Sharon Van Etten perdeu a cerimónia

Sharon Van Etten permite-se fazer aquilo que lhe apetece, sem preocupações de zonas interditas ou passos em falso. O que só lhe fica bem, muito bem mesmo

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Em cada tema, aquilo que verdadeiramente sobressai é o modo como Sharon Van Etten perdeu a cerimónia e a vergonha

Segundo Sharon Van Etten deu a saber em recente entrevista à Elle, a composição de Remind Me Tomorrow teve início após uma digressão em que lhe coube deitar as primeiras achas para os sempre incendiários concertos de Nick Cave. Este facto, tomado assim de forma isolada, poderia empurrar a imaginação para a possibilidade de Etten voltar para casa faminta de novas criações, desejosa de se entregar a canções obsessivas, em que o rasto de folk que sempre lhe inundou os discos pudesse agora ganhar uma espessura carnal e de sangue fervente. Só que, durante essas semanas de estrada, a cantautora iniciou uma história de amor partilhada com o seu baterista e manager Zeke Hutchins, e a sua criatividade dirigiu-se para uma safra de temas mais em paz com o mundo e consigo. Sharon van Etten voltava para casa cheia de fogo, sim, mas o fogo era outro.

Quando, por fim, terminou o primeiro período de rascunhos de novas ideias, parira não apenas um conjunto de canções mas também uma criança — e o mundo dera voltas suficientes para depositar na Casa Branca um Presidente obcecado com a construção civil — ou, pelo menos, com a edificação de um muro pouco edificante. E Remind Me Tomorrow, quinto álbum na sua contabilidade pessoal, teria necessariamente de ser produto de sinais contraditórios na vida da cantora residente em Brooklyn, teria de saber injectar nos seus novos dez pedaços de música alguma da mudança que estava a atravessar.

“Quero ser mãe, cantora, actriz, quero estudar, mas sim, tenho uma nódoa na minha camisa, papa de aveia no meu cabelo e sinto-me numa enorme confusão, mas estou aqui. A fazer isto. Este álbum é sobre perseguirmos as nossas paixões.” E esta é a declaração oficial de Etten acerca de Remind Me Tomorrow.  Esta ideia de dispersão por vários papéis, que tem acumulado nos últimos anos, aplica-se também a um disco em que convoca tantas e tão diversas vozes quanto as de Emmylou Harris, Kate Bush, PJ Harvey, Anna Calvi ou Bruce Springsteen. E isto ao mesmo tempo que a sua sonoridade mais clássica se vê atravessada por uma regrada mas inequívoca permeabilidade à electrónica.

Na mesma entrevista à Elle, Sharon Van Etten revela os seus planos futuros e traça os 50 anos (actualmente tem 37) como ponto de transição na sua actividade principal: em vez de criadora de canções, psicóloga; em vez de o seu ritmo de vida ser regido pelas constantes digressões e ausências de casa, a estabilidade de estar fixada num mesmo sítio; em vez de remexer e chafurdar nas suas emoções, e de analisar a sua maior ou menos compatibilidade com a comunidade em que se insere, passar a fazê-lo em causa alheia e contra remuneração. Como se a música, afinal, pudesse hoje servir para Sharon se resolver a si mesma e, só depois, conquistada essa legitimidade, poder estender o gesto aos outros.

Remind Me Tomorrow parece gozar da liberdade dessa meta definida a médio prazo. A ideia de um futuro liberta Sharon Van Etten para o presente. O que significa que, sem deixar cair uma veia clássica que bombeava os seus álbuns anteriores (e que aqui tem como tema maior a belíssima canção esparsa e distentida que é Jupiter 4), Van Etten permite que a sua música ganhe langores de trip-hop, tal como também as Warpaint o abordaram (Memorial day e Hands), dir-se-ia que investiga a hipótese teórica de uma colaboração entre St. Vincent e Aimee Mann (You shadow), imagina uma canção descaradamente Anna Calvi sobre um instrumental que é variação de Sexy boy, dos Air (Comeback kid), ou atira o mais psicadélico e desapressado John Lennon para um braço de ferro com fantasmas country (No one’s easy to love). E há ainda a deliciosa perda de controlo na muito springsteeniana Seventeen.

Em cada tema, aquilo que verdadeiramente sobressai é o modo como Sharon Van Etten perdeu a cerimónia e a vergonha. E se permite fazer aquilo que lhe apetece, sem especiais preocupações de zonas interditas ou passos em falso. O que só lhe fica bem, muito bem mesmo.

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