O Natal é “uma época muito delicada” para quem é LGBTI

A ILGA e a TransMissão, duas associações de defesa dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, transgénero e intersexo, organizam jantares e almoços de Natal a 24 e 25 de Dezembro, em Lisboa. Ninguém tem de ficar sozinho.

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Sacha Montfort
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João Carlos

“Costumava ir a casa fazer a vivência do Natal, até que deixei de ir. Lembro-me que passei o Natal muito bem-disposto. Comprei uma série com oito temporadas e um bom vinho. Senti-me mesmo feliz.” É assim que, uma década depois, João Carlos, de 40 anos, lembra o momento em que optou por deixar de passar o Natal em família. “A minha mãe faleceu quando eu tinha 15 anos e a partir daí a convivência com o meu padrasto não foi de forma nenhuma difícil, foi só solitária. Além disso, vivíamos numa cidade pequenina e a minha experiência de algum bullying e ataques na escola, em termos de memória, colou-se à cidade inteira”, recorda.

Desde então, o Natal tem sido passado entre amigos e, nos últimos dois anos, no Centro LGBT, da ILGA - Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero, onde também é voluntário. ​Este ano, João e o namorado fizeram planos diferentes para a quadra: vão passar o Natal num hotel com spa. “Queríamos fazer uma coisa os dois.” Vai ser “íntimo e pessoal”. 

É “mais comum as pessoas LGBTI [lésbicas, gays, bissexuais, transgénero e intersexo] terem uma experiência difícil com o Natal porque é um tipo de discriminação que ataca as relações e os afectos”, nota João Carlos. E é por isso que a ILGA e a TransMissão - Associação Trans e Não-Binária vão organizar uma ceia de Natal e almoços no dia 25 de Dezembro, em Lisboa. “A preocupação é dar uma resposta para que estas pessoas não tenham de estar sozinhas. Esta é uma época muito delicada para as pessoas LGBTI”, declara Marta Ramos, directora-executiva da ILGA.

Quanto à iniciativa da TransMissão — a primeira do género promovida pela associação criada em 2017 —, a ideia de organizar um almoço de Natal vegan partiu da experiência de Sacha Montfort, membro da TransMissão. “Surgiu a pensar em duas mulheres ‘trans’ que conheço e que são muito amigas, mas passam o tempo todo só as duas.” 

O “período natalício é muito difícil”, confirma Sacha. O tipo de experiências é diverso e depende das pessoas. “Há quem esteja no armário e vai ter de ser tratado pelo género designado à nascença; há pessoas que saíram do armário e foram rejeitadas pela família e já não podem ir; mas também há aquelas cuja família faz esforços para as incluir”, exemplifica.

“O Natal é um período de bastante solidão e grandes mágoas” para a comunidade LGBTI, nota também Ana Cristina Santos, investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenadora do Intimate — um projecto de investigação que durou cinco anos e estudou vários aspectos da intimidade de pessoas LGBTI em Espanha, Itália e Portugal. “Não é só a discriminação e o corte directo. Muitas vezes é o silêncio no jantar de Natal. É o não poder levar o companheiro ou a companheira.” E esse silêncio “dói”.

Depois, há as dinâmicas familiares, que não se toleram tão facilmente como entre casais heterossexuais. “Conheço casais que estão juntos há dez anos e uma passa o Natal de um lado da família e a outra passa o Natal do outro lado da família. Embora haja aqueles ajustes [dos casais heterossexuais], de passarem uns anos com uns e o seguinte com outros, em termos das pessoas LGBTI isso não é considerado”, lamenta João Carlos. E “mesmo que às vezes até haja alguma compreensão e encaixe pelos parentes directos, o Natal junta muitos familiares indirectos”, comenta. E gera desconfortos: “Há uma hipersexualização das pessoas que são LGBTI e num casal de dois homens ou de duas mulheres isso vem sempre à mente”. Essa hipersexualização, diz em tom de brincadeira, “não casa bem com o peru”.

