História ou ódio - é possível vender Hitler?
Comercialização de material do Terceiro Reich está a crescer nos EUA. Compradores são muitas vezes judeus, que depois doam os objectos a museus. Leiloeiro diz que chegou a vender tecido do sofá onde Hitler se suicidou.
Leiloou os diários do médico de um campo de concentração nazi Josef Mengele por 300 mil dólares (261 mil euros), o telefone do bunker de Adolf Hitler por 243 mil e um anel de Hitler, com uma suástica feita de 16 rubis, por mais de 65 mil. E pouco antes do dia de Acção de Graças, uma fotografia de propaganda de Hitler, em que se vê o arquitecto do Holocausto a abraçar uma rapariga alemã de origem judaica, foi vendida por mais de 11 mil dólares.
No mercado de artefactos nazis abunda o dinheiro e Basil "Bill" Panagopulos, fundador da leiloeira Alexander Historical Auctions, no Maryland [Estados Unidos], é um promotor, sem remorsos, do negócio. Mas numa altura em que o anti-semitismo e o nacionalismo branco estão a crescer, a compra e venda dos pertences de Hitler e de outras bugigangas do Terceiro Reich – incluindo falsificações – estão a gerar um debate semelhante ao provocado pela exibição ostentada de bandeiras da Confederação e pelas estátuas da Guerra Civil Americana.
Que objectos do passado valem a pena guardar? Que despojos de guerra devem ser preservados? E que símbolos de ódio estão melhor no caixote do lixo da História?
Gigantes online, como o Facebook ou o eBay, juntamente com a Christie’s e a Sotheby’s, estão a actuar duramente contra a venda de artefactos nazis, restringindo-a ou banindo-a. Pouco depois da venda da fotografia de Hitler, no Maryland, uma outra venda, na Austrália, de cerca de 75 artefactos nazis, deu origem a uma controvérsia nacional e motivou uma repreensão da Comissão Anti-Difamação local.
Mas a procura deste tipo de objectos está a intensificar-se, segundo Terry Kovel, co-fundadora de um índice de preços de antiguidades e de artigos de colecção com 51 anos.
“O mercado de recordações históricas nazis está claramente em crescimento”, afirma. “Há muita gente que teme que a questão nazi tenha sido esquecida e que, por isso, é necessário mostrar o que realmente se passou. Para além disso, muito do material estava escondido, uma vez que foi trazido para os EUA por soldados que estão agora numa idade muito avançada e a morrer. E as suas famílias estão a vender os objectos”.
Vários grupos judeus, embora não todos, têm vindo a denunciar estas vendas.
Haim Gertner, director de arquivo do Yad Vashem [em Jerusalém], o principal memorial do Holocausto de Israel, diz que alguns dos bens pessoais de Hitler valem a pena guardar, principalmente se os detentores de artefactos nazis acreditarem que o material e a história anti-semita não devem ser esquecidos. Mas a venda destes objectos pela oferta mais elevada, considera, “é incorrecta e até imoral”.
O rabino Marvin Hier, fundador do Simon Wiesenthal Center, em Los Angeles, defende que alguns dos documentos e objectos de Hitler e do partido nazi devem ser preservados, particularmente aqueles que evidenciam os seus desígnios assassinos. Mas entende que outras lembranças nazis – muitas das quais foram contrabandeadas para fora da Alemanha por funcionários públicos americanos – servem apenas para inflacionar a mística do ditador e encorajar os anti-semitas.
“A saudação de Hitler está a voltar a este país e os fanáticos alimentam-se de coisas como a fotografia [de Hitler] com a rapariga”, diz Hier. “As pessoas olham para a fotografia e dizem: ‘talvez Hitler tenha tido um fundo bom’ ou ‘não o julguem de forma tão negativa’”.
Mas Panagopulos, de 60 anos, cuja leiloeira está localizada a cerca de 100 milhas [161 quilómetros] a Nordeste de Washington D.C., afirma que o mercado está a ser impulsionado pelos filmes, documentários e segmentos intermináveis sobre Segunda Guerra Mundial, no Canal História – já referido satiricamente como “Canal Hitler”. Muitos dos compradores dos artefactos nazis mais caros e passíveis de gerar manchetes são judeus.
