Eleições, greves e SNS
Há que não desvalorizar os riscos indesejáveis potenciais para o SNS que podem ser desencadeados por acções reivindicativas excessivas.
1. O PSD tem levado a cabo uma agenda de descredibilização do Serviço Nacional de Saúde, tendo inclusivamente chamado em audição a ministra da Saúde à Assembleia da República, a propósito da degradação da situação económico-financeira dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS), denunciando “a progressiva deterioração do SNS ao nível da sua execução orçamental”, que fundamentou com uma selecção conveniente de argumentos e com base em dados limitados e em parte desactualizados, e sugerindo subfinanciamento e má gestão orçamental da saúde. Aproveitou também o PSD, no mesmo requerimento, para suscitar estranheza por estar previsto, no Orçamento do Estado para 2019, o desenvolvimento de um novo modelo de gestão hospitalar que visa reforçar a autonomia de gestão, a responsabilização dos gestores e a adequação dos orçamentos.
Percebe-se bem a estratégia do PSD: ao iniciar-se a contagem decrescente para as eleições deste ano, procura capitalizar ganhos eleitorais através de uma narrativa conveniente sobre a situação económico-financeira do Serviço Nacional de Saúde (SNS), recorrendo a manipulação de dados parciais e a opiniões segmentadas para desvalorizar o reforço orçamental do SNS empreendido desde 2015 pelo actual Governo e, ao mesmo tempo, tenta fazer crer que a gestão do último governo PSD-CDS teve excelsos resultados económico-financeiros para o SNS, sabendo que a informação disponível na sua integralidade revela outra realidade e que das acções em curso (por exemplo, de regularização de dívidas dos hospitais) resultarão melhores indicadores de situação financeira até final do ano ou que o OE 2019 prevê, de novo, significativo reforço do programa orçamental saúde.
Mas serão apenas estas a intenções do PSD?
Seja qual for a intenção, convém, em nome da verdade dos factos e da realidade do SNS, contrapor informação representativa e desmentir uma narrativa política falaciosa. Tendo por base os dados mais recentes relativos a exercícios já encerrados, ou seja, até 2017, constantes dos relatórios e contas do SNS publicados pela Administração Central dos Sistemas de Saúde (que o PSD convenientemente não citou no pedido de audição em referência), a evolução de indicadores económicos e de financiamento relevantes associados à política orçamental incluídos nas contas consolidadas do SNS foi a seguinte:
a) o resultado líquido relativo ao exercício de 2017 foi negativo em -345,7 M€, representando uma redução de 45,6 M€ em relação a 2016 (-391,3 M€), enquanto no ano de 2015 – o ano referência de boa gestão para o PSD – o resultado líquido do SNS atingiu o pior valor negativo do período 2012-2017, com -407,8 milhões de euros;
b) também o resultado operacional do SNS em 2017 apresenta valor mais favorável, apesar de negativo, do que no tempo do Governo PSD-CDS: em 2017, -400,6 M€; em 2015, -467,3 M€; 2014, -409,4 M€;
c) as transferências correntes do Orçamento do Estado (OE) para o SNS entre 2015 e 2017 foram as seguintes: 2015, 7877,6 M€; 2016, 8178,8 M€; 2017, 8627,8 M€; ou seja, as transferências do OE em 2017 para o SNS foram superiores em 750,3 M€ (+ 9,5%) às transferências do OE em 2015;
d) em 2017, as transferências do OE para o SNS representaram 89% dos custos totais do SNS, enquanto em 2015 representaram apenas 86,5%;
e) a execução das despesas de capital (investimento) do programa orçamental saúde entre 2012 e 2015, com o governo PSD-CDS, foi em média de apenas 91,3 M€ (2012, 97,5 M€; 2013, 51,0 M€; 2014, 24,3 M€; 2015, 192,5 M€), enquanto em 2016-2017 a média ascendeu a 152,5 M€ (2016, 159,5 M€; 2017, 145,5 M€), representando um crescimento médio de 67%.
Em suma, como é óbvio, a política orçamental do actual Governo é muito mais favorável ao SNS do que a do governo PSD-CDS, ao mesmo tempo que o desempenho económico do SNS melhorou, apesar de se manter negativo. E, exactamente para contrariar este facto persistente, o Governo, a par do reforço orçamental da saúde, irá lançar em 2019 um novo modelo de gestão hospitalar para assegurar mais eficiência e mais equilíbrio económico dos hospitais.
