Universidades públicas para ricos
Querer reduzir as propinas da licenciatura, dizendo às universidades para se financiarem com as propinas do mestrado, é pior do que um presente envenenado.
Em Novembro do ano passado, numa acção comemorativa dos três anos do Governo, o primeiro-ministro, acompanhado por quase todos os ministros, foi à Universidade do Minho responder a perguntas sobre a sua governação. Fiquei encarregado de coordenar o painel de economia. Houve uma pergunta que, por falta de tempo, não chegou a ser feita. No fim da sessão, entreguei a pergunta escrita à secretária de Estado Mariana Vieira da Silva, que ficou de a entregar ao ministro da pasta relevante, prometendo-me que ele responderia. A pergunta vinha na sequência da redução de propinas anunciada para o próximo ano lectivo e era a seguinte:
"Há instituições públicas que cobram valores astronómicos por um mestrado, por exemplo, mais de 10.000€ por ano. Que sentido faz um cidadão não conseguir aceder ao ensino público porque este cobra valores astronómicos? Que tipo de serviço público pode tal instituição prestar? Garantir um bom mestrado aos jovens com pais ricos?"
Há duas semanas, encontrei a Alexandra Oliveira, a estudante que fez esta pergunta, que se queixou de que o ministro do Ensino Superior nunca tinha chegado a responder-lhe. Na verdade, a resposta veio pela boca do ministro Manuel Heitor, na semana passada, quando, no fórum da TSF, disse querer que sejam os mestrados a financiar o ensino superior. Portanto, não vê mal nenhum em que haja universidades públicas a cobrar estes valores pela frequência num mestrado.
Como parece razoavelmente evidente, isto corresponde a uma privatização das universidades públicas ao nível da pós-graduação. Não há qualquer noção de serviço público compatível com propinas deste valor. A maioria dos jovens, independentemente da sua valia académica, não terá possibilidades de frequentar tais mestrados. Temos uma universidade pública para ricos.
Um ensaio dos professores Pedro Nuno Teixeira, Hugo Figueiredo, João Cerejeira e Miguel Portela publicado no Observador mostra que o prémio salarial associado a uma licenciatura tem vindo a decair continuamente desde a implementação de Bolonha, quando as licenciaturas passaram de 4 e 5 anos para 3. Hoje, o acréscimo salarial associado a um mestrado é semelhante ao da licenciatura de há 13 anos. O corolário destes dados é simples. A formação superior de base já não é a licenciatura, mas sim o mestrado. Qualquer discussão séria sobre os custos do ensino superior não se pode cingir aos 3 anos da licenciatura, tem de incluir os 18 a 24 meses do mestrado.
Entendamo-nos: ensino superior gratuito, ao contrário do que muitos querem fazer crer, não é um disparate sem sentido. Há vários países em que assim é. Mas o contrário também é verdade: são muitos os países onde os estudantes pagam propinas. O que surpreende nas declarações do ministro do Ensino Superior é a total incapacidade de identificar qual o problema que se pretende solucionar. Como se fosse possível encontrar solução para um problema que não se sabe qual é.
É que, confesso, se muito facilmente acredito que os custos de frequentar o ensino superior sejam um entrave, custa-me mais a acreditar que menos de 100€ de propinas por mês seja a parte mais significativa desses custos. E a verdade é que não são. Foi há uns meses publicado um relatório — “Os Custos dos Estudantes do Ensino Superior Português” — onde vemos que o custo anual médio de um estudante de licenciatura no ensino superior público é de 5800€. As propinas representam um sétimo deste custo. Faz sentido dar uma cacetada nas receitas das universidades, para reduzir uma componente tão pequena dos custos do estudante? Face a estes números, é claro que quem não estuda por falta de dinheiro, não terá nas propinas das licenciaturas o principal entrave. Faz muito mais sentido reforçar o apoio social na forma de bolsas, que ajudem a financiar todas as despesas.
Outra coisa que surpreende em toda esta discussão é a referência aos problemas causados pelo aumento das propinas em Portugal sem que se faça qualquer alusão a um estudo que nos diga que problemas são esses. É assim que um ministro-cientista desenha as suas políticas?
A ideia de que um aumento das propinas leva automaticamente à exclusão de estudantes do ensino superior está errada. Um relatório recente sobre os efeitos do aumento de propinas no Reino Unido mostra isso mesmo. Em 1998, o ensino superior público era gratuito nesse país. Nesse ano, foram introduzidas propinas que hoje andam na casa dos 10.000€/ano. Ao contrário do que alguns esperariam, o aumento de propinas não impediu que houvesse cada vez mais jovens a frequentar as universidades. Igualmente importante, depois de vários anos em que a desigualdade no acesso ao ensino superior tinha aumentado, esta parou de aumentar e diminuiu um pouco.
Como foi isto possível? Graças a formas de apoio social muito eficazes. Por exemplo, os estudantes não precisam de pagar imediatamente as propinas. Podem deferir o pagamento para depois do curso. Formalmente, é como se pedissem um empréstimo ao Estado com uma taxa de juro real igual a zero. Quer isto dizer que só quando começam a trabalhar é que são obrigados a pagar, podendo fazê-lo às prestações. Prestações essas cujo valor também dependerá dos seus rendimentos: se forem baixos, as prestações serão baixas também. Com este sistema, a universidade não é gratuita, mas o estudante não tem de a pagar à entrada. E, como os empréstimos que referi podem ser maiores do que o valor das propinas, servindo para cobrir as restantes despesas, não é por falta de dinheiro que alguém deixa de estudar.
Em conclusão, querer reduzir as propinas da licenciatura, dizendo às universidades para se financiarem com as propinas do mestrado, é pior do que um presente envenenado: é garantir que muitos estudantes ficam com a sua formação coarctada por falta de recursos e dizer que há mestrados em universidades públicas que são apenas para jovens de famílias ricas. Quer a estrutura de despesas dos estudantes (em que apenas um sétimo corresponde às propinas) quer os dados que temos para o sistema inglês dizem-nos que o foco das políticas públicas de promoção do ensino superior, muito mais do que na redução das propinas da licenciatura, deve ser garantir bolsas e financiamento barato e seguro a quem precisa.