É terra, é pão, é a nova padaria artesanal de Arroios
A nova padaria lisboeta fica no Mercado de Arroios e quer ser um “laboratório de experiências”. Tem pães regionais portugueses mas também se abre às influências do mundo. Na ementa há pratos e petiscos criados para explorarmos todo o potencial dos diferentes pães.
Não é a coisa mais evidente para quem quer fazer um bom pão meter-se no carro e guiar uma hora até à Lourinhã para ir buscar farinha. Mas é isso que João Celestino e Marta Figueiredo, fundadores (com outra sócia, Rita Borges), da Terrapão, a padaria que acaba de abrir no Mercado de Arroios, em Lisboa, se propõem fazer hoje.
É aí, na Moita dos Ferreiros, que fica o Moinho do Boneco, uma instituição local, tal como o moleiro, o senhor Valentim, que vem receber-nos na sua mota para nos contar histórias de moinhos e farinhas e de um avô que “andava com os bois”, fez um primeiro moinho de madeira “para ter farinha para os animais” e andou com ele às costas, mudando-o de sítio conforme as necessidades da vida.
João e Marta já aqui estiveram e sabem que é um dos poucos locais onde vão conseguir encontrar o trigo barbela que querem usar na padaria – um trigo português que tinha sido praticamente abandonado e começou recentemente a ser recuperado, mas que se produz ainda em pouca quantidade para as necessidades dos novos padeiros, adeptos de farinhas mais integrais e de fermentações mais longas.
Foi nos Estados Unidos, onde trabalhou numa padaria, que João, numa vida anterior ligado ao cinema (tal como Marta, aliás), descobriu muito do que é o trabalho de recuperação de um pão com mais sabor e mais nutritivo – um regresso ao passado que começa a fazer-se em diferentes partes do mundo ocidental.
Quando, depois dessa experiência, regressou a Portugal, quis pôr em prática o que tinha aprendido, mas teve algumas dificuldades em lançar uma padaria própria. Conquistou, no entanto, pelo menos uma cliente entusiástica, a própria Marta, que, tendo também deixado o mundo do cinema, abrira o restaurante Estrela da Bica (antes disso trabalhou com Bertílio Gomes, em Portugal, e estagiou com Martin Berasategui, em Espanha) e procurava um pão que, até àquele momento, não conseguira encontrar em Lisboa.
“Apercebi-me que o pão que queria não existia”, conta Marta. “Decidi fazê-lo eu própria, no restaurante, mas sobretudo focaccias, que eram mais rápidas. Depois convidei o João para fazer o pão da Estrela e ele introduziu as massas-mãe, as fermentações lentas. Comecei a interessar-me e apaixonei-me completamente pelo pão.”
A ambição foi crescendo e Marta, Rita e João começaram a pensar em autonomizar o negócio e abrir uma padaria. Escolhido o espaço no Mercado de Arroios, foi preciso esperar pelas obras e a resolução de problemas técnicos mas, finalmente, nos últimos dias de 2018, a Terrapão estava pronta – abriram, apenas para testar a reacção do bairro, nas vésperas do Natal e nas vésperas do fim de ano. E nesses dias esgotaram todo o pão que tinham feito.
O espaço não é grande mas é muito acolhedor, tem um balcão de madeira, com seis lugares, e, no exterior, uma mesa grande, de dez lugares, o que permite não apenas comprar o pão para levar, mas sentarmo-nos a tomar o pequeno-almoço ou a almoçar algum dos pratos da carta que Marta tem estado a preparar.
“Queremos ter pães regionais, o pão do Alentejo, as broas de milho e de centeio”, diz João, “mas também baguete francesa ou chapata italiana ou outras coisas que nos vão ocorrendo”. Em comum, o cuidado com a escolha das farinhas e as técnicas que permitem ter melhor sabor, “sem atalhos, com o uso de massas pré-fermentadas e tempos de fermentação prolongados”.
Por enquanto, têm feito fermentações de 24 horas, mas já fizeram experiências de 48 horas. “Sente-se bem a diferença”, assegura João. “Às vezes as pessoas dizem que o pão é molhadinho, não é por estar mal cozido, é porque a fermentação foi mais longe. Não é só o sabor acídico mais intenso, é também a textura que é distinta.”
Na Terrapão, João e Marta querem trabalhar com grande liberdade. “É um bocado cliché”, diz o padeiro, “mas é a ideia de laboratório de experiências". "Tanto a Marta como eu gostamos das coisas portuguesas mas estamos muito abertos ao que se faz lá fora.”
Nesta fase de arranque vai haver sempre “um pão de fermentação natural, a que chamamos pão da casa, e outros regionais, como a broa do Alto Minho ou a broa de centeio, que nasceu mais da experiência pessoal da Marta”, explica. “Mas também podemos ter pão-de-leite e, quem sabe, uma carcaça artesanal ou um papo-seco.”
