Quando um hambúrguer pode salvar o planeta
A grande feira de tecnologia de Las Vegas, nos EUA, acontece todos os anos em Janeiro e é um dos melhores lugares para espreitar o futuro. É, também, uma bolha onde facilmente se acredita que a tecnologia não tem problemas. Na CES, um hambúrguer pode salvar o planeta.
Durante uma semana, Las Vegas substitui roletas e slot machines pelas novidades da tecnologia que chegam de todo o mundo. O Consumer Electronics Show, ou CES, é uma das maiores feiras tecnológicas e acontece desde a década de 1960. Aqui, é fácil sentir optimismo sobre um futuro em que carros se conduzem sozinhos, assistentes digitais que sabem tudo sobre os seus donos, e robôs que são o melhor amigo do homem. Falta de privacidade online? Roubo de dados? Ciberataques? São temas pouco presentes nestes 830 quilómetros quadrados.
Este ano foi um hambúrguer a conquistar grande parte da atenção. Todos os dias, os cerca de 180 mil visitantes fizeram fila para provar (ou repetir a experiência) o Impossible Burger 2.0. Tudo se passava numa pequena rulote situada nas traseiras do pavilhão dedicado às novidades do Google. O mais recente hambúrguer vegetal da Impossible Foods utiliza tecnologia para replicar artificialmente o sabor da carne e é apoiada pelo fundador da Microsoft, Bill Gates. Foi destacado pelas revistas especializadas Endgadget e Digital Trends como um dos produtos de topo da edição de 2019 da CES. A equipa que o criou quer usar a receita para ajudar a combater os efeitos da criação de gado no aquecimento global.
Laura Kliman vira, literalmente, hambúrgueres na grelha enquanto explica ao PÚBLICO que “comida é tecnologia”. É responsável pela ciência por detrás deste projecto que, tal como um hambúrguer tradicional, pode ser servido ao nosso gosto (bem ou mal passado), mas tem menos calorias, menos gordura saturada e menos sal do que um hambúrguer tradicional. E requer menos 75% de água, além de emitir menos 87% de gases poluentes. “Se vamos criar um hambúrguer que copia o sabor da carne, podemos criar um produto que seja mesmo melhor do que a carne”, diz Kliman.
Esta doutorada em Química Orgânica não se sente deslocada na CES ao lado de robôs inteligentes ou carros autónomos. “O nosso produto depende de tecnologia. Construímos uma plataforma que nos ajuda a entender como recriar o sabor de todas as espécies animais: porco, frango, peixe… E estamos sempre a trabalhar em protótipos interessantes”, justifica. Nos últimos três anos, Kliman tem passado os dias no laboratório a tentar recriar uma versão artificial de carne mais nutritiva e saborosa. O sucesso chegou quando descobriu uma forma de sintetizar o heme, fracção não proteica da hemoglobina que lhe confere a sua cor vermelha por conter ferro e que existe em grandes concentrações no músculo de animais. “O nosso projecto é uma forma fácil de começar a resolver o impacto da carne no aquecimento global.”
Esta meta ambiciosa encaixa bem na missão que Gary Shapiro, o presidente da Consumer Technology Association (a associação responsável pela CES) definiu para a feira: “Os produtos e serviços lançados aqui vão permitir aos cidadãos mudar o nosso mundo para o melhor”. Em 2019, além de espaços dedicados à robótica, cidades inteligentes, casas conectadas, carros autónomos e saúde, surgiu também uma nova área dedicada à resiliência. Foi pensada quando fogos na região de Napa Valle, na Califórnia, no final de 2017, deixaram a equipa da CES sem ligação à Internet ou electricidade durante uma importante reunião.
“Pensávamos que era uma falha na rede do hotel, mas depressa percebemos que a causa eram os fogos. A certa altura, perdemos a rede móvel e a única forma de termos informação era ir até ao parque de estacionamento e ligar o rádio do carro”, relembra Shapiro. Nos últimos anos, o impacto das mudanças climáticas tem-se sentido na intensidade e no número de incêndios naquela zona. “Fizemos a reunião à luz de velas. Mas despertou o nosso interesse para as tecnologias que permitem às cidades sobreviver com recursos limitados em caso de problemas.”
Salvar abelhas com tecnologia
Na CES, os exemplos abundam. Basta uma folha A4 e uma lente, por exemplo, para recriar a versão mais recente do microscópio da Foldscope — custa menos de um dólar (87 cêntimos) e foi concebido para mostrar que a ciência pode ser acessível a todos. Começou a ser desenvolvido pelo indiano Manu Prakash, em 2012, quando, numa visita a uma clínica na Tailândia, percebeu que alguns profissionais tinham medo de utilizar os microscópios topo de gama porque não os queriam estragar.
A Fybr, uma empresa do estado do Missouri, demonstrou uma plataforma que usa algoritmos inteligentes para monitorizar a qualidade do ar em espaços urbanos, avisar quando os caixotes de lixo estão sobrelotados, diminuir a intensidade das luzes na estrada quando, à noite, não existe movimento na zona ou ainda detectar problemas numa canalização. Já a francesa Beelife quer fazer o mesmo para abelhas. Numa altura em que estes insectos estão a desaparecer, o CoCoon é uma colmeia inteligente: os painéis solares no exterior monitorizam o ambiente no interior e enviam a informação para uma aplicação no telemóvel que alerta para problemas dentro da colmeia. O objectivo é ajudar as abelhas a viverem mais tempo, e a produzir mais mel.
