Entre dúvidas e promessas de segurança, o que fará o fisco com os saldos bancários?
Ao conhecer as contas acima de 50 mil euros, a administração fiscal ganha mais um elemento para juntar às análises de risco dos contribuintes. Lei prevê segurança reforçada dos dados. Constitucionalistas deixam alertas.
A nova lei que permitirá à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) conhecer os saldos das contas bancárias acima de 50 mil euros continua a dividir opiniões. Mas agora que foi aprovada e tem promulgação quase garantida pelo Presidente da República, os alertas de quem olha de fora vão sobretudo para as cautelas em relação à protecção dos dados dentro do fisco. Estará o novo manancial de informação seguro dentro da AT? E o que vai a máquina fiscal fazer com ele?
Ao passar a conhecer o saldo bancário, a AT terá mais um elemento a juntar aos que hoje lhe são comunicados, desde as declarações de rendimento, aos juros, dividendos e rendimentos financeiros. É mais um dado que poderá ser usado para olhar de forma transversal para o património dos cidadãos e, cruzando as linhas, ajudar a detectar casos de ocultação de património ou subdeclaração de rendimentos.
Fernando Rocha Andrade, professor de direito, deputado do PS e ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (quando o diploma agora repescado pelo Governo foi apresentado pela primeira vez em 2016), rejeita a tese de que há uma suspeita prévia em relação aos contribuintes. O que este mecanismo permite, diz, “é detectar [as] situações que podem ser suspeitas: grandes variações patrimoniais que não tenham correspondência nas declarações de rendimento entregues pelas pessoas”.
Da mesma forma que “nenhum mecanismo por si só leva a uma suspeita, nenhum mecanismo por si só” resolve os problemas, afirma, sublinhando que a AT poderá fazer com a informação o que hoje faz com aquela que tem ao seu dispor: identificar indicadores de risco através de mecanismos informáticos.
O presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos, Paulo Ralha, para quem só uma visão integrada do património dos contribuintes permite ler a realidade toda, concorda. Com este dado novo será possível juntá-lo ao “quadro de análise de risco” e, com isso, “fazer uma seriação dos contribuintes que têm um risco mais elevado”.
No fisco, os dados não estarão à vista de todos, antes serão de acesso restrito e sujeito a autorização. Isso já acontece com os dados que o fisco recebe sobre o saldo dos não-residentes, a quem se aplicam as regras especiais de segurança da Lei da Protecção de Dados Pessoais. Por exemplo, a norma prevê que os dados "não sejam lidos, copiados, alterados ou retirados por pessoa não autorizada”.
Não se conhecem, porém, os procedimentos internos do fisco, nem o Governo desenvolveu o assunto para além de dizer, nas explicações que acompanham o articulado da lei, que “a confidencialidade dos dados obtidos é garantida”. O presidente da Transparência e Integridade – Associação Cívica (TIAC), João Paulo Batalha, considera que não se devia “alargar cegamente os poderes da autoridade tributária sem primeiro ter a certeza de que isso é mesmo necessário, de que há ganhos de eficácia objectivos que compensem os riscos, que existem e são muitos”.
João Paulo Batalha teme que os dados possam ser acedidos facilmente por qualquer funcionário do fisco e, no limite, acabar por ser ‘comercializados’ à margem da lei. Mas, vinca Fernando Rocha Andrade, os dados passam de uma esfera de sigilo (no banco) para outra esfera de sigilo (no fisco). O presidente do sindicato concorda: “Os dados ficam sigilosamente guardados por quem tem acesso a eles.”
Os níveis de privacidade
O constitucionalista Jorge Miranda tem o mesmo tipo de receio de João Paulo Batalha, mas junta-lhe dúvidas de constitucionalidade sobre a medida em si. “É uma violação da privacidade das pessoas, ainda por cima quando os controlos de garantia dos dados pessoais não são extremamente seguros”, disse ao PÚBLICO, ressalvando não conhecer o articulado aprovado.
