Como atravessar o espelho e imaginar uma vida

Há a relação de uma rapariga e de um escritor muito mais velho e há um homem à procura do irmão desaparecido num país em guerra. São as histórias centrais de Assimetria. Sem aparente ligação entre si, passam-se na primeira década de 2000, em plena guerra contra o terrorismo, e questionam a democracia, a liberdade, o papel da arte e da imaginação. É o primeiro romance de Lisa Halliday e esteve em quase todas as listas de melhores livros de 2018. Aqui, ela fala do livro e das suas motivações.

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O romance de Lisa Halliday chegou a Portugal em Dezembro, dez meses depois de aparecer nos EUA com o selo de disruptivo Vittore Buzzi

Sentada num banco de jardim, no Upper East Side de Manhattan, Alice lamenta-se de não ser capaz de levar nada até ao fim. No colo tem um livro que não consegue continuar a ler, e é então que um homem de gelado na mão se senta ao seu lado. Ela reconhece-o. É um escritor famoso, “três Nacional Book Awards”, o Pen Faulkner, “uma medalha de ouro de ficção da American Academy of Arts and Letters, dois prémios Pulitzer, a National Medal of Arts”. Ele pergunta-lhe o que lê e depois pergunta-lhe o nome. Será o primeiro de vários encontros entre Alice, uma jovem assistente editorial, e Ezra Blazer, escritor, 45 anos mais velho, moldado na figura de... Philip Roth. Os dois envolvem-se amorosamente no que será também uma espécie de educação de Alice. Sentimental, mas sobretudo literária e cultural. 

Este é o núcleo de Delírio, primeira parte do romance de estreia de Lisa Halliday. Na segunda parte, Loucura, conhecemos Amar Jaafari, um economista iraquiano-americano, residente em Los Angeles, que pretende ir até Sulaimaniya, no Iraque, em busca do irmão desaparecido. O percurso é interrompido quando é levado para uma sala para inquirições no aeroporto de Heathrow, Londres. Enquanto na primeira parte a história de Alice é narrada na terceira pessoa, sem acesso privilegiado ao mais íntimo da personagem, compondo uma rábula cáustica e divertida sobre a relação entre um mestre e a sua discípula, na segunda temos uma personagem narradora a viajar pela sua memória, num universo mais negro e introspectivo, pontuado por referências políticas, históricas e geográficas. Há ainda uma terceira parte, breve, uma entrevista a Ezra Blazer, Desert Island Discs, na qual ressoam muitas das ideias recorrentes do livro. Dito isto, a forma é uma das principais assimetrias que constituem o romance Assimetria, título que, nos universos britânico e norte-americano, esteve em quase todas as listas de melhores livros de 2018.

O romance chegou a Portugal em Dezembro, dez meses depois de aparecer nos Estados Unidos com o selo de disruptivo. Atento à forma, elabora uma teia na qual se cruzam pensamentos sobre a arte, a política, o quotidiano. É tão solar quanto inquietante. Negro, irónico, fala da criação, da ambição, do quotidiano em que as notícias da invasão do Iraque chegam, enquanto alguém em Nova Iorque assiste, na cama, a um jogo de baseball; fala da religião, de uma ideia de Deus ou de fé — “procurar conhecimento é uma obrigação religiosa”, é a crença de Amar —, explora as potencialidades da memória, questiona a guerra, reflecte sobre o medo, esbarra em conceitos como os de vida ou de morte. E de liberdade. “Vemos o que as pessoas fazem com a sua liberdade — o que não fazem — e é impossível não as julgar por isso. Acabamos por constatar que uma sociedade essencialmente pacífica e democrática está num estado de suspensão incrivelmente delicado, uma suspensão que exige um equilíbrio até à mais ínfima molécula, de modo que até ao mínimo sobressalto uma pessoa apenas que se esqueça da fragilidade dessa suspensão por causa da sua complacência e egocentrismo pode fazer com que toda esta merda desabe”, lê-se na página 220. É um romance ambicioso que não cai na facilidade do pretensiosismo, como acontece a tantos que usam a intertextualidade como ferramenta privilegiada. No caso, não só a do texto escrito, mas a do texto musical. A música é tema e estabelece o ritmo. Dá a forma e contamina cada frase. É um dos grandes motores de Assimetria.  

