Orçamento Colaborativo do Porto teve juntas a propor e votar projectos próprios
Rui Moreira deu 100 mil euros a cada freguesia para gerirem um Orçamento Colaborativo. Em algumas freguesias, cidadãos não puderam fazer propostas. Em várias, juntas foram proponentes e júri em causa própria. Imoral? Câmara não comenta
Na proposta votada na reunião camarária de 9 de Junho, falava-se do Orçamento Colaborativo como um “instrumento da democracia participativa, através do qual se dá aos cidadãos a possibilidade de apresentarem propostas de investimento, escolhendo quais os projectos que desejam ver implementados". Pela primeira vez - depois de uma tentativa inicial, em 2017, que acabou por não ser posta em prática -, a Câmara do Porto testou um modelo que entrega às juntas de freguesia a condução deste orçamento descentralizado, dando 100 mil euros a cada uma. Em várias, os cidadãos não puderam sequer pronunciar-se. Em quase todas, os projectos vencedores foram propostos e aprovados pelas próprias juntas. A Direcção dos Serviços Jurídicos da câmara está a analisar as candidaturas. Imoral ou nem por isso?
As condições de atribuição de apoio do Orçamento Colaborativo, aprovado por maioria com abstenção da CDU, são, no regulamento, mais ambíguas do que o anúncio feito no próprio site da autarquia. E algumas juntas de freguesia parecem ter encontrado aí uma oportunidade para concretizar projectos próprios sem envolver os cidadãos. Em resposta ao PÚBLICO, o gabinete de comunicação de Rui Moreira argumenta que, para não “condicionar o processo de constituição do júri e selecção”, o regulamento “não excluía nenhuma entidade de se candidatar”. Tal como não “determina que o júri seja composto por membros do executivo de freguesia”.
A autarquia dotou cada uma das sete freguesias portuenses com 100 mil euros e deixou que cada uma definisse as normas do seu orçamento. Em Ramalde e Paranhos, por exemplo, o regulamento era já claro: os projectos podiam ser apresentados individualmente, por grupos de cidadãos ou ainda pela própria junta. Se é verdade que em todos os casos as candidaturas foram levadas a uma sessão pública de apresentação, onde qualquer cidadão podia estar presente, e aí se nomearam mais duas pessoas para integrar o júri, também é certo que o conjunto de decisores era composto por cinco pessoas e três eram escolhidas pela freguesia. Estariam sempre em maioria, portanto, para tomar qualquer decisão.
Juristas consultados pelo PÚBLICO esclarecem que a filosofia de um Orçamento Colaborativo não se diferencia da do Orçamento Participativo e tem por base a descentralização e a participação dos cidadãos. Para o assunto, dizem, escasseia um “enquadramento legal”, mas casos em que haja decisão em causa própria são condenáveis. Ilegalidade? Teria de ser visto à lupa. Imoralidade? Certamente.
Na união de freguesias de Foz do Douro, Aldoar e Nevogilde, o executivo decidiu reservar metade da verba para uma obra própria: a instalação de um elevador na sede da junta, que complementará um esforço de tornar o edifício mais sustentável. Apesar de os serviços destinados aos cidadãos se situarem no rés-do-chão, no primeiro andar situam-se o salão nobre e outros espaços que o presidente da junta, Nuno Ortigão, entende fundamentais para os moradores: “Somos fundamentalistas da acessibilidade”, aponta. Ao Orçamento Colaborativo desta junta ocidental concorreram ainda o projecto Cantinho Comunitário, da Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental local, a quem foram destinados quase 34 mil euros; e um projecto do MADI – Movimento de Apoio ao Diminuído Intelectual, que foi recusado por recomendação da Universidade Católica, contratada pela junta para fazer assessoria ao processo.
O júri que votou as decisões era encabeçado pelo próprio presidente da junta e considerou esta última proposta “extemporânea” uma vez que a candidatura previa a “constituição de um centro de actividades ocupacionais cujo financiamento está a aguardar as devidas autorizações e apoios”, justificam no documento.
Apoio camuflado?
