Fazer alguma coisa para que tudo fique na mesma
A nova Lei de Bases da Saúde é uma oportunidade perdida de bem legislar, no interesse de todos e depois de ouvida a sociedade civil.
Tivemos a honra e o gosto de integrar a Comissão de Revisão da Lei de Bases da Saúde, presidida por Maria de Belém, que entregou a Adalberto Campos Fernandes o resultado do seu trabalho no dia 3 de setembro de 2018. Foram oito meses de trabalho intenso, em que as condições de trabalho foram excelentes e a nossa liberdade académica integralmente respeitada.
Há duas semanas, a atual ministra recebeu a Comissão e, com infinda gentileza, agradeceu-nos o trabalho feito, no qual não mostrou particular interesse. Não revelou o motivo da rejeição do trabalho da Comissão, nem nos mostrou o texto alternativo, preparado pelo Gabinete. Fiquei perplexa e pensei que não era grave: o jogo democrático permite-lhe que desconsidere o trabalho de oito pessoas que o fizeram pro bono e não têm qualquer vínculo com o Ministério da Saúde. No entanto, depois de ler a proposta de lei aprovada pelo Governo, concluí que afinal foi grave.
O nosso projeto centra-se na dignidade da pessoa humana e no respeito pelos seus direitos fundamentais. Considera os compromissos assumidos pelo Estado Português no plano do Direito Internacional dos Direitos Humanos e a necessária interligação entre políticas públicas que visem proteger os direitos indispensáveis a uma vida com saúde: educação, trabalho, segurança social... Recentra o sistema na pessoa (tudo na prestação de cuidados é organizado de modo a que atinja o melhor estado de saúde possível), dá primazia à prevenção da doença e preocupa-se com a proteção de grupos vulneráveis, como o dos portadores de deficiência, de doença mental e os idosos. Dá relevância à inovação tecnológica e sua aplicação na saúde, à criação de condições para uma investigação científica de excelência... Prevê uma gestão de recursos humanos altamente qualificados, sobretudo no âmbito do Serviço Nacional de Saúde, assente no mérito, e em que a remuneração seja contrapartida do trabalho efetivamente realizado.
Foram estes alguns dos eixos centrais do nosso trabalho que não encontrámos, em larga medida, refletidos no texto aprovado pelo Conselho de Ministros. Encontrámos uma “lei” substancialmente reduzida, o que em si não teria importância porque o essencial não é o número de bases, mas a sua aptidão para satisfazer pelo seu conteúdo os objetivos visados pelo legislador. Encontrámos uma lei com uma estrutura formal deficiente (sem títulos, secções...) e cuja leitura não nos permite aferir a linha condutora que, em termos valorativos, lhe subjaz. Encontrámos incorreções técnicas: o princípio 8.º dos princípios informadores do projeto de diploma inclui no conceito de profissionais de saúde os “prestadores de atividades de suporte”. De suporte a quê ou a quem? Refere-se, na Base I, n.º 4, que “a sociedade tem o dever de contribuir para a proteção da saúde em todas as políticas e sectores de atividade”. Quem é o titular deste dever?
Após a sua leitura concluímos que, atenta a falta de rigor com que foi feita, apenas pode ter um objetivo em termos de política legislativa: fazer alguma coisa para que tudo fique na mesma.
O que é grave, uma vez que o que está em causa é essencial para a generalidade dos cidadãos: o acesso a cuidados de saúde de qualidade, organizados em função das suas necessidades e economicamente acessíveis, que infelizmente ainda não se encontram disponíveis para muitos, como o revelam os recentes atrasos na realização de cirurgias.
O que é grave, porque o Governo dispõe de um trabalho oferecido pela Comissão que integrámos, centrado nos valores essenciais do nosso Direito e compatível com diversos projetos político-partidários, desde que democráticos, e que almeja a uma vigência longa, de uma ou mais gerações.
O que é grave, por nos parecer impossível que o Governo, que integra pessoas com elevada formação jurídica, não tenha consciência de ter aprovado um texto que não tem condições no plano formal e do seu conteúdo de ser convertido numa lei pela Assembleia da República e que não pode satisfazer as necessidades e expectativas das pessoas em contexto de saúde no Portugal do século XXI.
É grave, por fim e sobretudo, por ser uma oportunidade perdida de bem legislar, no interesse de todos e depois de ouvida a sociedade civil. As oportunidades de o fazer não são assim tantas vezes oferecidas quando se governa um país. Professora de Direito da Saúde e da Bioética da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa