Como um cão que passeia por um balneário
Estes poemas partem muitas vezes da informação clássica, mas são capazes de interpretar o quotidiano. José Alberto Oliveira assina uma poesia da lucidez, desenganada, mas disponível para enfrentar a tempestade e a surpresa.
Poderá estar no poeta latino Horácio uma das pistas mais interessantes e proveitosas para ler os poemas do mais recente livro de José Alberto Oliveira (JAO), De Passagem, que o Ípsilon considerou um dos acontecimentos editoriais de 2018. Trata-se, no entanto, de uma insinuação, como tantas vezes acontece nesta poesia, tão impressiva quanto discreta. JAO não pretende, obviamente, emular o latino e integrar “o rebanho de Epicuro” (Horácio, Epístolas, Cotovia, 2017, trad. Pedro Braga Falcão), pelo que a sua via é muito mais implícita, quase subterrânea — “Há meses que ninguém o vê;/ cão errante, cerdo das varas/ do sofista mais obscuro” (p.c23). Neste poema, ironicamente intitulado O Desaparecimento de JAO (1952-), em vez da inscrição categórica na letra do texto clássico, e mais do que lançar um envio para o epicurismo detectável em Horácio, o poema de JAO opta pela sugestão mais subtil da sofística, além de iludir, com a presença do cão, a figuração do porco, que comparecia no poema horaciano, mas que só depois surge em JAO. De resto, o poema Meditação Décima Nona (Credite Pisones), com a sua alusão, desta vez explícita, à Arte Poética de Horácio, ou Epístola aos Pisões, postula, sempre numa espécie de regime de comentário oblíquo: “Há que temer partilhar emoções/ do vulgo e continuar a jantar nas alfaias em uso.” (p. 55) Versos que, por seu turno, constituem um novo aceno ao poeta latino — “Odeio o vulgo profano, e mantenho-o longe” (Horácio, Odes, Cotovia, 2008). Todas estas possibilidades de sentido e de leitura dele, no entanto, não implicam uma poesia “imitativa” da tradição — embora sejam, com toda a certeza, um sinal claro da sua consciência cultural. No caso de um poema como Meditação Vigésima (Luciano), JAO socorre-se do exemplo do polígrafo grego para supor “um cão/ nos banhos” (p. 57). Uma forma engenhosamente subtil de substituir um poeta do século XXI por um cão, ou seja, um derivado de filósofo cínico (na sua etimologia, “cínico” deriva, precisamente, de “cão”). Tal como no texto de Luciano de Samósata, o poeta, em qualquer momento histórico, será um intruso, um cão que se passeasse na estranheza de um balneário. Não se ficam por aqui as referências clássicas — as quais serão outra coisa que não apenas isso. É o que podemos verificar num dos últimos poemas incluídos em De Passagem: Ao Reler Poemas da Antologia Grega (neste ponto, não deixará de ser interessante recordar que JAO traduziu uma selecção da Antologia Grega, há não muito tempo: Poemas da Antologia Grega, Assírio & Alvim, 2017): “Em tempo de deuses menores/ (e deve-se desconfiar dos maiores)/ o escárnio não é apenas virtude, é dever de qualquer cidadão.” (p. 81) Eis aqui, não apenas um indício cultural, um apontamento erudito, mas uma indicação forte acerca da tonalidade assumida pela poesia de JAO. Talvez não tenha sido por acaso que o poeta optou por uma recolha como a Antologia Grega. Arquitectada, originalmente, já na sequência do período helenístico (e refeito ao longo das eras), nela comparecem inúmeros poemas supostos, ou seja, composições alegadamente da autoria de poetas muito anteriores, como Anacreonte, e que são “reinterpretados” e, muitas vezes, emulados por autores de épocas menos recuadas. Este trânsito de tempos, esta atitude, quase pós-moderna, de dissimulação e diluição da autoridade, de fingimento e ficcionalização das autorias, imbuída como está de um certo cinismo latente, não tem pouco a dizer à poesia de JAO. (Além de que Meleagro, o recolector original da Antologia era um poeta associado aos filósofos cínicos.) Há uma ironia que percorre todo o texto da Antologia Grega, e toda a sua orgânica, com poemas que “fingem” um tempo que não é o seu, autores que interpelam o leitor, a séculos de distância, num modo profundamente lúcido e irónico, caracteres definitivamente importantes para a poesia de JAO.
