O mundo electrónico de Carlos Maria Trindade está a ser redescoberto

Um dos pilares da modernidade sonora portuguesa das últimas décadas – como produtor, executivo e músico, dos Heróis do Mar aos Madredeus –, tem vindo a ser reavaliado também à luz da sua obra solitária de música electrónica ambiental. Esta quinta-feira no Lux-Frágil, em Lisboa, um espectáculo reaviva esse património.

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Daniel Rocha

Será uma noite especial. Carlos Maria Trindade, histórico da música feita em Portugal, aventura-se numa actuação exclusiva esta quinta-feira, no Lux-Frágil, em Lisboa, no âmbito da residência Red Bull Music presents Locals Only, que pretende celebrar aqueles quem têm deixado “pegada cultural na sua cidade de escolha, independentemente de onde vieram”. Além de Trindade, haverá espaço para conhecer a singular pop electrónica de Surma e as incursões dançantes do francês iZem, da portuguesa Caroline Lethô ao lado de David Rodrigues, ou dos membros da editora No She Doesn’t.

O destaque vai para o teclista dos Madredeus, ex-Corpo Diplomático, ex-Heróis do Mar, ex-A&R da editora Polygram (agora Universal) e produtor de discos de Marisa, Rádio Macau, Paulo Bragança, Delfins, António Variações ou Xutos & Pontapés. Um dos mentores da pop cantada em português, mas também um dos artífices nacionais das electrónicas ambientais, principalmente em trabalhos a solo ou em duo. Será precisamente esta última faceta, que tem vindo a ser redescoberta nos últimos anos, a evidenciar-se numa apresentação que pretende ser uma viagem pela sua discografia, com algumas novidades pelo meio.

No início deste ano uma editora espanhola, a Urpa i Musell, resolveu mesmo reeditar Mr. Wollogallu, que Trindade gravou com Nuno Canavarro em 1991. O álbum é composto por duas partes distintas, a primeira com composições de Trindade e a segunda com composições de Canavarro, autor do álbum Plux Quba (1988), outro surpreendente exemplo de electrónica criada em Portugal entre o final dos anos 1980 e 1990 que tem obtido reconhecimento internacional nos últimos anos, tendo sido reeditado pela última vez em 2015 através da conhecida editora americana Drag City.

Em 2006, em entrevista ao PÚBLICO, Trindade recordava que o processo de criação desse disco não havia sido fácil: “Houve grandes divergências com o Nuno. Foi um disco a dois, mas foi muito solitário. Não foi um disco de prazer. Foi um disco de trabalho.” A verdade é que, ouvido hoje, respira uma actualidade contagiante, cruzando estruturas electrónicas abstractas, timbres acústicos e variações harmónicas, numa toada ambiental de belo efeito.

Alguns anos mais tarde, em 1996, Carlos Maria Trindade haveria de editar, desta feita solitariamente, o álbum Deep Travel. Dez anos depois, surgiria o registo Música Naive, gravado com a designação No Data, ao lado de Luís Beethoven dos Ópera Nova, pioneiros da electropop dos anos 80 que também produzira.

O primeiro é o seu álbum mais solitário (descontando a participação vocal de Natacha Atlas num tema) e trata-se mais uma vez de um registo electrónico instrumental que cruza sons e imaginários exóticos, aproximando-se da energia encantatória do conceito cunhado por Jon Hassell como “quarto mundo”, numa espécie de unificação de configurações remotas e futuras. O segundo é constituído por expansivas digressões de cariz ambientalista, com alicerces electrónicos, ocasionais motivos acústicos, elementos exóticos e orquestrações envolventes.

É música de horizontes amplos —​ como o Alentejo onde habita a maior parte do tempo nos últimos anos —, música que sugere estados de alma em vez de os impor, aquela que Trindade tem vindo a propor. Depois desse disco houve ainda a compilação retrospectiva 20 Músicas Nómadas (2011) e Oriente (2015), um conjunto de impressões que foi recolhendo ao longo das suas viagens, mais dois exemplos de como o seu percurso é marcado por dois movimentos diferentes. De um lado, os grupos que fundou ou que integrou (Soft Thud, Corpo Diplomático, Heróis do Mar ou Madredeus), e com os quais sempre abordou o formato da canção. Do outro, os discos a solo, ou em duo, onde procura formatos electrónicos ambientais, predominantemente instrumentais, de formas quase sempre abstractas.

Será sobre essa sua faceta menos visível, mas que agora tem vindo a ser reavaliada, que o espectáculo desta quinta-feira incidirá. Já se sabia que era um dos pilares da modernidade sonora portuguesa das últimas décadas como produtor, executivo e fundador ou integrante de várias aventuras nucleares da música feita aqui, mas agora urge descobrir também o obreiro e produtor solitário de música electrónica ambiental.

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