Morreu o escritor Amos Oz, uma das principais vozes israelitas do campo da paz

Autor de romances como A Terceira Condição ou Uma História de Amor e de Trevas, era, entre os intelectuais israelitas, um dos principais defensores da conciliação com o povo palestiniano.

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Amos Oz fotografado em Paris em 2010 Ulf Andersen/Getty Images

Sempre que se ligava a Amos Oz era a voz dele que atendia, num inglês afável, do outro lado da linha, na sua casa em Arad, junto à fronteira com o deserto do Neguev. A última vez foi este Outono. A voz parecia mais cansada, mas ainda assim disponível, e nem uma alusão a qualquer espécie de sofrimento pessoal. Nessa entrevista a propósito do lançamento em Portugal do seu livro Caros Fanáticos – Fé, Fanatismo e Violência no Século XXI (D. Quixote, 2018), uma compilação de três textos sobre fanatismo, disse ao Ípsilon: “Os problemas estão a tornar-se mais complicados e muitas pessoas procuram respostas muito simples; procuram respostas de uma frase, capazes de pôr tudo na ordem; frases que nos digam quem são os maus, quem são os inimigos, quem são os perigosos. Acham que se souberem isso o paraíso pode vir.” São esses – somos esses – as presas mais fáceis de um movimento que alastra, quis dizer então. Agora que nos chegou a notícia da sua morte, torna-se tristemente fácil interpretar esse cansaço que então se insinuava na voz.

Amos Oz, 79 anos, morreu esta sexta-feira, vítima de cancro, anunciou a sua filha, a historiadora Fania Oz-Salzberger. “Ele morreu... agora mesmo, após rápida deterioração, durante o sono e em paz e rodeado pelos seus entes queridos.”

Nascido em 1939, tinha quase mais nove anos do que o Estado de Israel e conhecia como poucos esse território tão disputado pelos homens em nome de Deus. Lutou até ao fim pela paz nesse lugar. É que o tal território não foi apenas o centro da sua vida, mas também o de toda a sua literatura.

De seu verdadeiro nome Amos Klausner (ao apelido do pai, preferiu Oz, que significa “força” ou “coragem”), veio ao mundo numa Jerusalém ainda sob administração britânica. Cresceu no número 18 da Rua Amos, bairro de Kerem Avraha, filho único de um casal de judeus sionistas oriundo da Rússia, num ambiente não muito diferente do que descreveu no romance autobiográfico Uma História de Amor e Trevas (Asa, 2007), adaptado ao cinema em 2015 por Natalie Portman. “Os dois quartos, o buraco da cozinha, a casa de banho e, em particular, o corredor, eram escuros. Os livros enchiam a casa toda: o meu pai lia em 16 línguas e falava 11 (todas com pronúncia russa). A minha mãe falava quatro ou cinco línguas e lia umas sete ou oito. Falavam entre eles russo ou polaco, quando não queriam que eu compreendesse.” Tinham-lhe ensinado hebraico, e ele ia absorvendo cada palavra que lhe chegava, construindo um dicionário muito pessoal que ia acrescentando à medida das necessidades. Nesse livro, ainda sobre a atitude dos pais, escreve: “Deviam recear que o conhecimento das línguas me fizesse sucumbir ao encanto da velha e fatal Europa.”

Mas nunca viveria fora de Israel. O país com que tinha uma relação conflituosa porque, dada a sua personalidade pacifista, não poderia ser de outra maneira, sempre foi aquele onde quis, “apesar de tudo”, viver. “Não gosto sempre de Israel, porque tem um lado agressivo, extremista e presunçoso. Mas continuo a achar que se o meu destino for cair no meio da rua, será melhor que seja numa rua de uma vila ou cidade de Israel do que em Paris, Nova Iorque, Londres ou Roma. As pessoas irão ajudar-me a levantar-me”, dizia ao Ípsilon na mesma entrevista de Outubro passado.

Anda na infância, na solidão que saberia mais tarde ser comum a muitos dos que inventam paisagens ficcionais, aprendeu o que viria a ser o seu grande jogo literário, como explicou noutra entrevista, também ao Ípsilon, em Fevereiro de 2016: “Desde muito pequeno era muito curioso, tentando perguntar a mim mesmo: ‘O que sentiria eu se fosse ele? O que sentiria eu se fosse ela? O que faria, por que esperaria? Que tipo de impressão gostaria de deixar nos outros? De que me envergonharia?’ É um jogo que tenho vindo a jogar há muito muitos anos.”

