!’” (risos).
O passado foi lá à frente
A propósito de Boo Boo, dizíamos, à data, que não era, ao contrário do que se poderia pensar, um regresso ao passado, pela simples razão de que Chaz nunca saíra de lá. Com Outer Peace, o primeiro ímpeto é para dizer que Chaz “contemporizou” mais o seu som, que o alinhou com o presente, e o próprio assente nesta ideia: “A ideia principal na minha cabeça foi a de tentar procurar sons mais upbeat, diferentes dos do Boo Boo. Tentei criar um mundo mais contemporâneo, não tão retro como no disco anterior. O facto de ter trabalhado nos últimos tempos com rappers fez-me pensar em fazer sons mais parecidos com os deles. Eu sempre fui fã das sonoridades que estão finalmente neste álbum, só ainda tinha tido tempo para o fazer! Mas há mais coisas na lista que ainda quero experimentar, que me inspiram. Fazer mais colaborações, acima de tudo”.
Depois do telefone se desligar, ficamos, porém, a pensar que, evidências à parte (música alguma é rigorosamente do “passado” ou do “presente”, tais categorias servem apenas nos ajudar a mapear), é lá, nesse indefinido tempo-espaço ido, que Chaz, com algumas excepções sintonizadas com o R&B e trap actuais, permanece — a única diferença está em que, aqui, o “passado” é um bocadinho menos. passado. Não os anos 80, mas os finais de 90/inícios dos 2000, esses que nos deram o french house dos Daft Punk ou dos Cassius. Se formos mais fundo, porém, as contas voltam a complicar-se: é que, em boa verdade, o som predominante de Outer Peace está igualmente marcado, de cabo a rabo, pelo toque indelével do deep e do funky house americanos (Chicago à cabeça), os quais datam, precisamente, de meados dos anos. 80. De resto, esta incursão pelo house liga-se, indubitavelmente, à sua crescente ocupação como DJ, algo em que confessa ter um enorme prazer (mas apenas passar música, já não, ironicamente, sair à noite, sublinha ele) — ou seja, pôr-nos, como faz com Outer Peace, a dançar.
“Eu adoro tocar como DJ, é algo que ainda quero melhorar e em que quero fazer coisas maiores. Honestamente, sinto que a música electrónica me atraiu sempre mais do que tocar instrumentos. É tão contemporânea, tão ‘nova’. Permite-te sempre aprender tantas coisas engraçadas fora do teu espectro! Nos meus sets, costumo tocar french house, italo-disco, aquele house de Detroit e de Chicago também”.
É também isso — pôr-nos a dançar (e aqui nem são precisos dois, o tango é o que cada um quiser!) — que certamente fará no Porto (Hard Club) e em Lisboa (Lux), a 22 e 23 de Maio, com a sua nova banda (4 elementos), com a qual está definitivamente apostado em criar um grande espectáculo ao vivo. Dois concertos que têm, desde logo, essa salvífica particularidade de o serem em nome próprio, e não martelados num alinhamento ultra-saturado de festival. Teremos, pois, todo o tempo do mundo para dançar, para fruir à vontade desse sempre urgente ordinary pleasure — na verdade, um dos melhores desta vida. E que melhor forma de começar um ano que não se prevê fácil senão abanando as ancas? Teremos muito que discutir, intervir, caminhar, escrever, defender, mas não nos esqueçamos também disto: joy as an act of resistance, como diziam os outros.