Luísa Sobral despiu as canções até chegar a Rosa
Pela primeira vez com um álbum cantado por inteiro em português, Luísa Sobral chamou Raül Refree para gravar Rosa, álbum em que se liberta da educação jazzística.
Luísa Sobral regressou dos Estados Unidos em 2011. Tinha estado na obrigatória Berklee College of Music; tinha cantado em restaurantes e bares, e ganhado prémios de composição. E quando aterrou de novo em Portugal, após quatro anos a batalhar na terra do jazz que lhe servia de candeia à voz, trazia ainda o pó desse lugar musical colado ao corpo. Demorou sete anos a descontaminar-se dessa aprendizagem, a libertar-se do perfil que construiu dentro de uma escola e foi traduzindo num cancioneiro jazz-pop pouco habitual por aqui. Não que a descontaminação signifique um passo necessário no seu percurso, mas é sobretudo sinónimo de uma relação cada vez mais pacificada com o confronto entre a cantautora que lhe ensinaram que podia ser e aquela que, deixada à sua sorte, escolheu ser em liberdade.
De certa forma, Rosa, o seu quarto álbum – descontando o disco infantil Lu-Pu-I-Pi-Sa-Pa –, é a consumação dessa progressiva descoberta pessoal. Não querendo comparar-se a “artistas da grandiosidade de Picasso ou de Miró”, Luísa Sobral acredita que a sua estrada conduz ao mesmo destino de simplicidade. “Lembro-me de ir a uma exposição do Miró e ver, logo no início, um quadro maravilhoso que ele pintou com 18 anos, uma coisa incrível, gigante, com absoluta perfeição técnica. E depois acabar com ele a pintar um traço num quadro. Não querendo dizer que estou a fazer o mesmo caminho que o Miró, sinto uma necessidade de ir à simplicidade das coisas, ir despindo, ir tirando as camadas.”
Camada após camada, aquilo de que acabou por se soltar em Rosa foi, precisamente, a capa jazzística de que sempre se tinha coberto até agora. No anterior Luísa, a cantora e compositora falava de um outro movimento, em que tentava contrariar a imagem de criadora de canções “cor-de-rosa”, bonitinhas e certinhas, reclamando uma densidade adulta que antes parecia arredada de uma marca autoral demasiado juvenil e idílica. Já não era tanto o jazz então a mapear-lhe os passos – ela que andara a ouvir muito Joni Mitchell e Tom Waits na altura em que compunha –, embora o álbum produzido por Joe Henry (Elvis Costello, Aimee Man) e com músicos como Marc Ribot e Patrick Warren surgisse ainda enquadrado pela geografia norte-americana. Ao jazz juntava-se então um claro sombreado folk.
Só que mesmo sendo aquele um universo natural para Luísa, a aventura adulta dirigida por Joe Henry, perfeita na execução, sofria da impessoalidade que a cantora percebeu no final do processo. “A maneira como ele me disse adeus no primeiro dia foi igual àquela como me disse adeus no último dia”, recorda. “Penso que foi um pouco uma questão cultural, e é verdade que não tem de haver uma ligação, porque é uma relação de trabalho. Mas é bom quando essa ligação existe porque, no fundo, não é só trabalho, a música tem um lado emotivo.” Talvez ainda não o soubesse, mas quando convidou o catalão Raül “Refree” Miró (conhecido sobretudo pelas parcerias que desenvolveu com as cantoras Sílvia Pérez Cruz e Rosalía) para produzir Rosa, é provável que estivesse já a manifestar-se o desejo de passar para a música o calor de uma relação profissional que soubesse ir além disso.
Até porque o universo de Rosa é bastante mais íntimo do que os dos álbuns anteriores e exigia um outro envolvimento com as canções. Um reportório escrito durante a segunda gravidez de Luísa Sobral, 100% em português e a pedir na cabeça da cantautora uma redução ao osso (as palavras pousadas apenas sobre voz, guitarra e, só se necessário, pouco mais), não se revelaria por inteiro filtrado por ouvidos clínicos e por alguém que não acabasse a despedir-se com um mínimo de emoção. Luísa não estava a partilhar apenas um conjunto de canções, mas uma porção considerável da sua vida. E tudo isso se tornou mais claro quando, por coincidência, a cantora assistiu ao concerto de Sílvia Pérez Cruz (sem Raül) no Centro Cultural de Belém, em Junho de 2017.