Um deles é Michael Bulmash, de 74 anos, um psicólogo clínico na reforma, de Delaware. Passou as últimas duas décadas a comprar material do Holocausto e uma quota considerável do Alexander Historical Auctions. Mas doou quase tudo à sua alma mater, o Kenyon College, no Ohio, para a Bulmash Family Holocaust Collection – incluindo livros infantis publicados pelo editor anti-semita Julius Streicher e uma edição antiga do seu jornal, o Der Stürmer.
“Temos de mostrar estas coisas às pessoas”, diz Bulmash. “Especialmente quando temos neonazis a marchar em Charlottesville e vemos o Presidente dos Estados Unidos a criar uma falsa equivalência entre os que fizeram esses neonazis e o que fizeram as pessoas que os estavam a tentar travar”.
Howard Cohen, de 68 anos, é um optometrista judeu reformado, de Pittsburgh, e é outro cliente de Panagopulos. Guarda em sua casa todo o tipo de material anti-semita da Alemanha Nazi, como um cinzeiro do Der Stürmer, que comprou por 2 mil dólares, e que contém uma caricatura de um de judeu de nariz adunco. Esconde os artefactos em gavetas ou caixas para que as visitas nunca as vejam. A sua mulher e os seus filhos, revela, não aprovam, nem compreendem.
Todos os seus clientes, garante Panagopulos, são verdadeiros fãs de História, não são skinheads ou supremacistas brancos.
“Os skinheads não têm dinheiro para comprar estas coisas e mesmo que o tivessem, não têm um apreço histórico por elas”, diz Panagopulos. “Não sou nenhum neonazi tonto e sedento de sangue. A minha mulher é judia. A mãe dela é judia ortodoxa. O pai é judeu. E a terra natal do meu pai, na Grécia, foi arrasada pelos alemães na Segunda Guerra Mundial”.
Mas a imagem de Hitler ainda tem repercussão junto dos extremistas. James A. Fields Jr. – um autodenominado neonazi, condenado no dia 7 de Dezembro, por homicídio em primeiro grau, por ter conduzido o seu carro contra uma multidão de contra manifestantes em Charlottsville, matando uma mulher e ferido 35 pessoas – enviou à sua mãe um meme de Hitler quando ela lhe pediu para ter cuidado na manifestação Unite the Right (Unir a Direita). “Não somos nós que temos de ter cuidado”, disse-lhe Fields.
Panagopulos estabeleceu a sua leiloeira em Stamford, no Connecticut, em 1991, especializando-se, num primeiro momento, em produtos muito menos incendiários que os actuais: uma mecha de cabelo do Presidente Abraham Lincoln ou autógrafos de Presidentes. Há cerca de oito anos meteu-se na compra e venda de material do Terceiro Reich.
O que chamou primeiro a atenção do público foram dois blocos dos diários de Mengele. Em 2010 vendeu um bloco de notas a um judeu ortodoxo, cuja avó sobreviveu a Auschwitz, por quase 50 mil dólares. Mas a organização American Gathering of Jewish Holocaust Survivors and Their Descendants considerou a venda abominável e pediu a Richard Blumenthal, o então procurador-geral do Connecticut, que investigasse a sua autenticidade.
“Simpatizo com a sua repugnância sobre o lucro que gerou este diário”, assumiu na altura Blumenthal, em comunicado.
Porta-vozes do procurador-geral e grupos de sobreviventes do Holocausto confessam que não se recordam se chegou a ser iniciada uma investigação. Panagopulos garante que Blumenthal, actualmente senador do Connecticut pelo Partido Democrata, nunca o contactou.
Um ano mais tarde, vendeu o que restava dos diários de Mengele por 300 mil dólares. O comprador era igualmente judeu, conta Panagopulos. Mas a venda destes objectos continua a gerar reacções negativas.
“Se quiser mesmo desprezar alguém, basta ir a Stanford, Conn., onde encontrará Basil ‘Bill’ Panagopulos, que gere a Alexander Historical Auctions”, lê-se no início de um artigo de opinião publicado no New York Daily News, escrito por um executivo da American Gathering.