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Assimetria é um primeiro romance, aplaudido pela crítica, considerado um dos melhores livros de 2018, com o picante de trazer um pouco da intimidade de Philip Roth ERIC THAYER/REUTERS

O que esteve na génese deste livro?, pergunta-se a Lisa Halliday, a sua autora, que, como Alice, a personagem, foi assistente editorial em Nova Iorque. “As duas principais inspirações foram a minha experiência pessoal com a ambição criativa e a minha falta de experiência em relação ao Iraque, apesar de ser um país dramaticamente afectado por decisões tomadas pelo meu país. Durante a maior parte dos cinco anos que trabalhei em Assimetria, a minha intenção era a de que iria consistir em duas secções longas e contrastantes. No final do processo tive a ideia de uma terceira parte, o que reforça a assimetria do livro”, conta a escritora, que se recusou a comentar até que ponto Philip Roth a ajudou a criar a Ezra Blazer. Aliás, ao contrário do que aconteceu em relação a outros autores que a influenciaram, o nome de Roth nunca foi sequer mencionado ao longo da entrevista que a escritora aceitou dar apenas por email.

Lisa Halliday, 41 anos, natural de Medfield, uma pequena cidade no Massachussets, conheceu Roth quando trabalhava na agência Wylie. Tiveram um romance, depois ficaram amigos. Como Alice e Ezra? O que separa um casal do outro é a ficção. “Muitas pessoas assumem que a primeira parte do romance é autobiográfica e a segunda não é. Mas a primeira parte não é nitidamente autobiográfica e a segunda parte não é nitidamente não autobiográfica. Delírio não é um livro de memórias. Não é um relato fiel de um relacionamento que tive. Há certos pormenores e circunstâncias que se correlacionam com pormenores e circunstâncias observadas ou vivenciadas directamente, mas decerto que esse é o caso de qualquer obra de ficção, e os desfechos são muito superados pelos desvios. Usei os detalhes da minha vida que quis — os detalhes que serviram a história que quis contar — e inventei muito mais. Como o próprio Ezra diz, na última secção do livro: “Pode ser irresistível pensar o que é ‘real’ por oposição ao ‘imaginado’, num romance.” Mas o que importa é o quão bem os ingredientes foram misturados para criar um efeito. Isso parece o mais significativo e verdadeiro.”

Ezra diz mais: diz que o exercício de distinguir entre realidade e ficção é fútil, mas reconhece o quão irresistível é “procurar as costuras, tentar perceber como foi feito”. “É uma história tão velha como o mundo, esta prática de dar conselhos que nem sempre seguimos.” Logo no início do livro, ele tinha feito a Alice a célebre recomendação de Tchékhov: “Se no primeiro capítulo houver uma arma pendurada na parede, ela terá de disparar num dos capítulos seguintes.” E também lhe dizia: “Não sentimentalizes.”

Diante de um escritor é inevitável “tentar perceber como tudo foi feito”: como, por exemplo, o facto de Alice e Amar coexistirem em histórias que não se cruzam a não ser no tempo, num mesmo cenário de guerra contra o terrorismo, embora os territórios, mais uma vez, mal se toquem. “Sempre pretendi que Alice e Amar habitassem o mesmo livro, o mesmo universo. Nos primeiros rascunhos, o relacionamento deles era mais visível, mais convencionalmente baseado em tramas. Foi então que li Jeff in Venice, Death in Varanasi, de Geoff Dyer, um romance em duas partes, com atmosferas muito diferentes, mas com conexões implícitas. Isso inspirou-me a abordar, de forma mais discreta, as histórias de Alice e Amar. Dito isso, escrevi Delírio Loucura mais ou menos ao mesmo tempo, alternando entre eles poucos dias ou semanas, enquanto a terceira parte (Desert Island Discs de Ezra Blaze) foi escrita no final do processo.” Conta então como nasceu o fim do livro, uma entrevista gravada na BBC, a 14 de Fevereiro de 2011, nove anos depois de Ezra ter conhecido Alice. “Eu estava a passar a ferro, enquanto ouvia um episódio do programa de rádio britânico Desert Island Discs e isso deu-me a ideia de concluir o romance com uma transcrição do próprio programa de Ezra. Imaginar as suas respostas foi uma oportunidade para dizer mais sobre música, que eu adoro. Também me permitiu dar ao leitor conexões adicionais entre as duas primeiras partes do romance e criar, espero, um sentido último do livro como um todo indivisível. Essa estrutura tripartida dá também um sentido impressionista da experiência humana: afinal de contas, a consciência humana tende a ser feita de camadas, não é linear, e as vidas tendem a não ser ordenadamente ordenadas ou concluídas, apesar das nossas tentativas de forjar ordem e alcançar uma resolução.”

