Edouard Louis: da bandeira arco-íris ao colete amarelo

Jovem autor de sucesso com Acabar com Eddy Bellegueule, atravessa polémicas violentas e tempestades mediáticas para defender sem descanso a causa homossexual tal como a da gente pobre esquecida. Entre livros chocantes muito pessoais, conferências em todas as partes do mundo, activismo e manifestações dos Coletes Amarelos, retrato daquele que tenta o traço de união, a convergência das lutas.

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O último romance de Edouard Louis, Qui a tué mon père, é tentativa de síntese entre as origens familiares, a homofobia, a violência, e a expressão de um perdão, de uma reconciliação Sabine Mirlesse/The Washington Post/Getty Images

Conhecemo-lo cerca de um ano antes da publicação do seu primeiro livro. Um ano antes do tumulto que passou a acompanhá-lo para onde quer que fosse, cada vez que publicasse, falasse, ou mesmo quando não dissesse nada. Era um homem muito novo, alto, esguio e louro, doce, cortês e desconhecido. De facto, começava-se a falar bastante disso, em Paris, mas em alguns círculos, mais em pequenos círculos literários e homo.

A tranquilidade e a segurança educada de Edouard Louis – então com 21 anos, nascido na Picardia, uma das regiões mais pobres de França – traduziam já a força inabalável das suas convicções, certezas insolentes próprias da sua idade juvenil, considerava-se, mas que não se alterariam nem numa vírgula posteriormente, e que na nossa conversa acendiam de vez em quando uma centelha febril nos seus olhos azuis.

Ele tinha, por exemplo, embirrações muito claras em relação a certos barões esquerdizantes frequentemente homo, de uma certa imprensa agressiva e avançada, que cerrava fileiras na defesa dos seus lugares, postos, visibilidade mediática; e privilégio, oh quão sagrado, de distinguir o que era bem, bom e bonito. Uma casta arrogante, é certo, bastante detestável, sem dúvida, para quem não fizesse parte do grupo. Edouard Louis não hesitava em exprimir a sua aversão a essa dúzia de personagens, que lha retribuíram bem, tanto quanto puderam, agredindo-o nos seus artigos ou nas redes sociais, antes de desaparecerem quase todos, varridos pelo passar da moda, pela lassitude do público e pelas falências dos seus meios de comunicação. E era precisa muita coragem para enfrentar, tão só e tão jovem, aquelas divindades poderosas e estabelecidas.

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Sabine Mirlesse/The Washington Post/Getty Images

Peixe no restaurante? Ah, não, obrigado. Havia comido que chegasse para toda a vida, porque o pai pescava disso todos os dias e tivera de o comer todos os dias.

Foi preciso coragem também para se extirpar do seu meio, da sua terra da Picardia, forçar o destino, trabalhar muito para se sentar também ele nos bancos das mais exclusivas faculdades de Paris, observar, aprender, infiltrar-se naqueles salões intimidantes, naqueles círculos da juventude dourada, sobreeducada, nos edifícios imponentes, até apagar completamente a sua pronúncia da Picardia tão troçada em França, e que é imitada para parodiar os proletários, os campónios, os pedintes desdentados. Quando lhe perguntámos se ainda conseguia falar com aquela pronúncia da Picardia, foi incapaz, bloqueou, de tanto que tinha treinado com uma amiga estudante o modo de falar típico da “alta”, dos aristocratas com muitos estudos. Quando lhe fazíamos notar que se tinha saído muito bem, ele, a elevar a sua condição e a sair da lama, retorquia sem pestanejar que era precisamente por tê-lo conseguido que sabia a que ponto era impossível.

Os seus cavalos de batalha, seria muita ousadia falar de obsessões, eram primeiro a chaga social que é a reprodução das elites, a endogamia, os ricos poderosos e as elites intelectuais que se multiplicam entre si, batendo com a porta às massas populares cada vez mais ignorantes e esquecidas; em seguida, a homossexualidade, que ele embandeirava em arco. Uma homossexualidade que tinham querido fazê-lo pagar, engolir, apagar a murro, à pedrada, com crachás e humilhações. Desprezava as personalidades cuja homossexualidade era conhecida de todos em Paris e que se obstinavam em escondê-la e até em mentir, fingindo-se hetero: traidores à causa. Uma homossexualidade que era impossível viver tranquilamente no meio de onde ele vinha. Edouard Louis contou a sua assustadora juventude no seu primeiro romance: Acabar com Eddy Bellegueule. Está tudo ali, desde o primeiro livro: a criança inteligente já destinada a fugir um dia desse meio proletário e pesado, pegajoso como barro; a criança homossexual a enfrentar a hostilidade e a violência em toda a parte, sobretudo na sua própria casa; a miséria que fez dos seus o que serão para sempre; a violência que assenta arraiais na ignorância e na coerção social; a revolta como o sistema que cristaliza as classes sociais e fecha as portas.