Não é impunemente que uma poesia actual se mede com forças tão momentosas e desafiantes. JAO colhe da tradição clássica o culto da ironia, a tentação da inalcançável via moderada, a noção forte da fugacidade de tudo. Talvez esteja nesse princípio estruturante — glosado de forma lapidar pela poesia de Horácio — a explicaçao do título De Passagem. Trata-se, esta, de uma poesia notoriamente sabedora da condição passageira que é a humana. Num poema já citado — JAO (1952-) —, a distância que vai desde o nascimento até à morte é representada pela literalidade de um traço de (des)união — “Não tenciono interrogar/ a escuridão além do traço” (p. 15). Essa interpretação ao pé da letra de uma inscrição tumular projectada cria um novo ponto de contacto com a Antologia Grega, que recolhe inúmeros poemas fúnebres. E implica uma assimilação filtrada e lucidíssima de um património cultural e histórico que estes poemas interpretam de forma admiravelmente pessoal. Porque a poesia de JAO nunca adquire uma postura de sujeição perante os influxos do cânone, antes assume uma atitude desempoeirada e frontal. Ciente do passado, mas atenta ao presente, a observação mais ou menos desencantada do quotidiano não se cifra num registo simplisticamente descritivo: ultrapassa a constatação para alcançar algo mais do que um relatório baço — “A tarde atropela-se/ na heresia das tardes” (p. 10). Capaz de afirmar-se à margem da “quadrilha dos doutores” (p. 30), esta poesia procura muitas vezes para si mesma um lugar solitário, de sombra, sem faiscações nem tormentas expressivas. Esta tonalidade, porém, não se confunda com apatia ou resignação. Aqui estamos perante o resultado de um confronto necessariamente exaustivo de fontes e de vivências, que desemboca num estado em que já se filtrou toda a tendência para a reacção a quente, o empolamento, a verbosidade — “se algo acontecer/ e não for causa, que seja aviso” (p. 25). Estes poemas estão para lá (aquém?) do histrionismo e dessa espécie de gesticulação retórica de que alguns são capazes. Muitos destes versos funcionam como inscrições, dizeres minuciosos mas tácitos, talhados como se em retábulos. Um poema como “Carestia de Vida” lê-se como a reinterpretação irónica de uma pintura de Brueghel, com paisagens campestres desoladas, onde toda a vida parece querer ressurgir de uma superfície nevada — “Os camponeses, sujeitos a mondas/ e às fantasias da chuva, foram aconselhados/ a ter cuidado na utilização de pesticidas.” (p. 28)
Não custa ver nas palavras de JAO alguma coisa que nada tem que ver com a mistificação, nem com o logro de intenções escusas. JAO é, realmente, uma presença que se faz notar, precisamente, pela sua capacidade notável de não se fazer notar. E a sua poesia ironiza a cada passo com essa condição — “Que fazer dele, quando estava/ presente e teimava permanecer/ despercebido, para todos/ uma irritação, felizmente menor/ e transitória?” (p. 23) Encostada ao inescapável, esta poesia joga com noções que transcendem o dia-a-dia, mesmo se estão fortemente escoradas nos seus sinais — “há muito que as decisões/ não me pertencem, apenas/ o mérito de as evitar” (p. 32). Também esta poesia parece vogar no balanço de energias que a tocam, mas não determinam, que a iluminam, mas não ofuscam. Contra tudo o que se poderia esperar, uma poesia com o rigor equilibrado do clássico, a que não falta a energia negativa, obscura, inquietante de um presente que se escoa e é pura interrogação.