Irredutível, Panagopulos continua a vender todo o tipo de parafernália: uma série de documentos que mostram que o Führer sofreu de flatulência quando lhe foi injectado um extracto de testículos de boi para aumentar a sua libido; um arquivo de cartas, poesias e trabalhos escolares do responsável pela propaganda Joseph Goebbels; e as notas de um interrogador do exército dos EUA sobre uma entrevista com os médicos de Hitler, onde foi revelado que este tomava hormonas femininas.
Em 2014, depois de ter movido a sua leiloeira para Chesapeake, no Maryland, Panagopulos vendeu aquele que foi, muito provavelmente, o seu mais aterrador objecto: um pedaço ensanguentado de tecido do sofá onde Hitler se suicidou, com um tiro, a 30 de Abril de 1945. A oferta vencedora foi de 18 mil dólares. O leiloeiro guardou um outro pedaço para si e não o coloca à venda.
“É estranho não? Porque é que alguém haveria de guardar isto?”, questiona, agarrando o tecido. “Mas é uma raridade!”
Panagopulos é um orgulhoso porta-voz do seu negócio, mas muitos dos que comercializam material nazi são bastante mais discretos.
Um caso exemplificativo envolve tanto o remetente como o comprador da fotografia que mostra Hitler a abraçar Rosa Bernil Ninenau, a rapariga de ascendência judia. Amigo próximo, Heinrich Hoffman fotografou Hitler com várias crianças e fez várias impressões das mesmas fotografias, que foram amplamente distribuídas pela Alemanha. Mas Hitler gostava tanto de Nienau – partilhavam o mesmo dia de aniversário, 20 de Abril – que ela mereceu a alcunha de “filha do Führer” e chamava-o “Tio Hitler”.
Como é costume no mundo das licitações, Panagopulos rejeitou revelar as identidades dos seus clientes. Mas a pedido do Washington Post, aceitou perguntar a quem ofereceu a maior quantia pela fotografia se estaria disponível para uma entrevista. O comprador, que vive no Reino Unido, nunca respondeu ao pedido. E o remetente da fotografia também rejeitou comentar através de Panagopulos.
Quando o Post contactou Don Boyle, um conhecido coleccionador de artefactos da Segunda Guerra Mundial, de Scranton, na Pensilvânia, este revelou que chegou a possuir a fotografia e que a vendeu, em 2007, ao coleccionador do Arizona Jeff Clark, que gere um website que vende uniformes do partido nazi.
Foi Clark que remeteu a fotografia a Panagopulos, informou Boyle.
Mas, através de um email, Clark negou saber da existência da fotografia, quanto mais tê-la vendido. “Tive de ir pesquisar no Google para perceber sobre o que se estava a falar”, escreveu.
A venda da fotografia foi coberta por meios de comunicação em todo o mundo. E um jornalista de Amesterdão questionou a autenticidade da inscrição de Hitler – “A querida e [atenciosa?] Rosa Nienau e Adolf Hitler, Munique, 16 de Junho de 1933”.
“Lixo nazi falsificado”, declarou Bart FM Droog, que está a escrever um livro sobre os artigos falsos de Hitler.
Elain Quigley, que dirige o British Institute of Graphologists, diz que a inscrição da fotografia corresponde às primeiras caligrafias conhecidas de Hitler, nomeadamente à sua assinatura.
Panagopulos conta que a fotografia foi remetida em conjunto com vários documentos comprovativos e dentro no envelope original, que contempla o carimbo em alto-relevo (sem tinta) do estúdio de Hoffman e que foi entregue à família Nienau.
Pouco depois da licitação, narra Panagopulos, foi contactado pelo Dokumentation Obersalzberg, na Alemanha, um museu financiado pelo Governo que se dedica ao estudo de matérias relacionadas com o partido nazi, que queria colocar uma cópia da fotografia em exposição permanente.
“Já vi centenas de autógrafos de Hitler. Estou seguro sobre esta assinatura”, afiança Panagopulos. “Se estiver errado ficarei em xeque para eternidade. Aqui oferecemos uma garantia de cem por cento de autenticidade”.
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post