A tragédia do "Brexit"
Os demagogos que conduziram o povo britânico para tal situação são os únicos culpados pelo que está a suceder.
1. Aquando das eleições legislativas britânicas de 1983, um jovem candidato trabalhista proferiu a seguinte declaração: “Se ganharmos as eleições, nós negociaremos a saída da CEE já que esta esgotou os nossos recursos naturais e destruiu os nossos empregos”. Como se chamava esse então ainda ignoto candidato a deputado pelo Partido Trabalhista?
Por muito estranho que hoje isso possa parecer, o seu nome era Tony Blair. Na ocasião, tal ponto de vista era amplamente partilhado no seio do Labour, de tal modo que um sector minoritário, declaradamente pró-europeísta, se havia visto dois anos antes compelido a abandonar a agremiação e a formar um novo partido político, que se designou por Partido Social-Democrata. Blair foi eleito membro da Câmara dos Comuns, os trabalhistas sofreram uma derrota pesadíssima e Thatcher foi reconduzida como primeira-ministra. O episódio é bem revelador da existência na sociedade britânica de um fundo cultural e político hostil à participação no projecto europeu.
Como hoje sabemos, os trabalhistas em geral, e Tony Blair em particular, acabaram por mudar radicalmente de posição. Essa mudança foi de tal ordem que este último haveria de ser mais tarde o primeiro-ministro mais pró-europeu da história recente do Reino Unido. Já com os conservadores, passou-se um processo inverso. Passaram de uma atitude claramente eurófila para um posicionamento radicalmente eurocéptico. Essa transição não se consumou de modo linear e levou mesmo à decapitação política da figura mais carismática do conservadorismo contemporâneo. Margaret Thatcher, a heroína da revolução liberal-conservadora, sucumbiu às mãos de um sector europeísta que foi ele próprio, de seguida, rapidamente subalternizado. Num longo período em que permaneceram na oposição, primeiro a Blair e depois a Gordon Brown, os conservadores dilaceraram-se e esvaíram-se em disputas homéricas sobre a questão europeia. Só voltaram ao poder quando moderaram o seu discurso nessa área.
Tudo fazia crer que o radicalismo anti-europeu, apesar de extasiar os núcleos mais duros das militâncias partidárias, suscitava a rejeição de segmentos populacionais imprescindíveis ao sucesso eleitoral. De certo modo isso foi verdade durante muito tempo. Só que as coisas mudaram abruptamente quando uma confluência de factores culturais e económicos proporcionou o surgimento de condições favoráveis ao triunfo de um discurso demagógico, recheado de mentiras e apostado na desvalorização da discussão informada e racional. A campanha do “leave” assentou na demonização dos refugiados e dos imigrantes, na exploração desonesta do mal-estar económico de alguns sectores da sociedade e na imputação completamente falseada de responsabilidades à União Europeia.
Os autores de tal campanha agiram de uma forma que se pode e deve considerar criminosa. Como é óbvio, no dia seguinte acordaram deslumbrados e perdidos. De então para cá sucederam-se as asneiras. Ignorando que a participação numa união aduaneira e num mercado único implica obrigações conflituantes com inopinados propósitos de total independência no plano comercial e de selectiva participação no domínio da liberdade de circulação, o governo britânico chegou a expor-se ao ridículo. Não contaria decerto com a firmeza negocial que a União Europeia adoptou e que foi esplendidamente prosseguida por Michel Barnier. Só que a UE não poderia proceder de outra forma, sob pena de iniciar um processo de auto-dissolução.
Chegamos assim, com a votação de terça-feira passada, a uma deplorável situação de impasse. Não caiamos também na tentação salomónica de atribuir as responsabilidades às duas partes. Neste caso, o Reino Unido está a pagar o preço de uma decisão democrática e popular mas insensata e irreflectida. Os demagogos que conduziram o povo britânico para tal situação são os únicos culpados pelo que está a suceder.
2. Morreu esta semana um homem de excepcional envergadura profissional, cívica e política. Por circunstâncias sobremaneira curiosas, que só a comum militância partidária propicia, nos últimos três anos tive o privilégio de privar com António Fonseca Ferreira. Já o conhecia há muito tempo, respeitava o seu percurso e admirava a sua frontalidade. O convívio mais próximo permitiu-me conhecer um homem de rara qualidade. Inteligente e culto, habitado pelas inquietações daí decorrentes, afadigado a reflectir sobre o seu país, empenhado na valorização da discussão pública. Era o contrário de um acomodado, de um videirinho, de um situacionista acrítico. Como espírito livre que era, convivia mal com as pequenas ortodoxias instaladas. Além disso era um homem bem formado, com quem era muito aprazível conversar.
António Fonseca Ferreira foi desde a sua juventude um combatente pela liberdade, pela democracia e pelo socialismo democrático. Nunca esmoreceu nessa luta que sabia inextinguível. A par da relevante carreira profissional, dominada pela constante preocupação do serviço público, desenvolveu uma corajosa intervenção política, que em vários momentos lhe causou sérios danos pessoais. Nunca nada o fez desistir. Homem de causas justas, preocupou-se nos últimos anos com a regeneração do mundo partidário. Tinha consciência que os partidos políticos, dominados por uma burocracia aparelhista, semi-analfabeta e pouco dada a preocupações de ordem ética, se encaminhavam para um precipício que, no limite, poderia pôr em causa o próprio regime democrático. Nisso ele era intransigente. A nós, socialistas, fica-nos a faltar a sua inteligência, a sua acutilância, a sua desapegada vontade de servir os nossos ideais comuns.