Acabar com Eddy Bellegueule teve um sucesso estrondoso em França e no mundo, com vendas estratosféricas, artigos e traduções no mundo inteiro, conferências, autógrafos em dezenas de livrarias; uma mediatização do autor de causar vertigens aos escritores de sucesso mais experientes. Com tudo isto, as primeiras polémicas e uma histerização da pessoa de Edouard Louis. Tinha então 22 anos.

Centenas de milhares de leitores reconhecem-se na escrita fluida e seca que ele utiliza para contar o que todos os jovens homo de província viveram mais ou menos. Os jornalistas são ditirâmbicos, mas bem depressa as primeiras salvas vêm de uma franja de críticos e de observadores autorizados, que julgam com desconfiança a chegada tonitruante deste desconhecido que não pertence a nenhuma capela respeitável da edição parisiense, ousando fazer cócegas aos prescritores de tendências, metendo-lhes debaixo do nariz uma homossexualidade que não seja nem glamour, nem brilhante, nem flamejante. Tudo se precipita, vão fazer perguntas na sua aldeia, passam a pente fino os seus diplomas, há jornais que contam escândalos que os seus próximos teriam feito, mesmo a sua mãe, que irrompeu por uma conferência adentro para vituperar o seu filho por tê-los arrastado daquela maneira pela lama. Espera-se com avidez a queda do jovem prodígio, o burn-out, a negação; nunca chegarão. O jovem Edouard Louis parece alimentar-se dessas polémicas, tira proveito de cada golpe de vento da tempestade para se firmar e se afirmar. Como se aguenta, como não cai para o lado com um esgotamento? Mistério. Talvez comparado com o que um jovem homossexual tem de passar num meio hostil, este ruído mediático não seja mais do que uma ligeira brisa?

Todos esperam que Edouard Louis faça uma viragem quando publica, em 2016, a sua segunda obra, a qual trata, sempre em tom autobiográfico, de um tema altamente inflamável: Histoire de la violence [História da violência]. Numa noite de Natal, Edouard convida para sua casa um homem para fazer amor. A meio da noite, o homem tem um ataque de fúria, ameaça-o, bate-lhe, violenta-o e viola-o. Chama-se Reda, é um jovem magrebino da Argélia. Esta agressão serve de base de reflexão ao autor para tentar actualizar as fontes da violência. Fiel à sua escola de pensamento que aponta, como fermento da violência psíquica, a violência exercida pelas elites sobre as classes populares, ele prossegue juntando à sua reflexão as pragas do racismo, do colonialismo, do desenraizamento. Compreende-se nas entrelinhas que Edouard Louis encontra, pelo menos, circunstâncias atenuantes, ou mesmo desculpas, para o acto odioso de Reda. Novo cisma, nova polémica violenta, um ano depois dos atentados islamistas do Charlie Hebdo e do Bataclan, as feridas ainda estão abertas, as reacções são indignadas. Poucas pessoas estão dispostas a encontrar agora desculpas para alguém que se pareça de perto ou de longe com um árabe violento. Outros acusam com irritação Edouard Louis de reproduzir, por sua vez, o cliché detestável, banal e racista do “maricas branco parisiense” que explora sexualmente magrebinos, limitando-os a um papel de “máquina de beijar”, viril, inquietante, dominadora e sem outra função que não seja a de satisfazer as depravações burguesas. Por fim, e é aí que entra em cena a máquina judiciária, Reda reconhece-se no livro e, em Paris, amigos gays de Reda ofendem-se com o retrato feito por Edouard Louis, que é escandalosamente mentiroso. Reda apresenta queixa. Edouard Louis é defendido por Emmanuel Pierrat, um advogado célebre, abertamente homossexual, franco-maçon, coleccionador entendido de arte, defensor da imagem de numerosas figuras públicas. A panela de ferro contra a panela de barro. Incómodo. A imprensa e as redes sociais atiram-se ao folhetim judiciário, literário e, agora, people. No presente, o caso continua a correr na justiça. O advogado Emmanuel Pierrat explica-nos: “Esperamos o despacho de pronúncia do juiz de instrução. O meu cliente e eu aprovamos totalmente as alegações do Ministério Público que visam levar a julgamento Reda [pseudónimo do arguido no livro], sem aumentar este duplo drama humano: violação e roubo por um lado para Edouard Louis [tendo o cuidado de considerar a presunção de inocência], destino trágico do indiciado, pelo outro lado.

Chega finalmente o último romance de Edouard Louis, Qui a tué mon père [Quem matou o meu pai], que se poderia considerar uma tentativa de síntese, uma redenção, um traço de união entre as origens familiares, a homofobia, a violência, relatadas com traços vigorosos no primeiro romance, e a expressão de um perdão, de uma reconciliação, da vontade de ser o porta-voz desse povo mudo e martirizado que, por sua vez, martiriza porque é esse o seu destino. Edouard Louis foi visto como um jovem ambicioso, vítima e carrasco de um proletariado homofóbico? É porque se enganaram, porque eis chegado o tempo da defesa desse povo e da acusação dos mecanismos, das políticas e até das figuras políticas, que ele nomeia, uma por uma, como verdadeiros responsáveis do seu atraso. “Tu pertences àquela categoria de humanos aos quais a política reserva uma morte precoce” (em Qui a tué mon père, éditions Seuil).

