Em Guadalajara, Almada Negreiros mede-se com Orozco
A representação portuguesa na Feira do Livro de Guadalajara, no México, incluiu três exposições de artes visuais. Entre elas, uma sobre a pintura mural de Almada Negreiros, no mesmo local onde o muralista mexicano José Clemente Orozco pintou alguns dos seus frescos mais importantes.
Portugal, que foi o país convidado de honra na última Feira Internacional do Livro de Guadalajara (FIL), no México, incluiu na sua representação três exposições de artes visuais: Variaciones de una tradición: de los pañuelos de amor a los bordados com poesia, sobre lenços de namorados, no Museu Regional; Ana Hatherly y el Barroco: en un jardín hecho de tinta, uma adaptação da grande antológica de Ana Hatherly que esteve na Gulbenkian, de Outubro de 2017 a Janeiro de 2018, a decorrer no MUSA, o Museo de las Artes de la Universidad de Guadalajara; e, finalmente, Lo que cuentan las paredes: Almada Negreiros y la pintura mural, no Instituto Cultural Cabañas. Terminam todas no próximo dia 3 de Fevereiro.
Se a primeira é uma exposição de cariz mais etnográfico, como o tema o indica, as outras duas incidem especificamente sobre a arte: arte barroca, arte já a cruzar o final do modernismo e o princípio da contemporaneidade, no caso de Ana Hatherly, e arte modernista, no de Almada.
Estas duas exposições foram realizadas por curadores que se têm afirmado como especialistas no seu particular domínio: Paulo Pires do Vale, que também assinou a exposição de Hatherly em Lisboa, e que tem demonstrado por diversas vezes possuir a capacidade indiscutível de estabelecer pontes formais e conceptuais entre arte antiga e contemporânea, como aqui sucede. E Mariana Pinto dos Santos, que com Ana Vasconcelos assinou a curadoria da grande antológica da obra de Almada Negreiros no Museu Gulbenkian, no mesmo ano. Chamava-se ela Uma maneira de ser moderno.
A exposição de Ana Hatherly, adaptada ao espaço do MUSA, não sofre alterações maiores de conceito. Pires do Vale escolheu, e bem, substituir algumas das obras de arte antiga por outras, seleccionadas no museu de arte sacra de Guadalajara, que possui um núcleo importante de peças barrocas. Há um relicário impressionante numa das salas, que contém um crânio dentro de uma caixa de cristal, naquela que será talvez a novidade maior desta montagem.
Este museu, integrado na Universidade de Guadalajara, possui também um excepcional conjunto de frescos de José Clemente Orozco (1883-1949). O artista, que era natural de uma cidade próxima de Guadalajara, integrou o grupo dos muralistas mexicanos que, a partir da década de 1920, pretendeu equiparar a Revolução Mexicana a um estilo artístico correspondente, optando então pela pintura mural. No edifício do museu, num anfiteatro intitulado Paraninfo Enrique Diaz de Léon, Orozco compôs dois grandes murais: um, perpendicular ao palco, sobre O povo e seus falsos líderes, e outro, na abóbada, que é uma alegoria sobre As Cinco Fases do Homem. Neste último, o primeiro que levou o artista a estudar o modo de criar efeitos perspécticos numa superfície côncava, não faltam personificações das diferentes ciências exactas e das práticas artísticas que a ela estão ligadas, como a arquitectura. Este trabalho, como os outros dois murais que realizou em Guadalajara, no Palácio do Governo – um tema histórico – e no Instituto Cultural Cabañas, foram pintados entre 1936 e 1939.
Um muralista humanista
José Clemente Orozco não será o mais famoso dos pintores muralistas mexicanos. Essa palma talvez caiba a Diego Rivera (1886-1957), que entre 1907 e 1921 viveu na Europa, nomeadamente em Paris, Madrid e Itália, onde estabeleceu uma rede de contactos com artistas de vanguarda da época que se revelaria fundamental para a sua fama (juntamente com o turbulento casamento com Frida Kahlo) e para a própria difusão do muralismo no Ocidente.
Como Orozco (David Siqueiros, entretanto, perder-se-ia no radicalismo político, tendo estado implicado num atentado contra Trotsky na altura em que este vivia no México), Rivera teve também uma actividade artística importante nos Estados Unidos. Ambos tiveram pinturas murais destruídas nesse país, embora a obra de Orozco se distinga por uma abordagem humanista e muito pouco panfletária dos propósitos da revolução que se vivia à época no México.