António Gouveia, presidente da junta de freguesia de Ramalde eleito nas listas de Moreira, admite sem rodeios um ponto de vista não assumido pela autarquia. “O Orçamento Colaborativo foi uma forma de colmatar a falta de verbas das freguesias”, admite, recordando a recente “guerra” entre os sete presidentes das juntas e Rui Moreira. Na carta de Março - assinada por cinco autarcas das listas de Moreira, um do PSD e um do PS – queixavam-se da “dificuldade de diálogo” e pediam mais competências e verbas. Se a delegação está ainda por fazer, a dotação financeira sofreu um acréscimo. “Conseguiu fazê-lo com este orçamento e isto ajudou a melhorar uma situação muito complicada”, comentou António Gouveia. Nesta junta, o processo foi aberto aos cidadãos e deu-se 90 mil euros a um projecto proposto por alunos de uma escola intergeracional. Os restantes 10 mil serão utilizados para remodelar e ampliar as capelas mortuárias de Ramalde, propriedade da junta.
Em Lordelo do Ouro e Massarelos o concurso, com um júri composto por três membros da freguesia e dois eleitos na sessão pública, “não foi aberto ao público”, diz a presidente da junta, Sofia Maia. E isso não vai contra a definição de um Orçamento Colaborativo? “Não”, responde, diferenciando este orçamento do participativo: “Aqui a ideia era a câmara dar dinheiro às juntas para elas decidirem e depois devolver à câmara as propostas”, argumenta. Os quatro projectos aqui aprovados são de uma creche, um centro social para idosos, uma viatura eléctrica para os transportar e uma aplicação para comunicação com os munícipes.
Os 100 mil euros vão, em Campanhã, para uma única obra. ”Era uma ideia antiga e aproveitámos o Orçamento Colaborativo para ir para a frente com ela. Falei com o Rui Moreira e ele disse para avançar”, contou Ernesto Santos. O presidente da junta era o único membro do executivo no júri: “Não abrimos aos cidadãos porque tínhamos esta proposta. Tive a felicidade de parecer um fato à medida.”
Em Paranhos, os cidadãos puderam apresentar propostas. Mas perante a escassez delas, a junta decidiu tomar as rédeas. Os quatro projectos eleitos estão todos debaixo da sua alçada: renovar os veículos da freguesia, reforçar equipamento para pessoas com deficiência, instalar um sistema fotovoltaico na sede da junta e requalificar a secretaria do cemitério. Alberto Machado, do PSD, não vê imoralidade no processo: “O importante era haver uma parceria entre a câmara e as juntas e estas poderem concretizar alguns projectos”, opina.
Júri independente, sem nenhum membro do executivo, teve a União de Freguesias do Centro Histórico, que chamou o historiador Helder Pacheco, o ex-vice-presidente da Câmara e ex-vereador do Urbanismo, Paulo Morais, e o provedor da Santa Casa da Misericórdia, António Tavares. Os projectos, esses, são da própria junta e não houve auscultação dos cidadãos: a reabilitação do Mercado de São Sebastião e a Biblioteca das Coisas, “uma espécie de videoclube dos anos 70” para utilização gratuita da população da freguesia.
Das sete juntas, apenas uma entendeu que o Orçamento Colaborativo não era para usufruto próprio. Palavra a José Manuel Carvalho: “Não quis beneficiar directamente. A meu ver deve ser dirigido a associações e pessoas da freguesia”, disse o presidente do Bonfim, recusando comentar opções diferentes da sua. Nesta freguesia oriental, foram escolhidos pelo júri cinco projectos, “nenhum ligado à junta”: uma lavandaria comunitária, um monumento de homenagem às carquejeiras, um projecto de dinamização cultural proposto pela PELE, a renovação do equipamento da associação Fios e Desafios e um projecto de um cidadão, músico com sala de ensaio no centro comercial Stop. A verba não chegava para tudo e ao ver propostas interessantes a junta decidiu apoiar mais três projectos: uma carrinha comunitária, um projecto comunitário da escola Barão de Nova Sintra e ainda um plano de promoção turística daquela zona feita por alunos do Alexandre Herculano.
O executivo de Moreira - que recusou o acesso às candidaturas argumentando ser “prematuro” divulgar os projectos vencedores antes da revisão jurídica estar concluída, ainda que as candidaturas tenham sido apresentadas publicamente - prefere não responder se é admissível uma entidade ser proponente e júri em causa própria. “A câmara não interfere nem na constituição do júri nem na selecção das propostas”, respondem, deixando qualquer comentário adicional para um momento posterior à decisão dos serviços jurídicos: “Sendo eventualmente detectada alguma irregularidade ou impedimento legal ou outro, as verbas correspondentes não serão transferidas.” Esperam-se cenas dos próximos capítulos.