A morte do artista

O paradoxo de The House that Jack Built é que a busca de “realismo” traz apenas maior falsidade. A misantropia de von Trier coloca-se entre as personagens e o espectador.

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É o anti-Hitchcock: cada vez que Jack (Matt Dillon) encontra uma nova vítima já sabemos como vai acabar e só queremos que acabe depressa
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Dada a quantidade de assassínios e mutilações, em aturada descrição gráfica, que The House that Jack Built, sendo a história de um serial killer, contém, a questão inescapável deste filme é a da figuração da violência física. Lars von Trier defende a necessidade de “mostrar tudo” e não deixar nada à sugestão, o que é um “ethos” de cineasta tão bom como qualquer outro (Paul Verhoeven, também com pergaminhos na figuração de actos violentos ou mesmo obscenos, costuma dizer algo de semelhante). Mas depois temos a sensação, perante um filme como este, que se coubesse a Lars von Trier filmar, por exemplo, a Janela Indiscreta de Hitchcock, perderia meia hora a mostrar detalhadamente o Sr. Thornwald a serrar o cadáver da sua mulher aos pedaços. Nenhuma crença na excitação dos recantos mais negros (ou mesmo mais “abjectos”) da imaginação do espectador, e portanto um mínimo de implicação. É um paradoxo do cinema, arte de fabricar uma realidade “invisível”: a imaginação e a ansiedade do espectador são “reais”, tanto como os pedaços de cadáveres são próteses ou o rosto desfigurado (e abundamente mostrado) da personagem de Uma Thurman é mero efeito de maquilhagem. Falso, portanto. É o paradoxo de The House that Jack Built: a sua busca de “realismo” encontra apenas a maior falsidade.

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Com ou sem uma vontade de chocar mais ou menos deliberada (a já célebre sequência do piquenique e dos miúdos), atenuada apenas pela presença subreptícia de um sentido de humor retorcido (é uma comédia “doente”?, às vezes parece), o filme sofre imenso com isto: as longas e meticulosas cenas dos assassínios põem uma parede entre o filme e o espectador — que não sofre com as personagens nem com o seu previsível destino, porque a misantropia de von Trier o desinteressa delas. É mais uma vez o anti-Hitchcock: cada vez que Jack encontra uma nova vítima já sabemos como vai acabar e só queremos que acabe depressa. Afectação nenhuma, é como se cada assassínio fosse uma “instalação”, fria e falsa.

Que é, a propósito, o único ponto vagamente redentor do filme. A equiparação, por via da desordem obsessiva-compulsiva, entre o acto de criar (“o artista”) e o acto de destruir (o “assassino”). Jack contém os dois, e essa é a chave com que deve ser lida a longa conversa “estruturante” do filme entre o protagonista e Verge (Bruno Ganz), uma “versão” de Virgílio que o conduz através dos vários círculos do inferno (a sobrecarga referencial é avassaladora, mas é como “hipertexto”: leva-nos para além do filme). Dessa conversa e dessas reflexões, quase sempre em off, nascem os momentos mais interessantes do filme, que é o von Trier com um ponto de partida mais honesto (ou menos gratuito) em muitos anos. Se desse ponto de partida se chega, depois, a algum sítio interessante, isso já é outra questão.

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