Um “e se” ficcional que lhe permitiu moldar-se a si próprio. A mãe, Fania, suicidar-se-ia tinha ele 12 anos, aos 14 foi para um kibbutz. Aí se fez adulto, aí decidiu mudar de nome. Foi a sua forma de se reescrever, uma espécie de vingança contra um um pai que não foi capaz de entender. Amos Oz tornar-se-ia, assim, a primeira grande personagem literária de Amos Oz, o escritor, que encontrou, no ambiente de medo e de violência em que cresceu e em que depois continuaria a viver, um meio de alimentar a sua imaginação. Foi lá, em Israel, costumava contar, que viu uma miragem e isso terá sido o sinal de que havia um caminho, nem que tivesse de o imaginar.

Assim fez. Como Amos Oz, assinou 20 obras de ficção e uma dezena de títulos de ensaio. Ganhou muitos dos mais prestigiados prémios literários internacionais (o Femina em 1988, a Legião de Honra francesa em 1997, o Goethe em 2005, o Príncipe das Astúrias em 2007 ou o Heinrich Heine em 2008) e o seu nome era um dos mais repetidamente apontados para o Nobel da Literatura. Morreu no ano em que o Nobel não foi entregue, sem o ter de facto conquistado. Parecia em paz com isso. Escrevia, dizia, porque isso lhe era natural. “Recebi prémios suficientes”, respondeu, segundo o jornal israelita Haaretz, numa das vezes em que lhe perguntaram o que sentia sobre o facto de ainda não lhe ter sido atribuído o Nobel. “Se deixar este mundo sem nunca ter recebido o Nobel, ficarei bem. Vou contar-lhe um segredo: os prémios literários são uma coisa estranha. Eu escrevo livros tal como bebo água ou respiro. Eu não posso deixar de beber água, de respirar nem de escrever. Depois, as pessoas vêm e dizem: ‘Respiras lindamente’ ou ‘Bebes água tão bem que vamos dar-te um prémio.’ Escreveria os mesmos livros, ainda que tivesse de pagar multa por cada um deles – e há pessoas que gostavam de me ver pagá-la, eu sei disso.”   

Um provinciano inventando o mundo

Os dias de Amos Oz começavam com um passeio pelo deserto do Neguev. Depois, chegado a casa, sentava-se à secretária onde havia duas canetas: uma azul, a da ficção, e uma preta, a do ensaio, da política, da intervenção cívica. Foi a azul que inventou a palavra que em hebraico significa “noite estrelada”. Uma palavra que nasceu da necessidade ficcional e passou a constar do dicionário. Não seria a única. A relação dele com o mundo tinha esta poética, mesmo quando a palavra era política – e a sua foi-o tantas vezes, para defender uma solução pacífica para o conflito entre Israel e a Palestina. Foi a preto, contava ainda, que criou outro vocábulo, “oportunista”. Não estava contemplado no hebraico antigo; passou a ser essencial para escrever acerca do mundo moderno.

Oz falava destas coisas com uma espécie de sem-importância. Se é preciso, cria-se. E sorria. E os olhos azuis iluminavam-se, do mesmo modo que criavam sombras para falar de morte, de violência e de ódio. Eram os olhos do rapaz de livros como Uma Pantera na Cave (Asa, 1998) ou Soumchi (1978), o rapaz que sempre olhou para os dois lados do território que israelitas e palestinianos reclamavam como seu, o que lhe valeu muitas vezes o epíteto de traidor. “Tendo a olhar isso como uma honra. Tem acontecido a muito boa gente ao longo da História. Quando me chamam traidor, sei que estou em excelente companhia”, afirmou ainda na última conversa com o Ípsilon, sem nunca negar a sua condição de judeu. Definia-a assim: “Ser judeu é, antes de tudo, a língua. A língua hebraica e tudo o que se lhe refere, o que significa centenas de milhares de livros, antigos e novos. Significa um sentido de humor específico, um sentido crítico e uma tradição de dúvida e argumentação, e mesmo de desafio às opiniões prevalentes. Não vou à sinagoga, não sou ortodoxo; o lado religioso do judaísmo interessa-me muito, mas não o pratico.”