Ambos os projectos dependem da acumulação de grandes quantidades de dados para funcionar — no caso da Fybr, vêm de sensores espalhados pela cidade, por exemplo nos sinais de trânsito e nas lâmpadas. A forma como estes dados são acumulados — para garantir a privacidade dos cidadãos — e guardados tem sido tema de debate nos últimos tempos. Há situações em que a tecnologia falha ou as empresas que a controlam abusam. Em 2013, a cidade de Londres foi protagonista de um caso particularmente flagrante quando uma empresa testou um programa com caixotes de reciclagem capazes de seguir o percurso de telemóveis que passavam por perto com o Wi-Fi ligado.
Apesar de a realidade virtual não receber tanta atenção na CES como em anos anteriores, também mostrou que pode ser usada para ajudar. A Rendever é uma das empresas a usarem a tecnologia para levar pacientes em hospitais e lares de idosos a revisitar memórias do passado. Com os óculos de realidade virtual, alguém pode “percorrer” as ruas por onde caminhou em criança, ou refazer o percurso que fazia entre casa e escola.
Já a SportsArts quer motivar as pessoas a fazer exercício. Criou um equipamento que transforma a energia do movimento em electricidade. Como? Imaginemos uma aula de cycling. A pedalar estamos a acumular electricidade que pode vir a iluminar um apartamento. “Para algumas pessoas, pode ser a motivação para ir ao ginásio”, explica a equipa.
No campo da robótica, a Brain Robotics mostrou como está a tentar utilizar a tecnologia de impressão 3D para facilitar o acesso a próteses robóticas com inteligência artificial. E os robôs Chuangze, Kiki, e Pillo estão entre os visitantes da CES com a missão de ajudar a população mais envelhecida a ter uma melhor qualidade de vida porque lhes fazem companhia e prestam ajuda (alertam, por exemplo, para a hora certa de tomar a medicação).
Privacidade ausente da CES
Ao contrário do hambúrguer da Impossible Foods – dos poucos em exposição que não requer uma ligação à Internet para funcionar –, a maioria destes aparelhos depende de uma conexão Wi-Fi para processar, transmitir informação e aprender mais sobre os donos. A CES evita o tema, mas há riscos.
Ao acumular dados, estes tornam-se comodidades que podem ser perdidos ou roubados. O ano de 2018 foi exemplo disso, com o romper do escândalo entre o Facebook e a consultora Cambridge Analytica, acusada de ter usado de forma imprópria os dados de milhares de utilizadores da rede social (nomeadamente, para campanhas políticas em todo o mundo). Meses mais tarde, um ciberataque aos computadores e servidores das autoridades municipais de Atlanta, nos EUA, levou a que aplicações usadas pela população para o pagamento de impostos e outros serviços estivessem bloqueadas durante dias.
Mas pouco se falou do tema na CES. Apenas na área de exposição das startups dedicadas à saúde se podia ouvir algo sobre o assunto. O alerta era dado por Carlo Perez, criador da Swift Medical, uma aplicação que aconselha as pessoas a cuidar de feridas crónicas com base em informação visual (o sistema usa a câmara do telemóvel para analisar se a ferida está bem limpa ou a infectar). A privacidade do sistema é essencial.
“Temos muitas pessoas a utilizar a nossa plataforma. O primeiro passo é garantir que fazemos uma boa curadoria dos dados, que todas as pessoas de quem temos informação nos deram essa informação, e que está a ser anonimizada”, diz Perez num pequeno palco no Eureka Park, a secção da CES dedicada a startups. Ao seu lado tinha Erin Locker, uma advogada norte-americana que nos últimos anos se tem dedicado a aconselhar startups a resolver problemas relacionados com privacidade. Entre mais de 300 palestras na CES, apenas quatro mencionaram a temática da privacidade de dados. Para Carlo Perez, a discrepância acentua o problema: “Um das barreiras que há nesta indústria é a falta de comunicação entre os engenheiros e a equipa legal, que é quem sabe o que é que se pode fazer. Não é só uma questão de conhecimento, é uma questão de cultura.”
E, como é hábito, a cultura da CES foi marcada por uma onda de positivismo onde empresas competiam todas por atenção, e os visitantes faziam filas para experimentar as ofertas. Temas mais difíceis foram preteridos porque importante parecia ser chegar ao fim da montanha-russa do Google, onde havia macarons ou fatias de pizza. Ou conseguir lugar nas apresentações de empresas como a Baidu (a dona do motor de busca que na China é o equivalente ao Google), onde o presidente atirou pandas de peluche aos visitantes. Outra opção era “navegar” pelos vários pavilhões a bordo dos carrinhos de golfe disponibilizados pela Yahama.
Para Gary Shapiro, esta visão positiva da tecnologia faz parte da equação: “A CES é um espaço em que as empresas podem contactar com pessoas de todo o mundo. E esse é parte do potencial que queremos manter.”