Prova também de que esta é uma altura complicada é a “sobrecarga” dos serviços de acompanhamento psicológico da ILGA durante a época, aponta Marta Ramos — a associação tem uma linha de apoio disponível de quarta a sábado das 20h às 23h, através dos números 218 873 922 ou 969 239 229.

Um conselho: “Não ficar sozinho”

Para quem não tem opção e tem de ficar em casa que estratégias podem ser adoptadas? “Sobretudo, não ficar sozinho. Se a família não os entender, tentar ligar a amigos ou recorrer à Internet”, aconselha Sacha. O activista também defende que aproveitar a data para educar a família para temas como orientação sexual e identidade de género pode não ser uma boa ideia. “Em alguns casos, pode levar a muita violência e não falar do assunto é uma estratégia de defesa.”

Mesmo assim, Sacha Montfort lembra que “há famílias que são óptimas e são uma fonte de apoio e protecção”. João Carlos concorda: “Há gente com famílias espectaculares. Gente com famílias que não eram mas que ficaram espectaculares porque fizeram esforços para isso. Há miúdos e miúdas que não têm atitudes de auto-dano porque algumas dessas pessoas fizeram o trabalho de se reverem por amor e por carinho e isso é mesmo Natal.”

A investigadora Ana Cristina Santos também sublinha que nem tudo é negativo no contacto com as famílias de origem. “Há relatos muito bonitos de aproximação.” Estes processos, refere, “não são cristalizados no tempo”. São aprendizagens que “podem levar anos”. Além disso, entre os entrevistados para o projecto Intimate ninguém disse: “Eu estou completamente sozinho.” O que permite concluir que a “intimidade vai sendo desenvolvida e reconfigurada”.

José Leote, coordenador nacional da associação Rumos Novos – Católicos e Católicas LGBT, é exemplo de uma dessas histórias felizes. Foi casado com uma mulher, tem três filhos, e vive há 11 anos com o companheiro. Passam o Natal todos juntos. Reconhece que há situações de discriminação na família e, por isso, a associação apela à “aceitação e tolerância”. E nota que, pelo que constata entre os contactos que tem através da Rumos Novos, se caminha no sentido de uma maior “sensibilidade por parte das famílias”.

Em relação à Igreja Católica, “tem de ter uma mensagem menos institucional e mais próxima da fé”, defende José Leote. “Sobretudo nesta altura.” E mais: “Tem de produzir documentos que abordem com clareza estas pessoas. A Igreja tem de perceber que tem um conjunto de fiéis que são estigmatizados devido à sua orientação sexual. É importante que do ponto de vista doutrinário esclareça os bispos, padres e todas as pessoas com responsabilidade dentro da instituição.”

A amizade é fundamental

A importância das famílias de escolha, que por vezes surgem em substituição da família de origem, é um aspecto que tanto João Carlos como Sacha Montfort destacam como crucial para uma vivência menos solitária do Natal. “A percepção que tenho, de amigos meus, é que muitos fazem o Natal com as famílias de escolha. Outros também fazem o Natal com a família biológica porque têm famílias que os integram a eles e aos seus namorados e namoradas”, aponta João Carlos.

Ana Cristina Santos também nota que uma das principais conclusões do projecto Intimate é que “a chamada família de escolha é tão ou mais importante na gestão da vida quotidiana do que a família biológica”. Durante as 85 entrevistas realizadas no âmbito do Intimate, dois terços das pessoas “colocavam na sua rede de cuidado imediato as pessoas amigas”. Mas estas pessoas não se limitam a receber cuidados. Há “um forte envolvimento dos entrevistados na prestação de apoio às outras pessoas”.

Victoria Berset, uma mulher “trans” e activista que vai estar no almoço da TransMissão, também fala da importância de cuidar dos outros nesta altura do ano. “Há por aí muito mais pessoas do que pensamos que não têm com quem partilhar estes momentos” e é por isso que vai abdicar de estar com a sua própria família nesta data. “Que exemplo estamos a dar se não partilhamos o nosso amor e a nossa presença, que são o que temos de melhor?”

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