Um quarto das vítimas do Holocausto morreu em apenas três meses
Investigador apresenta um exercício que “quantifica o Holocausto” e revela uma impressionante taxa de assassínios durante a Operação Reinhard (1942-1943) na Polónia ocupada pelos nazis. Mais do que um artigo científico que esclarece o passado desvenda-se uma história de horror sobre o homicídio em apenas três meses de 1,32 milhões de pessoas, 15 mil pessoas por dia, todos os dias.
Quando os números contam mortes, não são só números. Será (também por isso) redutor contar a história do extermínio dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial recordando a morte de 5,8 milhões de pessoas entre 1941 e 1945. “No final, ficamos com um único número agregado que é desconcertantemente grande e com o qual é difícil a mente humana se relacionar”, constata Lewi Stone, investigador da Universidade de Telavive (em Israel) e de Melbourne (na Austrália). Assim, o autor do artigo publicado na revista Science Advances escolheu a Operação Reinhard, que decorreu entre 1942 e 1943 na Polónia, como exemplo da brutal eficácia nazi no extermínio de judeus. Descobriu que em apenas três meses terão sido assassinadas 1,32 milhões de pessoas a um ritmo de 15 mil por dia. Um massacre subestimado que só acabou quando (e porque) já não havia mais ninguém para matar.
“A maioria das mortes durante a maior campanha de assassínios do Holocausto, chamada Operação Reinhard, ocorreu durante um único período de três meses”, conclui o estudo de Lewi Stone. No artigo que assina na revista Science Advances, o investigador quis apresentar uma visão mais clara e precisa da intensidade e cadência do genocídio nazi procurando a sua “dinâmica espácio-temporal” num momento preciso da história. Desviando-se propositadamente de Auschwitz – o centro das atenções da maioria dos historiadores e outros cientistas –, Lewi Stone centrou-se na história menos documentada (e subestimada) da Operação Reinhard que decorreu na Polónia ocupada pela Alemanha Nazi, entre Março de 1942 e Novembro de 1943. Era aqui que se executava a “Solução Final para a questão judaica” idealizada pelos líderes nazis e que se resumia a uma palavra: matar. As provas ou documentos ligados a este assassínio em massa “foram em grande parte destruídos pelos nazis e é difícil investigar a rapidez com que o genocídio foi realizado”, refere Lewi Stone.
O trabalho do investigador apoiou-se nos registos da Deutsche Reichsbahn, a Ferrovia Nacional Alemã, que desempenhou um papel crítico no transporte de vítimas para campos de concentração situados em Belzec, Sobibor e Treblinka entre 1942 e 1943. Yitzhak Arad, um historiador israelita também especializado no tema do Holocausto, já tinha reunido os dados sobre 480 viagens de comboio de 393 cidades e lugares na Polónia para os três campos de concentração onde terão morrido 1,7 milhões de pessoas durante a Operação Reinhard, que deve o seu nome a Reinhard Heydrich, oficial das SS e um dos principais arquitectos do Holocausto, tendo ficado conhecido como o “carniceiro de Praga”.
Agora, com essa preciosa fonte de informação, Lewi Stone apresenta novas estimativas que mostram que a maioria dos homicídios (1,32 milhões) ocorreu em apenas três meses – Agosto, Setembro e Outubro de 1942. O número representa “um quarto das vítimas do Holocausto em apenas cem dias”. E conclui: a taxa de homicídios no Holocausto é muito superior ao que se imaginava. “Em comparação com o genocídio de 1994 em Ruanda, que tem sido apresentado como o genocídio mais intenso do século XX, a taxa de homicídios durante a Operação Reinhard foi 83% maior, de acordo com Lewi Stone”, resume um comunicado de imprensa sobre o artigo.
O retrato sobre o ritmo da morte durante a Operação Reinhard é inédito. No título do artigo, Lewi Stone escreveu: “Quantificar o Holocausto: Taxas de homicídio hiperintensas durante o genocídio nazi.” São números que exibem a Operação Reinhard como um “acontecimento extremo, com base na taxa de mortalidade, número e proporção (99,9%) da população assassinada em campos, destacando-se o seu carácter singularmente violento, mesmo em comparação com outros genocídios mais recentes”.
Há outra conclusão perturbadora: a campanha de assassínios poderia ter continuado nesse ritmo aterrador se houvesse mais vítimas a viver na região. A diminuição da taxa de homicídios em Novembro de 1942 tem uma explicação clara: “não havia essencialmente mais ninguém para matar”, diz Lewi Stone.