O professor da Faculdade de Direito de Lisboa, considerado um dos “pais” da Constituição, lembra a jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão que distingue três níveis de privacidade em função da dimensão pública da pessoa: “Se em relação ao homem público, com cargos políticos, a publicidade deve ser praticamente total, salvo os aspectos da vida puramente íntima, pessoal, já em relação ao cidadão comum, a intimidade deve ser total.” Pelo meio ficam personalidades públicas, que estariam no meio-termo.
O seu colega de cátedra e de faculdade Jorge Reis Novais tem uma posição totalmente contrária. “Não me parece que a afectação da reserva da vida privada seja significativa, porque aquilo que está em causa é o dever de toda a gente pagar impostos de acordo com os seus rendimentos”, contrapõe, considerando “natural num Estado de Direito” o fisco saber quais são os rendimentos e a riqueza de cada pessoa.
Para Reis Novais, a importância que se tem dado ao “dito sigilo bancário” parece-lhe excessiva. “É mesmo incompreensível como é que, nesta altura, ainda se fala em sigilo bancário como sendo um direito fundamental — que não é —, nem em Portugal nem em praticamente país nenhum”, afirma.
A Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC), um serviço de inspecção tributária do fisco, começou por acompanhar 420 empresas, mas em 2017 ganhou também competências em relação aos contribuintes com mais rendimento e património (cerca de 760). Mas a sua missão não é apenas essa: também lhe cabe detectar os contribuintes que tenham manifestações de fortuna apesar de não serem grandes contribuintes.
O próprio Governo, nas explicações que acompanham o articulado da lei, refere-se às medidas de troca de informação como “mecanismos de combate à fraude e evasão fiscais transnacionais associados a esquemas de ocultação de activos financeiros e ao enriquecimento ilícito”.
Na Dinamarca, França, Holanda ou Espanha, por exemplo, as autoridades tributárias têm informação sobre contas bancárias. E na Austrália, o fisco tem acesso a uma base de dados centralizada que permite identificar os números das contas e as instituições onde os cidadãos têm o dinheiro.
Jorge Reis Novais não deixa, porém, de alertar para a necessidade de a medida ser rodeada de especiais cautelas. “Todas as restrições que existem para todos os dados pessoais também se aplicam neste caso. Pode haver violações a essas garantias, mas isso já é outro problema.”
O e-Factura
Um dos debates intensos de 2016 tinha no centro uma pergunta: a medida abala a reserva da vida privada? João Paulo Batalha considera que a questão da devassa existe mais no lado da despesa do que na receita. Também Rocha Andrade considera que o e-Factura é “um pouco mais invasivo” do que a medida agora em jogo. “A falta de discussão em torno do e-Factura sempre me surpreendeu um pouco, devo dizer, porque ela coloca um ónus no sujeito passivo. A AT não conhece o conteúdo das facturas, mas conhece o valor cobrado por certos fornecedores”, afirma o ex-secretário de Estado.
O fisco não vai transmitir a informação a terceiros, ao contrário do que tem de fazer em relação ao saldo bancário dos não-residentes (dados idênticos aos que recebe em relação aos portugueses com contas no estrangeiro).
A directiva europeia sobre a troca de informação lembra a necessidade de as administrações fiscais conhecerem não apenas rendimentos relevantes como os juros, os dividendos e outros ganhos similares, mas também os saldos das contas, para que as autoridades possam “ter em conta situações em que um contribuinte tente ocultar património representativo de rendimentos ou activos que tenham sido objecto de evasão”. E dizia que o tratamento dessa informação “é necessário e proporcionado” para que as administrações fiscais “possam identificar de forma correcta e inequívoca os contribuintes em causa”.
Quando, em 2016, Marcelo vetou a primeira iniciativa do Governo, apenas travou a parte que dizia respeito aos residentes em Portugal (não a obrigação de os bancos comunicarem o saldo sobre os não-residentes, que resultava de obrigações internacionais). Se é certo que lembrou que a Comissão Nacional de Protecção de Dados alertara para o princípio constitucional da proporcionalidade, as razões de fundo do veto tinham a ver com a necessidade de consolidação do sistema bancário naquele momento e, para isso, da confiança dos depositantes e investidores.