Propostas sobre crime de violação baixam à especialidade sem votação
Projectos do PAN e do Bloco para alterar legislação sobre delitos sexuais querem centrar o conceito de crime de violação na ausência de consentimento da vítima, mas outros partidos colocam reservas aos diplomas. PS vai apresentar proposta em breve.
As propostas do PAN e do Bloco de Esquerda para alterar a tipificação do crime de violação de modo a incluir actos sexuais sem consentimento da vítima devem baixar à especialidade sem serem votadas na generalidade. A decisão foi anunciada pelo PAN no final do debate desta quinta-feira, e confirmada também pelo BE. Os diplomas baixam à comissão sem votação, por 60 dias, para procurar consensos em alguns aspectos, "em particular no que se refere ao pressuposto do consentimento", afirma ao PÚBLICO o deputado André Silva.
Em análise estão propostas de alteração legislativa que trazem o conceito de consentimento para a redacção dos crimes de violação e de coacção sexual, retirando as referências ao uso de violência ou ameaça grave. Ambos os partidos propõem ainda que estes sejam considerados crimes públicos, ou seja, permitindo que as autoridades abram e levem a cabo o processo mesmo que a vítima não apresente queixa. Propõem ainda um aumento das molduras penais, com o objectivo de garantir que as penas de prisão, em caso de condenação, sejam sempre efectivas.
Em plenário, o deputado do PAN afirmou que "a desconsideração destes crimes passa à sociedade uma mensagem de impunidade e uma consequente sensação de falta de protecção". Também a deputada Sandra Cunha, do BE, sublinhou que qualquer "acto sexual não consentido é uma situação de violência".
A discussão agendada a pedido do PAN, que fechou a sessão plenária desta quinta-feira, reuniu críticas dos vários partidos aos projectos de lei, em particular reservas em legislar a reboque de acórdãos polémicos como os que motivaram manifestações em Outubro deste ano.
Em comum às intervenções esteve o reconhecimento de que este é um debate oportuno sobre um tema importante, o que levou o deputado proponente, André Silva, a decidir levar o projecto de lei para a especialidade “para se encontrar a melhor redacção”. A votação estava prevista para sexta-feira.
Algumas das críticas mais incisivas vieram de Isabel Moreira, do PS, que apontou "problemas técnicos sérios", colocando em questão a constitucionalidade de alguns pontos dos projectos. “Não podemos, quais legisladores transformados em activistas de casos, ir mudando a lei para reduzir o número a zero de possibilidades de más fundamentações judiciais”.
Os socialistas, contudo, mostraram-se disponíveis para participar activamente no debate sobre possíveis alterações à lei. Isabel Moreira, que fez parte do grupo de trabalho sobre as implicações legislativas da Convenção de Istambul que levou às alterações de 2015, afirmou que o PS “fará uma proposta a curto prazo no que toca à concretização da Convenção de Istambul, em matéria de consentimento da vítima”. “Façamos um trabalho sério, em conjunto, ouvindo entidades e personalidades que possam contribuir para uma boa alteração destes tipos penais”, concluiu.
Também a deputada Sandra Pereira, do PSD, colocou reservas à introdução explícita do conceito de não-consentimento na redacção da lei, substituindo o "constrangimento". Segundo afirma, "estamos a retirar elementos objectivos na definição, acrescentando-lhe subjectividade", o que, afirma, pode gerar "dificuldades interpretativas". A social-democrata sublinhou o carácter privado da violência sexual, colocando "fundadas reservas" à passagem a crime público. E recordou que "não é justo dizer que Portugal não cumpre a Convenção de Istambul", afirmando que esse artigo foi "deliberadamente alterado em 2015 por forma de acomodar todas as situações de sexo sem consentimento".
António Filipe, do PCP, sintetizou as reservas dos comunistas em relação a três pontos: os aumentos de penas, que considera serem desproporcionados; a prossecução do processo contra a vontade da vítima, recordando que mesmo nos casos de violência doméstica é possível suspender o caso; e a ideia de que a mudança da lei será um veículo de mudança social. O deputado comunista sublinhou que compartilha as preocupações do PAN e do BE, mas caracterizou as propostas concretas como "mediaticamente sedutoras" e "falsas soluções" com as quais o PCP não se identifica.
Por fim, Vânia Dias da Silva, do CDS-PP, também mencionou três pontos em que o CDS discorda das propostas apresentadas: as dificuldades probatórias que poderão decorrer da introdução do elemento subjectivo do consentimento na tipificação do crime; a desadequação deste conceito para a definição dos crimes de abuso sexual de pessoa internada; e o facto de se tratar de uma proposta avulsa, que deveria ser analisada no contexto de uma "revisão sistemática" do Código Penal - uma revisão que o CDS propôs em Março do ano passado.
Evitar penas suspensas
Em conversa com o PÚBLICO, o deputado André Silva explica que “o mais importante e fundamental” é que o paradigma seja alterado: “se não há consentimento, há crime de violação”. O deputado aponta que uma das preocupações do PAN é o número “elevado de condenações com pena suspensa”, justificando a proposta de endurecer as molduras penais.
A propósito do projecto de lei do PAN, a Associação Portuguesa das Mulheres Juristas (APMJ) enviou um parecer em que concorda, “na generalidade”, com o teor da proposta. A começar com o foco na ausência de consentimento da vítima, que consideram ser “o modo correcto e adequado para dar cumprimento ao disposto no artigo 36.º - acrescentando, no entanto, que deveria estar explicitada a necessidade de haver “consentimento da vítima livre e expresso”, conforme a Convenção de Istambul.
A associação de juristas concorda com tornar o crime de violação um crime público, e vai ainda mais longe: recomenda que se atribua também “a qualidade de crime público” aos crimes de fraude sexual, procriação artificial não consentida e importunação sexual (onde se incluem algumas formas de assédio sexual). Por fim, a APMJ escreve que a “extrema gravidade destes ilícitos” e a sua “danosidade social” justificam o aumento das penas mínimas e máximas.
O deputado André Silva recorda que os quatro pareceres recebidos a propósito da proposta do PAN “concordaram com a questão do consentimento”, tendo sido em geral elogiosos da iniciativa. Mostrou-se ainda disponível para "limar arestas" em sede de especialidade.
Em 2015, houve um conjunto de alterações legislativas para dar cumprimento ao disposto na Convenção de Istambul, entre as quais alterações nos crimes de violação, coacção sexual e importunação sexual. Desde então, para além de um aumento das penas de prisão, reconhece-se que em vez da força possa haver “constrangimento” a actos sexuais, mas este é um conceito que o Governo já reconheceu que não é suficiente para incluir todas as situações em que há ausência de consentimento.