Uma exposição sobre incêndios e a inclusão que nasce das cinzas
Crianças e jovens com autismo visitaram exposição sobre os incêndios de Outubro de 2017 e o ano que se seguiu. A partir de Dever de Memória, pegaram numa câmara polaróide e fizeram-se fotógrafos por umas horas. Se um olhar salva do esquecimento, a fotografia pode ser uma arma de inclusão
Quando Ana Carolina observa as fotografias expostas nas paredes brancas da Quinta da Cruz, em Viseu, parece saber que um olhar pode salvar o mundo do esquecimento. Demora-se na contemplação. Comenta. Entristece ou entusiasma-se. Nunca fica indiferente. “Isto é um bocadinho triste”, diz: “Parece que as pessoas perderam tudo e agora só lhes resta acreditar numa Santa.” A fotografia à frente dela mostra um altar, a Nossa Senhora, velas, flores. E um céu ainda avermelhado, de luto por uma noite que o lugar de Ventosa, em Vouzela, não esquecerá. Foi Adriano Miranda quem captou a cena, na manhã de 16 de Outubro de 2017, quando os incêndios acesos na noite anterior anunciavam ao país que a tragédia de Pedrógão não era ainda o fim do poço. O pior dia do ano, o pesadelo maior, era agora aquele. Ana Carolina foi ver a exposição Dever de Memória com mais dez crianças e jovens da Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo (APPDA) de Viseu. No fim, todos pegaram numa câmara polaróide e, com a orientação dos fotojornalistas Adriano Miranda e Nuno André Ferreira, autores da exposição, foram fotógrafos por umas horas. A fotografia é uma arma – e eles já sabiam.
Mal cruzam o túnel escuro que dá entrada à exposição, cortinas pretas à frente, chão coberto de folhas e a cor do fogo nas fotografias das paredes, o espanto toma conta dos visitantes. “Quase parece que estamos lá”, alguém comenta em surdina. Martim Duarte, 12 anos, já entrou naquele edifício “milhares de vezes”, mas nunca para ver uma exposição sobre os incêndios. “Quando veio o fogo”, apressa-se a contar, teve até de “andar de máscara” por causa do fumo. E o avô “perdeu tudo, até ia ficando sem o cão”. Para aquelas crianças e jovens com perturbações do espectro do autismo, dos cinco aos 27 anos, a história dos incêndios não é apenas notícia de jornais ou televisão. Um amigo, um familiar, um vizinho: quase todos têm elos directos com aqueles dias de medo e incerteza. E sabem bem das dores e vidas suspensas, mas também da esperança possível numa narrativa tomada pelo negro.
“Para além de louvar o espaço e a exposição”, Delfim Domingues quis notar a oposição entre o início da mostra, onde o incêndio começa, e o fim, cerca de um ano depois. “Numa sala temos casas destruídas e vidas arruinadas, na outra temos pessoas a saltar para a piscina”, escreveu no livro da exposição que fica em Viseu até ao fim do ano e deverá, em 2019, passar pelo Porto e Lisboa.
Prazeres Domingues, presidente da direcção da APPDA de Viseu, está sempre pronta para deixar as paredes da associação e levar as suas crianças e jovens para o “mundo real”. Para ela, é esse o caminho mais curto para uma integração eficaz. “Um dos dramas do autismo é a falta de compreensão da sociedade para os comportamentos” que pessoas no espectro possam ter. E, por isso, ir para a rua é um duplo ganho: a comunidade aprende a lidar com eles e eles aprendem a viver melhor na comunidade.
Ana Carolina tem muito clara a forma dos seus sonhos. É ainda “muito nova”, mas já decidiu o caminho profissional a tomar: “Quando crescer quero ser pintora, fotógrafa e escritora”, responde assertiva, óculos redondos, fita azulada na cabeça: “Já estou a escrever um livro. É uma comédia surrealista e chama-se Contos Absurdos: Aqui e Acolá.” Aos 16 anos, a estudante da Escola Secundária de Viriato faz recortes de jornais para se inspirar, adora “inventar contos sem sentido”, tem o Inglês e História como disciplinas favoritas no 11º ano. “Gosto muito de História porque imagino como seria viver noutros tempos. Eu, a lady Carolina, ao lado de um rei qualquer”, diz sorridente, semblante lírico.
Na mata da Quinta da Cruz, com máquinas fotográficas polaróides, todos andam em busca da sua ideia de belo. De uma mensagem a passar. Podem ser as paredes graníticas, uma árvore-estátua feita com ferramentas, flores e frutos, o recorte das árvores no céu carregado, pormenores arquitectónicos. “Adorava ter uma máquina destas”, comenta Ana Catarina ao mostrar a sua “obra” preferida, um retrato do amigo Delfim: “Esta imagem mostra felicidade, gosto muito de ver este sorriso.” E Delfim Domingues, que no curso de Animação Socio Cultural até teve aulas de fotografia, “a preto e branco e com rolos”, estende a sua polaróide predilecta, retrato de grupo onde a diversão está estampada: “Não tenho de dizer mais nada”, desafia sorridente.
A arte é quase sempre um meio privilegiado de expressão para pessoas com autismo. Dos 167 utentes da APPDA de Viseu, só três não adquiriam a fala. Alguns não alcançam muitas competências, outros têm até uma inteligência acima da média. Uns ficam pelos primeiros anos de ensino, outros chegam à faculdade. Carolina Camilo, 27 anos, veio do Brasil há pouco tempo. Quando o incêndio de Outubro aconteceu ela estava do outro lado do oceano, viu uma ou outra notícia na televisão. Mas não imaginava isto. “Só ao chegar percebi melhor. E aqui ficou clara a gravidade da situação”, comenta. Apesar de ser aluna do curso de Artes Plásticas, o contacto com a fotografia era nulo: “Foi a primeira vez que fotografei. Gostei muito.”
Prazeres Domingues não precisava de provas, mas acabou por recolher ali mais uma. Com a inspiração dos fotojornalistas Adriano Miranda, do PÚBLICO, e Nuno André Ferreira, do Correio da Manhã e Agência Lusa, as crianças e jovens da APPDA “ganharam o bichinho da fotografia”, comenta dias depois da iniciativa que, tal como a exposição, é promovida pela Câmara Municipal de Viseu. Na associação já se pensa em promover um atelier de fotografia no próximo ano: “Isto abriu-lhes novas perspectivas.” E para progenitores de crianças e jovens com autismo, como a própria presidente da associação, não há alegria maior do que essa: “Qualquer pai que tem um filho diferente só deseja que ele seja aceite e se integre. Nada magoa tanto como o olhar de reprovação”, assegura. E se um olhar pode salvar do esquecimento, a fotografia pode também ser uma arma pela inclusão.
Benedita, Ana Carolina, Filipe Domingues, Martim, Ricardo, Vera, Filipe Costa, Carolina, Delfim, João e Ana Catarina fazem uma roda. Cada um vai escolher a sua imagem favorita, para aparecer nas páginas do jornal. As restantes levarão para casa. Ou, juntando todas, pensam, talvez possam construir um álbum daquele momento. A exposição Dever de Memória, que deu também origem a um livro, “tocou ao coração” de Ana Carolina: “Tenho tios que perderam casas e depois disto consigo pôr-me nas sapatilhas deles.” E na imagem eleita por Carolina Camilo há uma dupla leitura onde cabe a alma da mostra. “Há vegetação seca e outra verde”, descreve, "é o que foi destruído e o que já ficou bem.” Lição mais do que apreendida.