A lição de futebol dos “pequenos e grandes” Estrela e Belenenses
Entre memórias de outrora e esperança no futuro, dois emblemas históricos reencontraram-se no Estádio José Gomes, num ambiente invulgar para os escalões amadores.
Num dia frio de reis, aconteceu mesmo a enchente de antigamente. No Estádio José Gomes, na Reboleira, o renascido Estrela da Amadora recebeu o Belenenses em jogo do campeonato da I divisão da Associação de Futebol de Lisboa. A partida, com mais de 5000 espectadores, terminou num invulgar empate a zero, já que o clube do Restelo ainda só tinha vencido nesta competição. Curiosos, adeptos fervorosos, antigas glórias e figuras públicas não faltaram à ocasião.
Com a partida marcada para as 15h, a festa começou por se “mover” entre as bilheteiras e a porta de entrada do estádio. Os bilhetes estavam a preço acessível e o contexto deu para tudo, até para um volume de vendas de cachecóis e outros adereços invulgar para um jogo tão pequeno — e tão grande ao mesmo tempo.
Era o dia mais aguardado da última década para o Estrela e muitos recuperaram recordações dos tempos de glória. Um adepto fugia dos cânticos e tochas, com sorriso de orelha a orelha, para mostrar uma fotografia da festa do Estrela no Estádio do Jamor, onde conquistou a Taça de Portugal, em 1990. “Vim do Barreiro de propósito para ver este jogo. Vou voltar a ser sócio. Trabalhei 34 anos na fábrica dos comboios, perto da estação da Reboleira. Quando o estádio e o clube fecharam, passava aqui todos os dias e até tapava os olhos”, relatou.
Outro adepto do Estrela, conhecido como “Taxista Mané”, equipado a rigor, tomava a dianteira da festa ao lado do bar da rua Del Negro. De camisola, cachecol e buzina, ia mostrando as meias do clube que guarda há anos. “Tenho fotos na cabeceira da minha filha, hoje com 26 anos, ali no estádio agarrada a um cãozinho. Na altura custavam seis contos cada moldura, tenho seis ou sete.
No rés-de-chão onde moro, tenho um emblema do Estrela na porta. E já paguei 24 euros de quotas para o ano todo”, desvendou.
São também muitos os adeptos do Belenenses que continuam fiéis ao clube que se separou da SAD no último Verão. Apesar de reencontrarem um “velho amigo e rival” que é agora companheiro de batalha, com a missão de regressar ao topo do futebol português, só a vitória interessava aos adeptos “azuis”. “Em cinco anos queremos regressar ao nosso lugar”, clamavam alguns adeptos que, em conversas paralelas, deixavam críticas aos responsáveis da SAD.
O plantel do Belenenses ia chegando ao estádio pelo lado da secretaria do Estrela. Muitos deles são profissionais, mas todos parecem colaborar — à entrada para os balneários, os jogadores carregavam cestos com coletes, garrafas de água e bolas. Ao nosso lado, Fernando Nunes, sócio número 63 do clube, recordava ao PÚBLICO como é que o Belenenses chegou ao título nacional em 1946. “Tinha eu 12 anos quando vi o Belenenses campeão. Lembro-me de tudo daquela vitória em Elvas por 1-2”, contou. “Queria que o Rui Pedro Soares [presidente da Belenenses SAD] estivesse aqui, para ver o que desprezou e deitou fora”, diz o adepto de 83 anos e ex-nadador do clube de Belém.
Era difícil arriscar qual dos clubes teria mais apoio no chamado “jogo do ano”. O Estrela regressou às competições profissionais seniores nesta temporada e vive um dia de cada vez. O estádio está em condições comprometedoras, do relvado às bancadas, mas ninguém parecia muito importado com isso. Uma das bancadas centrais esteve cheia, bem como uma das laterais, atrás da baliza, onde se instalava a claque “Fúria Azul”, que gritava: “Hoje como antigamente nada temos que temer”.
Em fúria também estiveram os apoiantes do Estrela a cada investida, possível contra-ataque, corte ou qualquer jogada benéfica para a equipa tricolor. A bola que muito saltitou no relvado esburacado da Reboleira foi o “homem do jogo”, os espaços entre os bancos eram apertados, mas ninguém pareceu incomodado.
Numa das bancadas bem perto da claque do Estrela ficava o Bar Tricolor. Ao lado do balcão estavam os fogareiros para as bifanas, couratos e entremeadas. Quem assava a carne era um dos vice-presidentes do Estrela que, visivelmente ocupado para falar, se limitou a dizer: “Foram sete anos para chegar até aqui. O jogo eu depois vejo, porque tem transmissão local”.
“Estamos num campeonato distrital que pareceu um jogo de I Liga, a fazer lembrar os tempos gloriosos do Estrela da Amadora. Foi extraordinário”, resumiu o presidente do CD Estrela, Rui Silva, após a partida. “Hoje o resultado era o que menos importava”, acrescentou o dirigente, que falava aos jornalistas enquanto o cantor Paulo Gonzo passava pelo corredor que ligava as bancadas à saída.
“Gosto de futebol e fiz-me sócio do Estrela porque estou cansado daquela guerra fria e confusões. Aqui voltei a ter um encontro de primeiro grau com o jogo”, disse ao PÚBLICO o cantor, que estava bem perto de Abel Xavier, actualmente a orientar a selecção de Moçambique.
“Vim passar a quadra festiva a Portugal e tive esta bonita coincidência. Um momento para registar esta capacidade de aglutinar tantos adeptos”, afirmou o ex-futebolista do Estrela da Amadora que partilhou experiências e pôde “transmitir valores” aos jogadores tricolores antes da partida, nos balneários. “O futebol é uma necessidade nesta cidade. É uma causa necessária. Espero que Estrela e Belenenses continuem a percorrer esta batalha difícil com paixão”, disse.
As horas passavam na Reboleira, o frio apertava e era altura de a Magia Tricolor recolher à cave, onde guarda todo o material para os jogos. “Este é o nosso espaço, que voltámos a ter com a ajuda de todos. Com um ou cinco euros, qualquer coisa serve”, explicou um dos adeptos de um grupo que não tem ligação ao clube, enquanto mostrava as paredes, o chão e as prateleiras todas de amarelo, branco e verde. Nesta pequena divisão, há espaço para uma máquina de cerveja. “Sai mais um copo” para um dia inesquecível.