Onda de violência no Ceará relança discussão sobre cadeias e é usada como arma política

Ataques são vistos como uma resposta dos grupos criminosos à posição de força do novo responsável pela gestão das prisões. Presidente brasileiro acusa governador de "incapacidade" e ouve que "a eleição já passou".

Até domingo foram registados quase uma centena de ataques
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Até domingo foram registados quase uma centena de ataques LUSA/Jarbas Oliveira
Pelo menos 103 pessoas foram detidas até domingo
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Pelo menos 103 pessoas foram detidas até domingo LUSA/Jarbas Oliveira

A chegada de centenas de polícias federais ao estado brasileiro do Ceará, este fim-de-semana, para ajudarem a travar uma onda de ataques coordenada a partir do interior das cadeias, resultou num aumento das detenções mas ainda não pôs fim aos casos de violência. E as questões de fundo parecem estar longe de uma solução: o novo responsável estadual pelas cadeias diz que está decidido a impor a ordem entre a população prisional, mas problemas antigos como a sobrelotação e a falta de guardas pedem respostas mais abrangentes.

Até à madrugada deste domingo, segundo uma contagem da Rede Globo, foram registados 98 ataques em pelo menos 29 cidades, incluindo a detonação de uma bomba num pilar de um viaduto. Edifícios públicos, transportes colectivos, veículos particulares, camiões de recolha de lixo, bancos ou postos de combustíveis foram alvos destes ataques, a maioria na região metropolitana da capital, Fortaleza – incluindo oito já depois da intervenção da polícia federal, que começou no sábado.

Foram detidas 103 pessoas, mais de metade desde que as forças locais receberam o reforço enviado por Brasília.

Guerra às "facções"

O governo do Ceará tem-se recusado a avançar uma explicação oficial sobre as causas da onda de violência que começou na noite da passada quarta-feira. 

Mas o presidente do Conselho Penitenciário do Ceará, Cláudio Justa, disse que os ataques foram lançados a partir do interior das cadeias, pelas maiores facções criminosas, em reacção a declarações do novo secretário da Administração Presidiária, Luís Mauro Albuquerque.

No seu discurso de tomada de posse, a 1 de Janeiro, Mauro Albuquerque declarou que "o estado não deve reconhecer facção" nas cadeias. Por outras palavras, o responsável enviou a mensagem de que vai pôr fim à separação de presos por pertença a uma organização criminosa, o que terá levado os líderes dessas facções a ordenarem a onda de ataques a partir da noite de 2 de Janeiro.

Mauro Albuquerque sublinhou que "o preso está sob a tutela do estado, e quem manda é o estado". E prometeu retirar os telemóveis e as televisões aos prisioneiros – ferramentas usadas para gerir o tráfico de droga fora das prisões e para acompanhar os passos das autoridades. "Se tiver celular lá dentro, a gente vai buscar, mas a nossa prioridade é evitar que os celulares entrem", disse o novo responsável pelas cadeias do Ceará.

Evitar massacres

Para evitar chacinas entre os presos como a que aconteceu numa cadeia do Amazonas no início de 2017, que fez 56 mortos, estados como o Ceará decidiram separar a população prisional pela sua pertença a organizações criminosas. Segundo os números do Conselho Penitenciário do estado brasileiro, citados pelo jornal Tribuna do Ceará, a maioria dos mais de 20 mil presos declarou que faz parte de organizações criminosas – 11 mil divididos entre o Comando Vermelho e os Guardiões do Estado; quase três mil pertencentes ao Primeiro Comando da Capital; e mais de 500 fiéis à Família do Norte.

Mas vários responsáveis dizem que a separação dos presos, aprovada em 2017, deve ser uma medida provisória.

"Na época das realizações dessas transferências, tínhamos um número de efectivos muito inferior. Tínhamos unidades superlotadas e presos juntos de diversas facções. Essa foi a medida mais correcta para evitar chacinas e mortandades dentro dos presídios. Trata-se de uma acção temporária", disse o promotor de Justiça da Corregedoria de Presídios, Nelson Gesteira, ao jornal Tribuna do Ceará em Setembro do ano passado.

Mas numa entrevista à Rádio O Povo, na quinta-feira, o presidente do Conselho Penitenciário, Cláudio Justa, disse que o novo responsável pelas cadeias do estado foi "imprudente" ao declarar o fim da política de separação de presos, porque a medida "esbarra em questões estruturais" e "não é uma questão de mera vontade".

Cláudio Justa considera que o estado deveria aumentar o número de guardas prisionais para conseguir controlar a vida em cadeias onde os presos estão misturados, e acusa as autoridades de não terem "metodologia para separar os presos que afaste risco de chacinas dentro do sistema penitenciário no Ceará".

Em vários actos de vandalismo em edifícios públicos, os autores pintaram frases como "Fora Mauro Albuquerque" e "Não vamos parar até o secretário sair".

A onda de ataques não fez vítimas mortais entre quarta-feira e domingo, mas os danos materiais são consideráveis. No município de Limoeiro do Norte, por exemplo, foi destruída uma central telefónica, o que deixou os habitantes de várias cidades sem acesso aos telefones móveis.

Braço-de-ferro político

Esta onda de violência serviu também para provocar um braço-de-ferro político entre o governador do Ceará, Camilo Santana (do PT) e o novo Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro.

Na quinta-feira, Bolsonaro disse que os ataques dos últimos dias revelam a "incapacidade" do governador, e elogiou o ministro da Justiça, Sérgio Moro, por ter autorizado o envio de forças federais para ajudar a controlar a situação no Ceará: "Foi muito hábil, muito rápido e eficaz para atender, inclusive, um estado cujo governador reeleito é de uma posição radical a nós", disse o Presidente brasileiro numa conferência de imprensa na Base Aérea de Brasília.

No mesmo dia, o vice-presidente, general Hamilton Mourão, foi ainda mais duro nas críticas a Camilo Santana: "O problema é do governador, que sempre tratou mal a PM [Polícia Militar]", disse. "Ele quer jogar no colo da gente. É a velha táctica do PT."

Em resposta, o governador do Ceará disse que "os interesses da população devem estar acima de qualquer interesse pessoal ou partidário" e, numa indirecta a Bolsonaro, lembrou que "a eleição já passou".

Num vídeo partilhado nas redes sociais, no sábado, Camilo Santana disse que o reforço da segurança vai manter-se "por todo o tempo que for necessário para garantir a ordem e colocar atrás das grades todos aqueles que atentarem contra a sociedade".

E sublinhou que o seu governo já tinha aprovado medidas para reforçar o combate à criminalidade e a gestão da vida nas cadeias, como a contratação de "quase dez mil profissionais nos últimos quatro anos", a aquisição de "novos e modernos equipamentos" e a construção de mais nove cadeias.

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