Romancista, ensaísta, cronista, professor, Amos Oz lutou na Guerra dos Seis Dias (1967) e na do Yom Kippur (1973), fundou o movimento pacifista Paz Agora, lutou pela solução dos dois estados, chegou ao Partido Trabalhista Sionista. Era amigo íntimo de outro grande escritor israelita, David Grossman, com quem partilhava muitas ideias políticas e a quem confortou na morte do filho, na guerra de Israel com o Líbano, em 2006.

Escrevia sobre o amor, a solidão, a perda, o esquecimento, e claro, a morte. Parte significativa da sua obra está editada em Portugal, com as chancelas da Asa e da Dom Quixote, com destaque para – além dos já referidos Uma História de Amor e Trevas, Uma Pantera na Cave e Caros Fanáticos – A Terceira Condição (Asa, 1995), Conhecer Uma Mulher (Dom Quixote, 1992), O Meu Michael (Asa, 2002), Cenas da Vida de Aldeia (Dom Quixote, 2013), Não Chames Noite à Noite (Asa, 1997), A Caixa Negra (Dom Quixote, 1990) e Judas (Dom Quixote, 2016).

Dizia-se, no entanto, um provinciano, porque nunca saía do seu território e era de lá que inventava o mundo. Mas a sua literatura, traduzida em mais de 45 línguas, era inegavelmente um fenómeno universal.

Olhando para o ambiente de guerra que o gerou, Amos Oz parece uma figura contraditória. Ou não. Talvez só pudesse ter nascido dessa tragédia, “a longa tragédia, a tragédia do povo judeu”, como se referia ao que o rodeava, sem deixar de ir ao outro lado que aprendeu a olhar cedo, a partir da cave. “A resolução dessa tragédia resultou noutra tragédia para o povo da Palestina. É uma história trágica, “mas não uma história de homens maus e homens bons, entre vilões e santos”, dizia-nos em 2016. Estendia-se nessas trocas de palavras, o que confirma outro dos seus atributos, a curiosidade, o tal “e se” em que se fundava como pessoa e como escritor. Oz respondia a perguntas, mas ia perguntando sempre, pelo meio. “Acho que uma pessoa curiosa tem um pouco mais de moral do que um não-curioso, porque por vezes coloca-se na pele do outro. Penso ainda que um curioso é também um melhor amante. Até a minha abordagem à questão palestiniana, por exemplo, nasceu da curiosidade. Não sou um especialista em Médio Oriente, nem um historiador ou um estratego. Simplesmente perguntei a mim mesmo, desde muito novo, como seria se eu fosse um deles. É o que faço – levanto-me de manhã e pergunto-me: E se? É assim que vivo e é assim que escrevo.”

Disse-o numa entrevista ao The New York Times a propósito da edição americana de Entre Amigos (D. Quixote, 2017), oito histórias que recriam a vida num kibbutz como o Hulla, onde viveu e em cujo jornal local publicou os seus primeiros escritos, antes de se formar em Filosofia na Universidade Hebraica de Jerusalém. Lêem-se os seus livros, olha-se a sua biografia e há tanto em comum. Será tudo autobiografia? Não será sempre? Talvez não. Antes de tudo, dizia, é preciso ter uma personagem, só depois vêm as ideias. No ensaio era o contrário. Aí, tudo nascia da ideia. Mas tanto nas personagens como nas ideias havia antes de mais a paixão. Oz não falava em tom neutro: ou era alegre, ou triste, ou sombrio, ou nostálgico, ou mesmo zangado. Recusava, no entanto, a ideia de ser pessimista. Mesmo face ao tal conflito em que viveu a maioria dos seus dias. “Sou um optimista sem calendário para o meu optimismo.”

Não se sabe se terá sido a azul que escreveu a sua decisão de ir morar para o deserto do Neguev, mas a maneira como sempre falava desse lugar estava muito próxima da literatura. As suas caminhadas diárias faziam parte daquela paisagem que, entretanto, irá sofrer – já sofreu – uma ruptura, a ruptura do quotidiano do homem que caminhava com os mesmos olhos do rapaz da cave de Jerusalém.

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