A Casa da Música à descoberta dos Novos Mundos

No ano em que parte à descoberta do continente americano, a instituição regressa aos Estados Unidos, país tema em 2011, mas abre-se à diversidade de uma produção musical multifacetada e em parte desconhecida em Portugal.

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O genialíssimo Charles Ives, figura fundadora da música erudita norte-americana DR

Quando, em 1889, na Exposição Universal de Paris, Claude Debussy descobriu o gamelão de Java, deu-se o momento inaugural de um dos aspectos centrais do que viria a ser a música do século XX, considerada na sua totalidade: a descoberta e a difusão das músicas tradicionais, mormente extra-europeias.

Se o século passado foi, na música erudita europeia, o do colapso da tonalidade funcional que prevalecera durante cerca de 300 anos, numa panorâmica mais global há a considerar essa descoberta das músicas tradicionais, bem como outro facto capital: a afirmação de um novo continente musical, a(s) América(s), desde logo com o jazz, mas também, no campo mais ou menos erudito, com a variante autónoma da proximidade entre música de concerto e essa outra criação especificamente americana que é o “musical”, e com os novos mundos da música erudita propiciados pelo afastamento dos centros da tradição europeia, que se afirmou a partir de um músico quase amador (no sentido de que nunca foi profissional, era sim homem de negócios), o genialíssimo Charles Ives (1874-1954).

Desde 2007 que a programação da Casa da Música tem como eixo central, a cada temporada, um país tema. Já houve excepções a essa restrição a um específico país, logo em 2008, com os nórdicos (mas nesse caso eram basicamente os finlandeses) e, em 2014, com um muito mais vasto conceito de Oriente, que foi aliás a programação em que em vão se procurava uma efectiva coerência.

Claro que este modelo de programação um dia se esgotará, porque não há assim tantos países com uma tradição e uma contemporaneidade que justifiquem ser eixo de uma programação anual – de resto, no ano passado, a Áustria foi país tema pela segunda vez.

E, no entanto…

E no entanto, eis que para 2019, em vez de um país, há sim um continente, multifacetado: os Novos Mundos, a(s) América(s). E eis que, por reparos que haja a fazer, a programação é deveras excepcional, na sua diversidade mesmo a mais aliciante que a Casa alguma vez nos propiciou.

É de recordar que, já em 2011, os Estados Unidos tinham sido o país tema, e que por isso agora voltam a estar presentes certos autores, como aqueles que representam o mainstream da música americana, um Aaron Copland, um George Gershwin ou um Leonard Bernstein (mas também dois contemporâneos, Steve Reich e Elliot Carter), ainda que não sem o efeito perverso de outros, tendo sido muito tocados nesse outro ano, estarem agora ausentes – e são ausências marcantes as de alguns autores de um ou de outro modo fundamentais, como um John Cage ou mesmo um Frank Zappa.

Mas se nem por isso deixam de voltar a constar da programação alguns autores, algumas obras, absolutamente fulcrais, da música dos Estados Unidos, o programa é deveras aliciante porque inclui também um compositor canadiano, do Quebeque, Claude Vivier (1948-1983), e alguns importantíssimos autores latino-americanos, sobretudo o mexicano Silvestre Revueltas (1899-1940) e o argentino Alberto Ginastera (1916-1983), pouquíssimo conhecidos em Portugal.

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O compositor argentino Alberto Ginastera consta do programa de abertura desta sexta-feira DR

Da descoberta da América às cosmogonias maias

Vejamos o programa desta sexta-feira, abertura oficial do ano Novo Mundo: a descoberta da América por um europeu, a bem conhecida Sinfonia Do Novo Mundo, de Dvorák, é precedida da fabulosa Popol Vuh, la creación del mundo maya (sim, a partir do relato maia da Génese, mesmo que a obra tenha sido composta por um argentino, Ginastera), obra que, de resto, nalguns planos se pode pôr em paralelo com A Sagração da Primavera, de Stravinsky.

Mas se esta é a abertura oficial, dir-se-á que a efectiva abertura se prolonga nos concertos da próxima semana, na sexta-feira, dia 18, com um concerto mesmo designado Américas, em que além da Abertura Cubana, de Gershwin, e da Abertura da opereta Candide, de Bernstein, haverá Orion, de Claude Vivier (que o programa da Casa da Música indica como sendo em estreia em Portugal, quando curiosamente é das pouquíssimas que foram feitas nos Encontros de Música Contemporânea da Gulbenkian). Já agora, outra curiosidade: quem dirige este concerto é o maestro titular da Orquestra Sinfónica do Porto, Baldur Brönnimann, mas quem a gravou, como à outra obra orquestral do canadiano, Siddartha – que será ouvida a 23 de Fevereiro –, foi Peter Rundel, que dirige o Remix Ensemble, outro dos agrupamentos residentes da instituição. Ainda no concerto do dia 18, seguem-se duas superlativamente emblemáticas obras-primas, Sensemayá, de Revueltas (outro caso de parentesco com a Sagração), e, como seria inevitável, Amériques, de Varèse. No concerto do dia seguinte, sábado, intitulado Viagem na América, ouvir-se-ão A Peça das Rosa dos Ventos –​ Oeste, de Mauricio Kagel, Trois airs pour une opéra imaginaire, de Vivier e, esta sim mesmo em estreia em Portugal, Tehillim, de Reich.

Convém recordar que, apesar de radicado na Alemanha, Kagel era argentino – de resto, só um não-europeu poderia escrever uma peça como Exotica – e que a obra que ouviremos é, como se pode inferir, uma das quatro que compõem A Peça.

Quanto a Vivier, arrisca-se a ser conhecido mais pelas circunstâncias da sua morte do que pelas suas obras. “É o nosso Pasolini”, dizia o conhecido maestro Reinbert de Leeuw, pois ele foi assassinado por um prostituto. Mas o importante é atender ao modo como o compositor canadiano se entendia, por assim dizercomo uma espécie de medium que punha em música as sensações do mundo.​

E por estes três concertos de abertura nos ficamos agora, não sem desde já chamar a atenção para que, se tudo correr bem, o acontecimento maior de todo o ano musical (e não apenas da programação da Casa) será a estreia em Portugal da absolutamente espantosa Sinfonia n.º 4, para piano, coro e orquestra, de Charles Ives (Amériques e esta sinfonia, duas das máximas obras de todo o século XX, com menos de dois meses de intervalo!), num tanto mais notável programa quanto essa obra será precedida de The Unanswered Question, do mesmo compositor, e de My Father Knew Charles Ives, de John Adams (9 de Março), e das Glosas sobre um tema de Pau Casals, de Ginastera, além de outra obra-prima de Revueltas, La Noche de los Mayas (15 de Março).

Será mesmo um ano excepcional na Casa da Música.

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