Ao longo do tempo, novas gerações provocaram recomeços em que, de repente, um novo futuro parecia ser possível. No território onde construímos esta crónica — o do cinema português — parece evidente que houve várias renovações geracionais que permitiram rupturas, mesmo que na distância histórica tudo possa parecer mais atenuado e quase invisível. Este fenómeno é tanto mais interessante porque se coloca, na maior parte das vezes, nos lugares das novas juventudes e das suas idiossincrasias. Neste texto, a problemática, digamos, epistemológica será, como verão, ainda maior, porque tenderemos a proclamar a existência de uma nova renovação geracional e um novo recomeço no cinema português contemporâneo.
Sabemos hoje que, em 1963, vários factores conjunturais convergiram para a possibilidade de existência de um novo tipo de cinema, claramente contrário ao velho cinema das comédias à portuguesa ou das adaptações histórico-literárias. Poderíamos citar Acto da Primavera ou A Caça (ambos de Manoel de Oliveira, 1963-64); ou ainda Dom Roberto (Ernesto de Sousa, 1962); mas seria com Os Verdes Anos (Paulo Rocha, 1963) que o novo cinema se catapultaria como um capítulo decisivo do cinema português. Não foi tanto pela radicalidade do filme, mas mais pela sua dimensão urbana, trágica — posicionada num cinema moderno e existencialista —, na qual um jovem casal se sente perdido na grande cidade; e pela frescura do filme, já que a equipa era toda muito jovem e quase todos faziam o primeiro filme. Obra inaugural das produções Cunha Telles, marcava uma nova forma de fazer cinema e dava lugar à emergência de uma nova geração que dominaria as décadas seguintes (e mesmo a ideia de cinema português como conceito), com nomes como Fernando Lopes, João César Monteiro ou José Fonseca e Costa.
Nos anos 80, o cinema português viveu novo fulgor, sobretudo com alguns sucessos comerciais que recentravam a discussão sobre a função colectiva do nosso cinema. No entanto, com estruturas de produção frágeis, a década foi percorrida através de solavancos marcados por um factor político e económico fulcral: a adesão à Comunidade Económica Europeia. Aqui estava, depois do 25 de Abril, um acontecimento histórico que reformulava o imaginário português. Neste contexto, uma obra tornou-se paradigmática: Uma Rapariga no Verão (Vítor Gonçalves, 1986). Ponto zero de uma geração que Jorge Mourinha já classificou como “esquecida”, o filme era feito por uma rede de amigos da Escola de Cinema: “Del Negro na imagem, Pedro Caldas no som, Ana Luísa Guimarães na montagem, Bogalheiro na produção, Pedro Costa como assistente de realização, Leitão como actor”. Imitando as condições de produção precárias próximas de Os Verdes Anos, Uma Rapariga no Verão era também um filme em que a passividade dos protagonistas jovens colocava-os num limbo identitário, sem um futuro claro. Era um cinema sem pai, com narrativas de jovens órfãos ou perdidos. Seria o prenúncio para outros filmes e autores que o imediatamente sucederam (Teresa Villaverde, Pedro Costa, Joaquim Pinto).
Cerca de uma década depois, no entanto, um novo fenómeno foi percebido por Augusto M. Seabra, que assinalava a existência de “um cosmopolitismo com evidentes sinais de um novo paradigma cinéfilo” e falava da explosão de novos autores no universo da curta-metragem, resultado evidente de novas políticas culturais, de dimensão europeia, do Instituto de Cinema. Se, por um lado, Parabéns! (João Pedro Rodrigues, 1997) foi um filme promissor nas suas experiências formais e temáticas, a verdade é que o núcleo de filmes produzido pela O Som e a Fúria — com destaque para Entretanto (Miguel Gomes, 1999), que tem a participação de Sandro Aguilar na montagem e Rui Poças na fotografia — criou um novo paradigma, inventando objectos tanto fantasiosos como poéticos, centrados em jovens adultos de classe média e nas suas crises existenciais. As Gerações Curtas, como ficaram conhecidas, seriam um sismo com novos abalos a meio da década de 2000, com autores como Cláudia Varejão, João Nicolau, Salomé Lamas, João Salaviza ou Gabriel Abrantes.
Olhando para estes fenómenos, tão intensos e interessantes pela sua capacidade de ruptura ou de reinvenção de uma cinematografia — mesmo que isso não tenha sido procurado pelos autores —, o momento actual parece ter características de um novo momento zero. É difícil, no entanto, mapear cabalmente onde estão os protagonistas desta mudança, mas alguns sinais são promissores. A estreia, esta semana, de Terra Franca (Leonor Teles, 2018), é exemplo de um cinema comprometido com a experiências dos lugares e das suas pessoas. Teles tem sido uma ponta de lança desta geração, quer seja pelo seu exercício fílmico-político Balada de um Batráquio (2016), quer seja pela sua participação, como directora de fotografia, em Verão Danado (Pedro Cabeleira, 2017). Apesar da evidente fragilidade desta última obra, ela condensa um retrato de uma nova geração à procura do seu lugar e da sua identidade. A emergência de colectivos, como a Terratreme ou o Bando à Parte, são ainda a prova de uma diferença, que passa também pelo fim da Escola de Cinema como o único lugar de saída do novíssimo cinema português.
Em todos estes filmes, sente-se o fulgor de uma nova juventude à procura dela própria, talvez aquilo que tenha marcado todos os momentos zero que aqui assinalámos. Essa juventude e esse fulgor parecem marcar os filmes de Teles e Cabeleira (mas também os de Diogo Costa Amarante, Duarte Coimbra ou David Pinheiro Vicente), num registo que nos aproxima deste nosso tempo contraditório, mas também profundamente humano. Filmes zero, filmes de um recomeço.
Professor da Escola das Artes, UCP / Programador