Até certo ponto – se estiver em causa apenas uma demonstração de oposição ao Governo actual por causa da proximidade das eleições –, poderemos compreender que o PSD não reconheça a evolução favorável da política orçamental para a saúde dos últimos anos e não aplauda o propósito de introduzir um novo modelo de gestão hospitalar orientado para melhores resultados. Mais preocupante será para o futuro do SNS, tal como o conhecemos desde há 40 anos, e para os portugueses se, como parece fazer sentido, este comportamento do PSD tiver a ver com a sua desistência do modelo de gestão pública dos hospitais do SNS e, por isso, esteja a adoptar, intencionalmente, uma estratégia de apoucamento e desvalorização do SNS e do seu desempenho e resultados, para justificar a necessidade de privatização da sua gestão, através da generalização de PPP, como é propósito político público da sua liderança.
2. No final do ano, o SNS foi confrontado com greves abrangendo grupos profissionais de grande e insubstituível importância no funcionamento dos serviços de saúde, destacando-se em atenção mediática e social, pelos expressivos efeitos negativos para os cidadãos, a greve selectiva dos enfermeiros ao trabalho em blocos operatórios de hospitais.
Muitos cidadãos, acompanhados pelas suas famílias, que tinham a legítima expectativa de passar a quadra festiva já recuperados ou em esperançosa recuperação, passaram decerto a sentir-se, pelo menos, em sofrida ansiedade e preocupação pelo atraso e incerteza da situação, quando confrontados com o cancelamento das suas cirurgias devidamente programadas, revendo-se, certamente, em Martin Luther King quando disse que “um direito adiado é um direito negado“.
Pelo tempo de duração e pela época do ano em que ocorreu, pela área de actividade clínica escolhida, pelo âmbito dos serviços mínimos estabelecidos, pelos vários milhares de intervenções cirúrgicas canceladas, pelo potencial desencontro inter-profissional que comporta, esta greve ou outras de efeitos negativos semelhantes – cuja legalidade, obviamente, não se contesta, nem a legitimidade das razões invocadas para a sua realização – poderão começar a suscitar nos cidadãos dúvidas ou oposição quanto à sua pertinência e adequação (e, eventualmente, legitimidade) e começar a contaminar a visão e reconhecimento que os portugueses têm da aptidão e centralidade do SNS como serviço de saúde garante das suas necessidades.
Seguramente, os promotores destas greves terão apenas como objectivos reivindicações de melhoria de condições de trabalho e de carreira profissional, estando, confiamos, afastados do seu propósito qualquer intencionalidade de fragilizar o SNS para comprometer o seu futuro e criar espaço para se fomentarem ou desenvolverem alternativas. Mas, ainda que a intenção não esteja presente, há que não desvalorizar os riscos indesejáveis potenciais para o SNS que podem ser desencadeados por acções reivindicativas excessivas.
3. O SNS é reconhecido e acarinhado pelos portugueses por ao longo de quase 40 anos ter conseguido feitos notáveis: garantiu igualdade de todos os cidadãos no acesso a cuidados de saúde de qualidade e possibilitou que Portugal recuperasse de indicadores de saúde modestos e passasse a situar-se na comparação internacional em lugar honroso.
Porque temos o SNS, porque quando dele necessitamos obtemos em geral respostas com qualidade e porque os portugueses desejam e apoiam o SNS, estamos convencidos que a sua permanência tal como o conhecemos está assegurada e que não existem factores ou políticas que o possam fragilizar ou que não há partidos ou grupos que, por convicção política ou interesse económico em modelos alternativos, apostam no seu definhamento ou eliminação e, ainda, que não é possível que agentes profissionais, por comportamento egoísta ou irrealista, possam condicionar o funcionamento das unidades de saúde e, assim, atacar os alicerces da confiança dos cidadãos no SNS.
A defesa do SNS não é apenas tarefa do governo que em cada momento se encontra em funções. A defesa do SNS faz-se, é certo, com boas políticas – traduzidas em opções adequadas, financiamento e recursos apropriados e acções e medidas convenientes para o desenvolver –, mas também com a verdade sobre propósitos políticos e sobre os factos e a realidade do SNS e com posições e comportamentos da parte dos intervenientes na organização e funcionamento do SNS que sejam responsáveis e respeitadores, por humanidade e deontologia, do direito sagrado dos cidadãos aos cuidados de saúde. Qualquer desvio nas referidas vertentes pode comprometer ou debilitar o conceito e a realidade do SNS.
É útil que todos – sobretudo os que defendem um SNS forte e ao serviço de todos os cidadãos – disso tenham consciência, porque Portugal e os portugueses continuam a precisar do SNS.