“Sou uma grande fã da Sílvia e a ideia para este disco surgiu em parte depois desse concerto”, conta Luísa. “Foi um dos concertos mais bonitos da minha vida. Tocou-me imenso e fez-me repensar nas coisas. Era só voz e quatro instrumentos de cordas, com aquela maneira de ela se entregar às canções. E pensei: ‘É isto que quero’. Não no sentido de fazer igual, mas na procura da simplicidade.” E foi então, pensando que em disco sempre tinha preferido os registos de Pérez Cruz gravados com Raül Refree (11 de Novembre e Granada), que decidiu ser aquele o parceiro ideal para a ajudar no parto de Rosa.
Receber o silêncio
Luísa Sobral está ainda a aprender a ser a intérprete de Rosa. Recém-regressada de Montevideu, onde tocou o álbum quase na íntegra e apresentou um reportório que carrega na sobriedade tudo aquilo que desacelera em temas mais animados, sentiu a insegurança de se ver perante um público uruguaio que a ouvia sem manifestações hiperbólicas de contentamento. Talvez porque Luísa, pela primeira vez, não se sente refém de uma ideia de espectáculo em que tenha de compensar com “canções mais divertidas” todas as outras em que o tom baixa e suaviza. É essa delicadeza pouco esforçada que encontramos agora, com um encanto calmo e subtil, nos excelentes Dois namorados, Benjamim ou Não sei ser. “No final do concerto de Montevideu, um senhor veio ter comigo e disse-me: ‘Não sei como é que a Luísa queria que nos manifestássemos. Estávamos a adorar o concerto, sentadinhos, mas não fazia sentido estarmos aos gritos’. Tenho de pensar que se é isto que quero dar às pessoas, então tenho de saber receber o silêncio. Não que antes andasse a fazer rock’n’roll, mas tenho de me adaptar a este novo disco, muito mais intimista e que vai ser ouvido de outra forma.”
Foi também por considerar Raül “perito a trabalhar o silêncio” que Luísa quis chamar o músico para um álbum em que a regra de base decretava que só na eventualidade de os dois não bastarem para dar vida a uma canção é que seriam chamados músicos adicionais. E, por sugestão do catalão, esses acrescentos aconteceram com recurso exclusivo a um pequeno ensemble de sopros. É essa a beleza discreta alcançada por Rosa, sem apontar ao grandioso, alinhando sempre num registo cuidado que torna o álbum muito lá de casa, tangente a uma ideia de tranquilidade – mesmo quando, como acontece em Nádia (escrita depois de “ver uma peça no telejornal sobre um campo de refugiados na Grécia” e em que Luísa é mensageira da história de uma mãe que perdeu o filho), é enganadora.
É também dessa intimidade, desse reduto caseiro, que surge o dueto Só um beijo, partilhado com o irmão, Salvador Sobral, depois de muita resistência da sua parte. E isto porque ao escrever uma canção que cruza duas melodias, inspirada por Sem fantasias, de Chico Buarque, pensou em partilhar o tema com Salvador, mas logo se lembrou das “coisas horríveis” que ouviu no pós-Festival da Canção e não quis ver-se acusada de tentar aproveitar-se do sucesso do irmão. Foi a mãe que a pôs no lugar: “Mas se nunca te importaste com o que as pessoas dizem porque te vais importar agora?”
Rosa também é um disco de casa no sentido em que Luísa Sobral, empurrada pela música que tem ouvido (de António Zambujo a Márcia) e pelas encomendas de canções a que tem respondido (de Ana Moura a Mayra Andrade), se tem vindo a apaixonar cada vez mais por compor em português. E por ter vislumbrado, com uma nitidez que poucas dúvidas oferece, o quanto o público se liga de maneira muito mais afectiva às canções que escuta na sua língua, o quanto aumenta a disponibilidade de uma plateia para acompanhar as histórias que ela partilha em verso e o quanto é também em português que fala em casa, que fala com os filhos e lhes dá as boas noites. As emoções, sabe-o agora perfeitamente, sobem-lhe à boca em português. Ignorar isso, neste momento, significaria ser incapaz de escutar-se.