A diferença tem sempre a ver com a utilização das massas pré-fermentadas (a massa-mãe) e as farinhas escolhidas. Nem todos os pães terão obrigatoriamente fermentação natural, alguns levarão fermento de padeiro, mas uma coisa é certa, nunca utilizarão farinha com melhorante, que é muito usada na padaria actual, permitindo acelerar o processo. “Se não conseguirmos fazer uma carcaça com as farinhas que temos, preferimos não fazer, porque achamos que não vale a pena estar a usar farinha com melhorante. Basta cheirá-la, cheira a químicos, não há necessidade nenhuma disso.”
Quanto ao forno, gostariam de ter um a lenha, mas no espaço disponível no Mercado de Arroios isso não é possível (a quantidade de pão que conseguiriam fazer por dia seria muito menor), pelo que têm um forno eléctrico, “o típico das padarias portuguesas”.
A música do moinho
A maior dificuldade, reconhecem ambos, é mesmo encontrar farinhas diferentes e de qualidade. Parece uma coisa simples, mas não é. Basta ouvir o moleiro Valentim, do Moinho do Boneco, a falar e adivinha-se a complexidade que se esconde entre o pó de uma farinha. Entramos no moinho, atrás das suas histórias, a começar pela desse avô que em 1940 fez este moinho, ainda hoje a uso.
No primeiro andar está a mó para o trigo, que o próprio Valentim cultiva nos terrenos em redor. No segundo, outra mó diferente, para o milho. Mas antes de moer os cereais é preciso saber de outra arte, hoje já só conhecida de poucos: a de picar a mó. Valentim aprendeu-a com outro moleiro da região, quando era pequeno e, fingindo-se desinteressado, ouvia e decorava tudo o que o homem explicava ao neto. Depois, voltava para o seu moinho e mostrava ao pai como se fazia. Com uma mó mal picada, a farinha não sai bem, não adianta insistir. “Só de ver o feitio da farinha sei do que a mó precisa.”
Outra arte é a de largar as velas. “Hoje está pouco vento”, lamenta Valentim. Se houvesse mais podíamos ver o moinho a funcionar ( “houve aí noites em que o vento era tanto que não dávamos vazão à farinha que fazíamos”, recorda) e ouvir a música a sair dos búzios, esses potes de barro de tamanhos diferentes que cantam com o vento ao ritmo do rodar das velas. Também aí, Valentim sabe só de olhar que búzios estão bem atados e que música sairá daquele moinho. “A minha filha diz que tenho isto tão bem organizado que parece um órgão a tocar. É como uma orquestra”, diz, orgulhoso.
São estes saberes (e os que lhe permitem cultivar um bom trigo barbela, que, sendo muito menos produtivo que outras variedades, é também mais saboroso) que tornam uma farinha especial. E é por isso que Marta e João não dão como perdida a viagem até à Lourinhã se puderem voltar a Lisboa com algumas sacas de farinha de trigo e de milho para os pães que por estes dias já saem, quentinhos, do forno da Terrapão.
Um almoço na padaria
Para os pequenos-almoços, almoços e lanches na Terrapão, Marta Figueiredo criou uma ementa que tira partido do pão feito na casa, não só em sanduíches mas também em pratos inspirados na gastronomia regional, como as açordas alentejanas. “A ideia é fazermos tudo de raiz, na casa”, diz. “Estou a experimentar fazer fiambre de peru fumado, usando peito de peru, tenho um cachaço fumado, que já usava na Estrela da Bica [o restaurante que tem na Bica, em Lisboa] e vou também usar beterraba fumada.”
Não será uma carta muito extensa, porque o espaço não é grande, mas os pratos vão rodar com frequência. Marta quer também aproveitar o facto de estar no Mercado de Arroios para ter sempre produtos frescos, e vai continuar a usar muitos dos fornecedores que já tem na Estrela, privilegiando os pequenos produtores – o sal, por exemplo, tanto o do pão como o dos pratos, é da algarvia Salmarim.
Tem havido marmelada, que fez aproveitando a época dos marmelos, e também tem pickles para as sanduíches e kombucha, feita a partir das borras de café. Com as sobras do pão fez um miso de pão que pode servir, entre outras coisas, para temperar as sopas.
No dia em que a Fugas foi fotografar havia bacalhau em broa de milho (6,50€), tutano e vinagrete (3,50€), sandes de cachaço fumado, cebola roxa caramelizada, mostarda e pickles da casa (6,50€) e ovo biológico a baixa temperatura (2€). Há ainda cerveja artesanal e vinhos naturais, takeaway biodegradável e o café é de saco e de origem, da Brava Coffee Roasters, com uma torra feita especialmente para a casa.