Qui a tué mon père regressa às humilhações dolorosas, infligidas por esse pai obcecado por manter a sua atitude viril, enquanto perde o pé socialmente, em álcool, dificuldades no trabalho, diminuição física, conflitos com a mulher e os filhos, vergonha de ter de assumir um filho efeminado, grácil, muito inteligente e não suficientemente vigoroso. E, contrapondo-se a ele, o jovem Edouard, desejando a todo o custo ser “visto” pelo pai, ser amado, admirado por ele, como, por exemplo, naquele dia em que se travestiu de menina, num espectáculo que organizou de improviso e em que dançou, rodopiou, tentou em vão atrair o olhar do pai, desesperadamente e sem êxito… O livro está, no entanto, semeado de episódios felizes, momentos secretos, íntimos e alegres, risos por vezes partilhados com o pai tão distante. Edouard Louis deixa uma mensagem de amor tremendamente comovente e sensível, tal como pode sê-lo a de um filho que continua a sentir o ardor causado por não ser um rapaz como os outros, para um pai que não soube como fazer para o amar.

A seguir, ele vira-se para os políticos e os seus pacotes de medidas antipobres, que fizeram curvar-se as costas do pai, que o embruteceram de fadiga e ressentimento, que o reduziram a nada. Estas passagens não brilham pelos matizes, mas o objectivo não é, claramente, a temperança em ciência económica: ser muito à esquerda ou não ser…

A revolta dos Coletes Amarelos calhou na hora certa, esse “roncar” dos pobres, como começaram por qualificá-lo certos jornalistas, como se o Zé Povinho emitisse roncos à maneira dos porcos. Edouard Louis foi visto a encabeçar uma marcha em Paris de Coletes Amarelos, fotografias logo divulgadas pela imprensa. Ele publicou nas redes sociais discursos inflamados e petições. Que quer ele dizer-nos? Vejamos, Edouard Louis não é um trânsfuga de classe; e se, um dia, ele decidiu perder a pronúncia da Picardia, foi para melhor falar em nome dos seus. Sempre lhe correu nas veias a insurreição e a febre de acção de rua. E, se é um homossexual famoso, é para melhor erguer o estandarte dos pequenos sem voz. Convergência das lutas. "Os coletes amarelos falam de fome; de precariedade, de vida e de morte. Os 'políticos' e uma parte dos jornalistas respondem: “símbolos da nossa república foram destruídos.” Mas de que fala essa gente? Como se atrevem? De onde vêm??" (Excerto de um post do Facebook de Edouard Louis, 4 de Dezembro 2018).

Quando o seu rosto ainda era desconhecido, tínhamo-lo reconhecido numa cadeia de televisão de informação, na altura da batalha pelo casamento gay, diante da Assembleia Nacional, a vociferar com um pequeno grupo de activistas gays contra uma figura homofóbica caída depois no esquecimento: “Bruxa! Bruxa!”, berrava, fora de si. Talvez ele também irrite por causa disso: ele não é senão palavras, frases, livros e conferências; é também um homem jovem que desce à rua. Talvez ele irrite porque foi o primeiro a colocar sob os projectores a questão homossexual ao nível da endogamia, traço de união inesperado, ainda que o seu mentor Didier Eribon, célebre universitário, sociólogo e escritor, tivesse publicado, anos antes dele, Retour à Reims, romance autobiográfico gémeo de Acabar com Eddy Bellegueule. Também a história de um jovem homossexual da província que…

Edouard Louis é objecto de fascínio-repulsa. Diz-se tudo e mais alguma coisa acerca dele, como, por exemplo, que exigiria não ser fotografado pela imprensa senão de um ângulo que o favorecia ou que aquela seria "a Capa", ou nada feito. Ele nega por vezes com um tweet estas afirmações, outras vezes nem isso. Mantém-se fiel, haja o que houver, às suas amizades, às suas teses originais e às embirrações. Os media que traíram as suas causas, nem lhes fala. As redes sociais lançam-se sobre o seu caso na justiça. Durante esse tempo, ele faz conferências, encontra-se com os leitores, percorre o globo conforme as traduções dos seus livros, apresenta-se nos países reaccionários e homofóbicos (a Polónia, recentemente), nos países resistentes às teses de extrema-esquerda (a Suíça há bem pouco tempo).

É raríssimo aparecer na televisão, praticamente inacessível, não tem tempo, tem 26 anos, quer salvar o mundo.

Tradução de Rita Veiga

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