Nessa entrevista, Ezra lembra um ensaio do orientalista Edward Said escrito pouco antes da sua morte sobre estilo tardio. Nele defendia: “A consciência de que a nossa própria vida — e como tal a nossa contribuição artística — está a chegar ao fim influencia o estilo de um artista, conferindo-lhe um sentimento de resolução e serenidade, ou então de intransigência, dificuldade e contradição.”

É neste campo artístico, em que há sempre uma grande atenção ao pormenor, que Lisa Halliday quer estar. Quando chamam ao seu romance um livro político, ela reage: “Simpatizo com o narrador de Stendhal quando ele diz, em O Vermelho e o Negro, que “a política, numa obra de imaginação, é como um tiro de pistola no meio de um concerto”. Mas também concordo com a personagem que responde: “Se as suas personagens não falarem de política (...), não serão franceses de 1830, e o seu livro deixará de corresponder à pretensão de ser um espelho...” Em Assimetria, essa ideia surge na consciência de Amar e na sua intenção de escrever um diário da sua viagem a Bagdad. “Lembrava-me do momento de O Vermelho e o Negro em que o narrador anuncia que, em vez de uma conversa política, o autor teria preferido colocar uma página inteira de pontos. Isto, porque a política numa obra de ficção é como um tiro de pistola no meio de um concerto. O estrondo é ensurdecedor, mas não transmite energia (...). Bem, eu também gostaria de ter substituído todas as conversas políticas que tive em Bagdad em 2005 por uma página de pontos. (...) E, de qualquer modo, a minha família, os seus amigos e eu não éramos personagens numa obra de ficção; éramos pessoas reais, a suportar vidas reais, nas quais a política não era apenas como um tiro no meio de um concerto; por vezes a política é mesmo um tiro no meio de um concerto, tornando a premência que a pessoa sente em falar sobre si mesma ainda mais forte.”

E surge no nome de Alice, claramente uma alusão à tentativa de Lisa de atravessar o espelho para chegar a alguma essência.

O eco da memória

Numa das primeiras visitas de Alice ao apartamento de Ezra ela depara-se com uma frase dactilografada numa folha branca: “Creio que um artista não é mais do que uma memória poderosa que se pode movimentar obliquamente através de certas experiências.” Não surge depois qualquer referência à autoria da frase, mas ela pertence ao romancista americano do século XIX Stephen Crane. E é um dos principais ecos — com diversas ressonâncias — que atravessa o livro. Lisa Halliday justifica: “Acho que Loucura, a segunda parte do livro, representa uma espécie de movimento oblíquo em relação à primeira parte. Mas também, genericamente, ser um artista é ter uma memória agressiva e extrair detalhes dessa memória com o objectivo de expressar uma nova perspectiva. O processo de expressão é difícil, como espremer-se através de uma abertura tão estreita que é preciso fazê-lo de lado, obliquamente. Alice faz qualquer coisa assim em Assimetria.”