A rapidez do extermínio também impossibilitou qualquer tipo de reacção. “O massacre acabou antes que houvesse tempo para uma resposta organizada.” Lewi Stone argumenta ainda que foram muito poucos os que viveram para contar a história do que se passou nos campos de concentração de Belzec, Sobibor e Treblinka.
No artigo, é citado o testemunho de Rudolf Reder, “um dos dois únicos sobreviventes do campo de extermínio de Belzec”, onde cerca de 600.000 judeus foram mortos: “Durante três meses, vi todos os dias um ‘transporte’ de 50 vagões com 100 prisioneiros em cada vagão, ou seja, 5000 vítimas enviadas para Belzec. Um segundo ‘transporte’ idêntico chegava todas as noites. Os prisioneiros ficavam nos sufocantes vagões sem comida ou água até às 6h da manhã seguinte. Um mínimo de 10.000 vítimas foram assassinadas a cada 24 horas. Houve dias em que chegaram três ‘transportes’. E dias com mais de 50 vagões em cada ‘transporte’. Os ‘transportes’ vinham sete dias por semana.”
Até agora, pouco ou nada se sabia sobre o ritmo, as “taxas de abate” e a dinâmica deste massacre. Na referência que o investigador faz a anteriores trabalhos sobre o mesmo assunto são citadas as raras tentativas de esclarecer este passado recente. Fala-se, por exemplo, no trabalho realizado no final da década de 90 pelo historiador norte-americano especializado no Holocausto, Christopher Robert Browning, que já tinha alertado para um período negro de 13 meses (entre Janeiro de 1942 e Fevereiro de 1943) com a morte de 1,75 milhões de judeus na Polónia, destacando-se um período mais intenso deste extermínio com a duração de cinco meses. Porém, faltava ainda saber muita coisa sobre operação apagada dos registos e da memória. Lewi Stone ajuda a preencher alguns dos vazios.
“Quantificar a guerra”
Supostamente, as lições do Holocausto servem para os dias de hoje. “Nos últimos 70 anos, genocídios e assassínios em massa continuaram a ocorrer e não estão a diminuir em frequência. Bósnia, Ruanda, Darfur, Burundi, Síria e Birmânia, todos passaram por operações de assassínio em grande escala nos últimos 25 anos, alguns dos quais podem ter sido evitáveis”, lembra Lewi Stone. Por isso, acrescenta, um dos principais objectivos da ciência social é precisamente saber mais sobre estes acontecimentos (as suas causas, características comuns, previsibilidade e mitigação). É importante “quantificar” a guerra.
Os resultados obtidos também permitem rever comparações entre o Holocausto e genocídios mais actuais, argumenta. Como por exemplo? “Em manuais e outras obras de literatura científica afirma-se frequentemente que a taxa do genocídio no Ruanda foi três a cinco vezes mais intensa do que o Holocausto. Os nossos resultados permitem mostrar quantitativamente que essa afirmação está incorrecta e, assim, ilustram a importância de quantificar com precisão não apenas o Holocausto, mas também os conflitos modernos em geral.”
Especificamente sobre a Operação Reinhard e a comparação com “genocídios modernos”, Lewi Stone denuncia as “avaliações imprecisas” de historiadores, cientistas, formuladores de políticas e jornalistas que “consistentemente” subestimaram este massacre. “Essas subestimativas surgiram e persistiram por causa da falta de consciência dos pormenores sobre os campos da morte da Operação Reinhard e como resultado da eficácia dos esforços nazis para obscurecer esses pormenores durante a guerra”, explica. O artigo que agora assina tenta reparar o erro. “Esta análise lança uma nova luz sobre esse período do Holocausto e fornece uma imagem mais clara e detalhada da dinâmica dos acontecimentos à medida que se desenrolava a Operação Reinhard.”
A análise publicada na Science Advances é acompanhada de um filme de dois minutos com um gráfico em movimento. São dois minutos em que vemos uma arrepiante escalada da morte num gráfico que desenha uma linha vermelha a subir a pique entre Agosto e Outubro de 1942. Ao lado, num mapa interactivo vão aparecendo as marcas coloridas das mortes à volta das três cidades na Polónia onde se situavam os campos de concentração e onde morreram 1,7 milhões de pessoas em câmaras de gás. A imagem não é sobre a fotografia geral do Holocausto. É “apenas” uma parte (mais precisamente um quarto) do Holocausto, mas mesmo assim continua a ser igualmente desconcertante e difícil de perceber.