Os homens também podem passar ADN mitocondrial aos filhos
Cientistas dos Estados Unidos e da China identificaram 17 pessoas em três famílias com herança paterna de ADN mitocondrial, que se pensava que apenas era herdado da mãe.
O ADN mitocondrial é aquele que está presente nas mitocôndrias e é herdado da mãe. Ou seja, ao contrário do ADN nuclear, o ADN mitocondrial não está sujeito ao processo de recombinação (não resulta da mistura do material genético do pai e da mãe). Contudo, num artigo científico publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) um equipa de cientistas dos Estados Unidos e da China identificou 17 indivíduos em três famílias que herdaram ADN mitocondrial de ambos os pais.
No Hospital Infantil de Cincinnati (Ohio, nos Estados Unidos), um rapaz de quatro anos foi avaliado com fadiga, hipotonia (tonicidade muscular abaixo do normal), dor muscular e ptose (pálpebras descaídas). Suspeitou-se que se tratava de uma desordem mitocondrial. Portanto, Taosheng Huang – médico geneticista nesse hospital e um dos autores deste artigo publicado no final de 2018 – enviou para o laboratório amostras de sangue da criança para que o seu ADN fosse sequenciado. Resultado: parecia que a criança tinha duas populações de genomas mitocondriais.
Como ficou surpreendido (e incrédulo), Taosheng Huang pediu a outros laboratórios que analisassem amostras deste rapaz. “O meu primeiro instinto foi que era um erro – mesmo que nunca, em seis anos, tenha visto um erro como este no nosso laboratório”, disse o médico à revista canadiana The Scientist. “[Depois] vi que o mesmo resultado tinha chegado de três laboratórios [diferentes]. Foi quando disse: ‘Ok, isto deve ser real.’”
De seguida, fizeram-se análises a outros membros da família da criança, nomeadamente a irmãs, pais e avós. Verificou-se que tanto a mãe como o avô materno tinham uma herança biparental semelhante à do rapaz no seu ADN mitocondrial. Por fim, analisaram-se outras duas famílias que apresentavam fenómenos semelhantes aos da primeira.
“Apresentamos uma herança biparental no ADN mitocondrial (ainda que directa ou indirectamente) em 17 membros de três famílias multigeracionais”, lê-se no artigo científico. “Treze desses indivíduos foram identificados directamente pela sequenciação do genoma mitocondrial, enquanto em quatro foram inferidos com base na heteroplasmia [mais do que um tipo de genoma mitocondrial] pré-existente na mãe causada por herança biparental em gerações anteriores.”
Sophie Breton, geneticista da Universidade de Montreal (Canadá) e que não fez parte do estudo, afirmou à The Scientist: “Este é um estudo muito interessante, trazendo uma prova convincente de que a herança biparental do ADN mitocondrial acontece nos humanos.” Já a bióloga Xinnan Wang, da Universidade de Stanford (Estados Unidos) e que também não fez parte do trabalho, considerou ao site NOVA Next do serviço público americano de televisão PBS que esta “é uma descoberta realmente inovadora”. E acrescentou: “Pode abrir um campo completamente novo… e mudar a forma como vemos a causa de certas doenças [mitocondriais].”
Não destrói o dogma
Mesmo assim, os cientistas que assinam este artigo frisam que o dogma do ADN mitocondrial ser somente herdado pela mãe permanece válido. “Descobrimos apenas que o ADN mitocondrial paterno pode passar para a descendência em situações raras”, diz Taosheng Huang ao PÚBLICO. No artigo, sua equipa salienta: “Evidentemente, estes resultados têm de ser conciliados com o facto de que a herança materna permanece absolutamente dominante na evolução e que situações ocasionais de transmissão paterna parecem não ter deixado marcas detectáveis no registo genético humano.”
E por que é que esta herança mitocondrial paterna aconteceu? Ao jornal espanhol El País, o médico refere que isto pode dever-se a uma mutação de um gene do ADN do núcleo e não nas mitocôndrias. Ao PÚBLICO, Taosheng Huang adianta mesmo que nos próximos tempos quer encontrar o mecanismo responsável por esta herança biparental.
Na natureza nem todos os organismos recebem um ADN mitocondrial só herdado da mãe. Por exemplo, os cogumelos e as leveduras têm uma herança biparental e em algumas algas e plantas observa-se apenas uma herança paterna.
Nos humanos, apenas em 2002 uma equipa de cientistas afirmou na revista New England Journal of Medicine que um homem tinha ADN mitocondrial da mãe e do pai no tecido muscular esquelético. Contudo, este artigo foi controverso e – como os restantes tecidos deste homem só tinham ADN mitocondrial herdado da mãe – a comunidade científica considerou que esses resultados eram fruto do acaso ou que estavam contaminados.
Em Dezembro, John Loike (bioético do Touro College, em Nova Iorque) escreveu na The Scientist que “é tempo de repensarmos o dogma da herança mitocondrial.” Mas assinala: “As ramificações científicas, médicas e éticas desta descoberta precisam de ter mais dados.” Como tal, destaca que é necessário perceber qual o mecanismo exacto que está por detrás da herança de ADN mitocondrial paterno, assim como se a transmissão de ADN mitocondrial paterno resulta numa mutação esporádica no processamento mitocondrial ou se é parte de uma via de processamento mitocondrial normal. “Quão comum é a transmissão de ADN mitocondrial paterno?”, questiona. Esperemos em breve vir a saber a resposta a tudo isto.