Kabila fez “um acordo com o candidato da oposição menos ameaçador”
Ben Shepherd, especialista em política africana da Chatham House, diz que, apesar de haver um novo Presidente na República Democrática do Congo, o Estado irá permanecer fraco e assente em redes de interesses.
Para o especialista em política africana no think tank britânico Chatham House Ben Shepherd, a vitória de Felix Tshisekedi foi uma surpresa. Porém, nunca pensou que Joseph Kabila tivesse a capacidade para se manter eternamente no poder. O próximo Presidente será “mais fraco”, antevê o investigador. Apesar de notar aspectos positivos na eleição de Tshisekedi, Shepherd diz que é cedo para se falar de uma transição pacífica do poder.
Viu a eleição de Felix Tshisekedi como uma surpresa?
Sim, acho que surpreendeu a maioria das pessoas. Encaixa no meu entendimento de longo prazo da política congolesa. Nunca estive convencido de que Kabila fosse um homem forte segundo o modelo cliché que conhecemos. Sempre considerei improvável que ele conseguisse simplesmente impor o seu candidato, mas o que não pude antever é que seria Felix Tshisekedi o eleito. Em retrospectiva, faz sentido, dadas as dificuldades nas relações entre o círculo de Kabila e os aliados do [candidato derrotado, Martin] Fayulu, entre os quais Jean-Pierre Bemba e Moise Katumbi. Parece que fizeram uma espécie de acordo com o candidato da oposição mais aceitável, aquele menos ameaçador.
É credível a tese de Fayulu de que Tshisekedi e Kabila chegaram a um acordo para partilhar o poder?
É plausível, mas ficaria surpreendido se se tratasse de um acordo formal de partilha do poder. Pode ter havido discussões acerca da distribuição de cargos, podem ter sido dadas garantias sobre quão dura será a perseguição do novo governo a pessoas da anterior, mas tudo isto é especulativo. A RD do Congo é governada por uma série de redes e todas competem entre si. Este arranjo é flexível ao longo do tempo, mas nunca foi um modelo de governo monolítico de um só homem. Portanto, há várias redes e muita gente nessas redes que vão negociar duramente para que, aconteça o que acontecer, mantenham a sua posição, a sua influência e o nível de acesso. Não sabemos se isto é um acordo formal entre o Presidente que vai sair e o presumível futuro, ou se é um acordo concluído entre várias dessas redes importantes para garantir a continuidade da sua influência.
Porque diz que Kabila não tinha capacidade para impor o candidato que escolheu?
A RD Congo é governada há muito tempo de uma forma muito folgada. Não tem instituições robustas, não tem umas forças armadas, nem uma polícia fortes. A capacidade das autoridades de Kinshasa para governar o país é muito limitada. É governada por certas redes de poder, que dependem parcialmente do patrocínio de Kinshasa. O Congo é um país enorme, a geografia é muito complicada, há locais muito isolados onde o Estado é fraco. Kabila não tem uma base política forte. Ele está no topo de várias coligações diferentes, coligações de coligações. O seu partido está bem estabelecido a nível nacional, segundo os padrões congoleses, mas ele não está no topo de um partido de vanguarda, bem organizado, como podemos encontrar em Angola ou na Etiópia. A capacidade de a Administração Kabila se impor sobre a política fraccionada do Congo era bastante baixa. Podia impedir que outros tentassem derrubá-lo, mas não conseguia reunir os recursos políticos, coercivos e até económicos necessários para exercer o controlo de forma perpétua. Aquilo que vemos então é um processo de negociações quase interminável e os resultados anunciados na noite passada são apenas o produto da mais recente ronda negocial. Para mim é um pouco incorrecto dizer que no Congo tudo gira à volta de Kabila, como se ele fosse um homem forte tradicional. Nunca o foi.
Uma mudança de Presidente não irá então alterar esta forma de fazer política?
É improvável, pelo menos a curto prazo. Será muito difícil para qualquer novo Presidente mudar a forma fundamental como o Congo é governado. É uma cultura política com práticas muito enraizadas e são muito bons a defendê-la. Será uma tarefa muito demorada resolver todos os problemas de governação. Vejo a possibilidade de mudança não tanto na Presidência. Ele será um presidente ainda mais fraco do que Kabila era, terá de lidar com redes construídas pelo seu antecessor. Tem uma base sólida no seu partido político, mas menos forte do que foi historicamente. Há uma quantidade enorme de partidos que vão estar representados Assembleia Nacional, o que significa que construir uma coligação para nomear um governo irá levar muito tempo e será muito difícil. Ele terá de fazer todo o tipo de concessões. Não vejo o que possa o futuro Presidente mudar a curto prazo. Acho que podemos assistir nos próximos tempos a governos provinciais mais fortalecidos. Esse nível de governo terá um pouco mais de margem de manobra em relação a Kinshasa, porque a presidência estará enfraquecida, o que pode ser uma pequena alteração na configuração política do Congo.
É possível dizer que o Congo está prestes a ter a sua primeira transição pacífica de poder?
É muito cedo para dizer, ainda não chegámos propriamente à fase da transição. Este desfecho era inesperado. Se recuarmos um ano, havia muita desconfiança sobre se iria haver sequer eleições, e, caso houvesse, se Kabila iria concorrer. Os factos básicos são: houve uma eleição, Kabila não concorreu e temos um candidato da oposição como presumível chefe de Estado. Penso que todas essas coisas são positivas e não eram previsíveis até recentemente. Penso que é um começo, e que é importante, mas temos ainda de ver se o resultado será aceite. A Igreja Católica disse que este resultado não corresponde aos seus números. Muito irá depender da reacção da região. E, mais importante, da reacção do próprio povo congolês. Se o povo estiver preparado para aceitar uma vitória limitada, apesar da suspeita de que foi Fayulu que teve mais votos, penso que as coisas irão avançar de forma relativamente pacífica. Mas é muito difícil de prever. É muito prematuro dizer que tudo correu de forma pacífica. Parece que foi evitado o pior cenário, de grandes conflitos urbanos contra uma vitória do [candidato nomeado por Kabila, Emmanuel] Shadary, mas muito pode ainda acontecer.