O historiador Arturo Camacho, interveniente numa das mesas-redondas que ocorreram em Guadalajara por ocasião da FIL, defende mesmo que Orozco não era revolucionário. E destaca a sua ligação ao expressionismo alemão, que o pintor mexicano teria conhecido durante uma viagem à Alemanha, onde privou com George Grosz (1893-1959), o grande pintor germânico do período entre as duas guerras mundiais.
De facto, há na obra de Orozco um interesse pelo símbolo e pelo gesto que não encontramos no trabalho dos outros muralistas. Os elementos alquímicos estão quase sempre presentes nas suas grandes composições, e nomeadamente no terceiro grande ciclo de frescos realizados em Guadalajara, os que estão no Instituto Cultural Cabañas. Aqui, o pintor concebeu uma saga sobre a história do México, pensada como queda, expiação e catarse, que tem o seu cúmulo na cúpula do espaço pintado. Nesta, intitulada O Homem de Chamas, representa-se um moderno Prometeu (aquele que, na mitologia grega, rouba o fogo dos deuses para o trazer para a terra), que pode e deve ser interpretado como o novo homem que nasce dos tempos heróicos que então se viviam.
Uma arte oficial
É aqui, mesmo ao lado dos frescos de Orozco, que está a exposição vinda de Lisboa para estabelecer um paralelo entre a obra do nosso Almada Negreiros e a do pintor mexicano. Dura aposta. É que, obviamente, as mais famosas peças de Almada feitas nesta técnica – os frescos das gares marítimas da Rocha-Conde de Óbidos e de Alcântara – não puderam viajar, por razões óbvias, tendo sido substituídas por um conjunto de tapeçarias que reproduzem as imagens dos painéis, mas que não podem, nem de longe, ombrear com o seu impacto sobre o espectador.
É também oferecida aos visitantes o contexto da realização destes trabalhos públicos de grandes dimensões, bem como doutros que os precedem e com eles se relacionam, caso dos vitrais para a Igreja de Nossa Senhora de Fátima, em Lisboa, do final dos anos 30, ou dos estuques feitos para o Cinema San Carlos, em Madrid, na época em que Almada aí viveu.
É sabido que os muralistas mexicanos, bem como Cândido Portinari, de quem os portugueses puderam ver uma pintura, Café, na Exposição do Mundo Português, em Lisboa, em 1940, precederam e influenciaram o nascimento do movimento pictórico neo-realista em Portugal. Almada Negreiros nunca foi neo-realista. Pelo contrário, deu-se sempre bem com o Estado Novo, condição indispensável para conseguir todas as encomendas públicas que desejou nesses anos 30 e 40. O neo-realismo estava conotado com o Partido Comunista Português, então clandestino, e foi essa conotação que motivou a destruição dos frescos feitos pelo melhor pintor do movimento, Júlio Pomar, para o Cinema Batalha, no Porto, em 1946, sensivelmente contemporâneos dos trabalhos nas gares marítimas.
Almada era hábil de mais, esperto de mais para se deixar enredar numa oposição política que lhe tiraria os meios de sustento, na melhor das hipóteses. Como Picasso, que admirava imensamente, é um exímio desenhador que muda de estilo ao sabor do tema. Os frescos das gares marítimas são prova disso, ao alternarem entre um cubismo sintético próprio de quem viu em tempos, talvez em Paris, a obra do mestre espanhol, e um traço ingénuo e popular, mais apropriado às lendas populares de D. Fuas Roupinho e da Nau Catrineta.
Segundo nos diz a curadora da exposição, Mariana Pinto dos Santos, o governo da altura terá ficado “furioso” com os frescos, que estavam bem distantes da imagem pobrezinha e contente do "bom povo português", e terá pretendido destruí-los. Na realidade, no catálogo da exposição de Lisboa, apenas se refere uma carta do ministro das Obras Públicas ao director do Museu Nacional de Arte Antiga, João Couto, a pedir um parecer sobre estas obras, que, na opinião do político, dariam uma imagem desadequada dos portugueses.
Mas isto são pormenores. A obra de Almada Negreiros, que decerto conheceu pela imprensa e por revistas as dos muralistas mexicanos, surge hoje, neste confronto feito em Guadalajara, como cuidada, melancólica, com algo dessa paragem no tempo que algumas manhãs lisboetas, como as que o artista representou na beira-rio, às vezes parecem traduzir. Não possui nem a força, nem o arrebatamento, nem o dramatismo que a de Orozco demonstra. Em comum, para além da técnica, há contudo algo que os liga: o facto de os dois artistas terem trabalhado para o Estado e de, por essa razão, terem produzido, quer o quisessem quer não, uma arte oficial.
O PÚBLICO viajou a convite do comissariado para a participação portuguesa na FIL Guadalajara 2018