E se nem tudo é autobiografia em Alice, segundo a sua criadora Lisa Halliday, a dose autobiográfica é assumidamente maior em Amar. Ou, pelo menos, ela vai sublinhando semelhanças. “A personagem de Amar foi inspirada num amigo da universidade e também pela minha própria experiência ao ter sido detida no aeroporto de Heathrow durante a noite.” Halliday conta que ido num voo para Londres para visitar o namorado, agora marido, e, depois de sete horas de perguntas acerca dos seus rendimentos e relacionamentos, conseguiu finalmente entrar no Reino Unido. Ela continua: “Como no meu caso, a liberdade de Amar está ameaçada. Mas ele encontra-se numa situação de suspensão muito mais hostil, a sua identidade e as suas intenções sob uma suspeita mais sombria. As razões para essa suspeita não são reveladas, mas provavelmente estão relacionadas com o aspecto de Amar, ou o seu nome, ou talvez com conjecturas quanto à sua religião. Na altura, um pormenor da minha vida foi usado para explorar uma questão que tem pouco que ver comigo, excepto na medida em que o meu país natal elegeu um presidente que tentou proibir pessoas como Amar de viajar livremente, algo que aconteceu após eu terminado de escrever o livro”, diz numa referência à proibição, por parte de Donald Trump, de entrada nos Estados Unidos de cidadãos oriundos de sete países islâmicos, uma das primeiras do seu mandato. 

Mas ao contrário de Amar Lisa nunca esteve no Médio Oriente, por isso foi necessário fazer alguma pesquisa para escrever a história daquele homem. “Li livros, incluindo memórias de correspondentes de guerra; estudei mapas, assisti a documentários e entrevistei amigos iraquianos. Mas para tornar Amar humano, e para converter numa narrativa convincente o que aprendi através de uma pesquisa, injectei na personagem muita da minha própria consciência: as minhas emoções, as minhas opiniões políticas, o meu sentido de humor, etc. — o que nos traz de volta ao assunto da autobiografia versus ficção: aspectos que parecem pertencer a uma categoria muitas vezes não pertencem e tentar chegar a uma narrativa satisfatória envolve (no meu caso) anos de reformulação, recombinação e invenção. Amar parece não se assemelhar muito a mim, mas em muitos aspectos a sua consciência é mais representativa da minha do que o que sabemos sobre Alice. E, de facto, se alguém como Lisa Halliday ou Alice Dodge pode escrever de forma convincente a partir da perspectiva de alguém como Amar Jaafari, consegue abordar temas relevantes, incluindo a diversidade (quão diferente se é realmente?) ou a apropriação cultural.”

Já se disse que a história de Amar é narrada na primeira pessoa. Ao contrário, a de Alice é contada na terceira. Vamos às razões. Terá sido para fugir à tal procura, por parte do leitor, de paralelismos, ou da autobiografia de Lisa sempre que um “eu” de Alice falasse? “Nos primeiros rascunhos, experimentei uma voz de primeira pessoa mais reflexiva e analítica para a história de Alice, mas não gostei dos resultados. Parecia-me muito pesado — muito trabalhado e introvertido. Então, em vez disso, decidi-me por uma narração mais descritiva, cinematográfica e de terceira pessoa, que, acredito, proporciona ao leitor uma experiência mais leve e mais vívida do relacionamento e também deixa em aberto um leque mais amplo de interpretações em relação à sua dinâmica. O estilo da primeira parte também serve como contraste significativo com o da segunda secção, narrada por Amar, cuja consciência, em certo sentido, transforma o romance de dentro para fora. As vozes contrastantes também contribuem para uma impressão de progressão: da evolução de Alice como escritora e como cidadã responsável e conscienciosa do mundo.” Por outras palavras: “A narrativa na terceira pessoa da primeira parte e a narrativa na primeira pessoa da segunda parte servem como uma das muitas assimetrias do romance. E, por fim, a última parte, que não é nem primeira nem terceira pessoa, mas uma entrevista, reforça a assimetria estética do romance, ao mesmo tempo que convida o leitor a reconsiderar a(s) voz(es) autoral(is) do que veio antes.”

