Inconformismo na retirada das barracas de flores no Prado do Repouso
Arlinda e Rosa vão desistir, Sónia e Maria continuam. As barracas da porta do cemitério oriental foram retiradas pela câmara por alegada falta de segurança. Floristas podem continuar, mas só se montarem e desmontarem uma estrutura própria todos os dias.
O fim estava anunciado há quase meio ano. Mas na véspera da retirada das barraquinhas de venda de flores e velas do Cemitério do Prado do Repouso, Arlinda Neves ainda rezava “a todos os Santos” para que a notícia fosse “mentira”. O neto ia buscá-la dali a minutos para a ajudar a encaixotar a mercadoria excedente. Mas nas caixas de cartão não se arrumavam as memórias da mãe e da irmã, ali vendedoras noutros tempos, dos clientes que viu crescer e partir, da juventude como florista. Na manhã de quinta-feira, apesar das suas preces, os camiões da Câmara do Porto levantaram as quatro barracas do chão. E Arlinda Neves, 90 anos, sentou-se num banquinho, a poucos metros, a ver o fim. Emocionada. “Por estes dias só choro porque quero trabalhar. Não conheço mais nada.”
A sentença foi da Câmara Municipal do Porto. Um “parecer” dos serviços municipais deu conta do “avançado estado de degradação das estruturas” colocadas à entrada do cemitério e a autarquia, que tem como função “garantir que o exercício da venda ambulante seja realizado de acordo com o que ditam as normas do código regulamentar e de segurança”, entendeu que a solução passava pela retirada. Agora, diz o gabinete de comunicação do executivo de Rui Moreira, “caberá à junta de freguesia [do Bonfim] licenciar novas estruturas amovíveis que cumpram as normas em vigor”.
A junta recebeu da autarquia a informação de que as barracas seriam retiradas e não deveriam ser substituídas por outras do género. “A decisão é da câmara e não me vou pronunciar sobre ela”, disse ao PÚBLICO o presidente José Manuel Carvalho, eleito nas listas de Moreira. A responsabilidade de emitir licenças passará para as juntas de freguesia em Janeiro e a do Bonfim dá o aval às floristas do cemitério que quiserem continuar. No entanto, “a concessão não pode implicar uma barraca fixa”, esclareceu: “Podem usar tendas amovíveis, a minha preocupação principal era as pessoas não perderem o seu negócio.”
Rosa Santos, 76 anos de vida e mais de 60 como vendedora naquele lugar, vai desistir. “Não posso levar e trazer a mercadoria todos os dias”, lamenta a apontar as muitas velas, cravos e baldes que ainda guardava na barraquinha na véspera da retirada. Foi parar ali com 13 anos, a fazer cumprir uma quase tradição familiar. A mãe acompanhava o avô no enfeite das lápides e acabou por ficar por lá, ela ajudava a mãe e substitui-a quando as forças já não chegavam para aguentar o negócio. António de Oliveira, seu ajudante e zelador dos gatos do cemitério, não se conforma com o desfecho: “A câmara nunca fez nada por estas barracas. As pessoas investiram aqui, pintaram os seus espaços. E agora ficam sem nada?”
Quando a mãe de Sónia Pereira faleceu, a 13 de Setembro de 2015, ela enganou as saudades com idas diárias ao cemitério. Limpava a campa, punha-a bonita com flores. Um dia, decidiu plantar relva à volta e, contra todas as previsões, a cobertura medrou. “Ficou tão bonito que começaram a pedir-me para fazer isso noutras campas”, conta. Ela agarrou a ideia e quando surgiu a oportunidade de ficar com uma das barraquinhas de madeira na entrada do cemitério, não deixou escapar. O sobrinho de 15 meses estava numa instituição e com aquele emprego seria mais fácil ficar com ele.
A ela e à sócia Paula chamam-lhes até “as meninas da relva”. Elas não se limitam a vender flores e velas. Fazem manutenções das sepulturas, jazigos e capelas. São “psicólogas”, ouvidos atentos, ombro amigo. “Às vezes é difícil não ficar deprimida aqui”, diz Sónia Pereira, 38 anos, “mas a gente gosta de ajudar”. Na reunião na câmara, quando lhes comunicaram a decisão de acabar com as barracas, tentou ainda propor uma outra solução. Mas “não houve espaço para negociação”, lamenta. “Se estas barracas não têm condições podiam pôr outras, a gente até podia pagar mais”, argumenta Maria da Conceição: “Quem quisesse ficava, quem não quisesse ia embora.” Agora que não há volta a dar, só lamenta não ter feito “barulho” mais cedo. Os clientes, tristes com a perda, até lhes disseram estar disponíveis para rubricar um abaixo-assinado. “Não concordaram nada com isto.”
O veredicto deixou Joaquim Guimarães, coveiro no Prado do Repouso, com os nervos em franja. Também ele tentou há meses ter uma barraquinha por ali, mas a resposta veio negativa. “Estão a destruir meios de sobrevivência”, acusa: “Estas pessoas estão a ser escorraçadas para a lama. A câmara preocupa-se com a imagem do espaço. E as pessoas?”
Por estes dias, Arlinda Neves anda inconsolável. Saudosa de tempos que não voltam. É vendedora desde os nove anos - “hortaliças, frutas, corria a cidade toda” – e não se imagina fechada na casa do filho, em Gondomar. “Não gosto de estar a dar à língua nem de estar parada. E agora o que vou fazer?”
Maria da Conceição e Sónia Pereira, há dois anos a trabalhar no primeiro cemitério público do Porto, benzido pelo Bispo D. Frei Manuel de Santa Inês, a 1 de Dezembro de 1839, vão continuar por ali. Maria e o filho já projectam levar um atrelado e só esperam não ter entraves. E resistir ao frio do Inverno e ao calor que derrete velas do Verão. Sónia não perdeu tempo. Ainda os camiões da câmara andavam por ali e já ela improvisava uma caixa com as mercadorias e vendia “à moda antiga” e inscrevia a promessa de continuar num quadro de giz. Nos próximos dias há-de levar um toldo. Resistir. “Estou perto da minha mãe, daqui não quero sair.”