Imaginação e empatia

No dia 14 de Agosto de 2003, menos de dois anos depois do 11 de Setembro, Nova Iorque voltou a tremer. Um apagão atingiu a cidade lançou-a no caos. Esse foi necessariamente um dia diferente na vida de Alice. É através desse percalço que a história colectiva de uma cidade nos chega, através do modo individual como foi vivida. “Sem o ruído do metro, sem o estrépito dos comboios junto ao Hudson e o zunido de ares condicionados e frigoríficos e três lavandarias self-service por quarteirão, era como se o coração de um mamute tivesse parado de bater. Alice sentou-se e pouco depois ergueu os olhos para as estrelas. Pareciam muito mais brilhantes, sem a habitual concorrência vinda de baixo — mais brilhantes e mais triunfantes, agora que a sua supremacia havia sido reafirmada. Do lado da escada rolante tremeluzente chegaram alguns acordes hesitantes de guitarra. O vendedor de cerveja desistira ou esgotara o seu fornecimento. A própria Lua parecia mais nítida e luminosa do que habitualmente, de tal modo que de repente já não era a Lua de Céline, nem de Hemingway, nem de Genet, mas a de Alice, que ela se comprometia um dia a descrever como aquilo que verdadeiramente era: a luz recebida do Sol.”

Em Assimetria, há, então, o quotidiano de duas pessoas no país que declara guerra e há o quotidiano de outras pessoas no país ao qual é declarada guerra. Há o Ocidente e há o Médio Oriente, duas civilizações onde, por exemplo, a palavra “futuro” assume significados distintos. No Iraque “há muito que o futuro é encarado como uma eventualidade bastante mais nebulosa, se é que alguém acredita mesmo que assistirá a essa eventualidade”...  — é outra assimetria num livro que tenderia a ser um jogo nesse sentido, o de procurar pontos divergentes ou pontos em que possíveis divergências se harmonizam afinal. Mas é mais do que isso. Se há jogo, ele esconde-se. Não é óbvio. O que subjaz é a atenção ao olhar do outro, num romance à procura de novas possibilidades de conjugar forma e conteúdo, mas em que forma e conteúdo se servem mutuamente. “A estrutura de um romance deve reforçar e aprimorar os seus temas, significado e configurações. Eu queria escrever um romance que tivesse uma estrutura impressionista não convencional, e ao mesmo tempo conseguisse criar um envolvimento fácil ao nível da frase.”

Essa facilidade poderia chamar-se também capacidade de envolver o leitor num dos desafios mais caros a Lisa Halliday, o dos limites da imaginação e, com isso — ou seja, através da imaginação —, explorar o papel da empatia. “Tenho um enorme fascínio pelo potencial vínculo entre imaginação e empatia. E também eu me interrogo continuamente acerca da mesma questão que aparece em Assimetria: ‘Será que podemos realmente atravessar o espelho e imaginar uma vida, uma consciência, aparentemente muito diferente da nossa?’ Se estamos cientes dos nossos limites e preconceitos, então somos mais capazes de reconhecer quando estamos errados e tornamo-nos cada vez mais conscientes, informados, de mente aberta e empáticos. Ler e escrever estão entre as formas mais eficientes de evoluir neste sentido.” Ezra formula a ideia de outra maneira: “Em que medida conseguimos passar para o outro lado do espelho e imaginar uma vida, aliás, uma consciência, que contribui para reduzir os pontos cegos da nossa.” Lisa Halliday ainda sintetiza mais: “Vida e arte nunca são distintas; são difusão e contradifusão.” Por isso aceita todos os contágios — da arte e do quotidiano — talvez para chegar mais perto de uma ideia de verdade.

Como é que alguém em Manhattan consegue entender o que se passa com alguém em Bagdad? Será que alguma vez conseguirá? E o contrário? Assimetria passa-se na primeira década de 2000. Os anos de George W. Bush e os primeiros do primeiro “homem negro na Casa Branca”, Obama. “Bagdad, para usar quatro palavras de Se Isto É Um Homem, era a negação da beleza”, descreve-a Amar, ele, um homem com dois passaportes inimigos que vivia entre o “desânimo generalizado” e “uma culpa insidiosa”, que visitara o Iraque sabendo que não o entenderia e ouvia, sobre essa incapacidade, coisas como esta: “Costuma contar-se (...) que um jornalista estrangeiro que vai ao Médio Oriente e fica uma semana depois regressa a casa para escrever um livro em que apresenta uma solução instantânea para todos os problemas da zona. Se ficar um mês, escreve um artigo de revista ou de jornal repleto de ‘ses’, ‘mas’ e ‘por outro lado’. Se ficar um ano, não escreve nada.”

Lisa Halliday tenta entender, chegar a essa forma de empatia que ajuda a ver mais longe, usando, além da imaginação, múltiplas e muito diferentes referências. Desde Hannah Arendt, Primo Levi, Henry Miller, James Joyce, Mark Twain, Jean Genet, Charles Dickens, Charlie Chaplin, Chet Baker, Osip Mandelstam. O tal convocar de muitos textos. “Eu adoro (e por isso estudei) a prosa de Flaubert, de Saul Bellow, de John Updike e de John Cheever. A poesia de Louise Gluck enformou o meu tom e contagiou o meu ritmo. O ensaio de Zadie Smith Two Paths for The Novel [Dois Caminhos para o Romance]” esteve no meu subconsciente ao longo da escrita de Assimetria. O mesmo vale para os Seis Memorandos para o Próximo Milénio, de Italo Calvino, em que ele escreveu: “O meu método de trabalho envolve mais do que a subtracção de peso. Tentei retirar o peso, às vezes de pessoas, às vezes de corpos celestes, às vezes de cidades; acima de tudo, tentei retirar o peso da estrutura das histórias e da linguagem. É... não uma melancolia densa e opaca, mas um véu de minúsculas partículas de humores e sensações, um fino pó de átomos, como tudo o resto que compõe a substância última da multiplicidade de coisas.”

Este é um livro de um tempo que quer viver além dele, mas captando a sua angústia. “Delírio Loucura, os títulos das duas primeiras partes do romance, são ambas formas de insanidade. Embora Delírio tenha uma qualidade mais leve e divertida, Loucura é mais sinistro e sugere consequências mais directas. Esses dois subtítulos são uma das muitas assimetrias estéticas de Assimetria e sugerem uma assimetria conceptual: entre a liberdade e a falta de liberdade. Delírio é uma espécie de insanidade ou insensatez que é livremente escolhida, como no amor, enquanto Loucura me parece um tipo de insanidade imposta de fora, como a loucura da guerra. É verdade que alguns de nós livremente escolhem a guerra, mas espero que essas pessoas sejam uma pequena minoria. E a guerra gera angústia.”

Actualmente a viver em Milão, Itália, Lisa Halliday lembra referências na sua infância e adolescência no Leste dos Estados Unidos. Não apenas formadoras deste romance, mas de como se tornou leitora e muito mais tarde pensou em ser escritora. “Quando criança, lia avidamente. Era muito curiosa acerca de livros de todos os níveis e géneros, mas os que mais se destacam na minha memória são exemplos clássicos de literatura infantil na América: Charlotte’ Web, Little Women, Little Men, as séries Nancy Drew e Hardy Boys e tudo de Laura Ingalls Wilder, Beverly Cleary ou Roald Dahl. Também li, claro, o que nos foi dado na escola: Dickens, Ethan Frome, Steinbeck, O Grande Gatsby. Tive a sorte de morar na rua da biblioteca pública, e no Verão sentava-me nos degraus da frente à espera que abrisse. Eu era muito pouco focada nas minhas leituras fora da escola, mas, quando era adolescente pus as mãos, não sei bem como, em Servidão Humana [Somerset Mugham] e tenho uma memória vívida de me sentar no nosso quintal numa tarde de Verão, tinha 16 ou 17 anos, a lutar para tentar entender aquilo, e ainda assim a luta era emocionante, não assustadora — ou seja, não planeei tornar-me uma escritora até ser muito mais velha. O sonho, durante muitos anos, era ser o tipo de cantora que usa um vestido brilhante e se senta a um piano.”

É escritora. Publicou na Paris Review, recebeu o Prémio Whiting em 2017, destinado a escritores emergentes, e agora tem o seu primeiro romance, aplaudido pela crítica, considerado um dos melhores livros de 2018, com o picante de trazer um pouco da intimidade de Roth, por mais que isso queira ser deixado no subterrâneo. E está a ser traduzido em muitos países. O que mudou na vida de Lisa Halliday? “Tive um bebé há pouco tempo, sete meses antes de Assimetria ter saído na América; ela mudou muito mais a minha vida do que publicar um romance. Ela também é uma distracção: há muito pouco tempo para pensar sobre a recepção e as vendas do livro, porque estou muito ocupada a mudar fraldas e lavar meias pequeninas.”

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