Teresa Paixão: “Na RTP2 mostramos aquilo que só a TV pode mostrar”

Entrevista com Teresa Paixão, directora de programas da RTP2, canal que cumpre 50 anos no dia de Natal – uma programadora que veio dos programas infantis para dirigir uma televisão que se apresenta como “culta e adulta”.

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RUI GAUDÊNCIO

Está há 25 anos na RTP2, canal que na terça-feira cumpre 50 anos. Teresa Paixão dirigiu o departamento de programas infantis da RTP 2 entre 1989 e 2015, onde geriu espaços como o Zig Zag, e agora faz uma televisão que se descreve como “adulta”. Foi em 2015 que o então administrador Nuno Artur Silva a convidou, depois de década e meia em que o futuro do canal foi duas vezes posto em causa. A RTP2 iludiu a privatização, mas a directora de programas sabe que nunca se está a salvo. “Sei o risco que é ter um canal destes com uma audiência muito baixa. Porque já o vivi.”

Diz ter aprendido muito no canal e vir de dentro e aprender com os erros e críticas é uma vantagem. “A má-língua é um património extraordinário”, ri-se. Começou nos Jogos sem Fronteiras e na Rua Sésamo e hoje dirige o canal que começou como um espaço de repetições do que tinha sido emitido pela RTP1 até, em 1970, ter começado a ter programação própria. Nestes 50 anos, a RTP2 foi o canal de Agora Escolha, do Domingo Desportivo, de Quem Sai aos Seus ou Sete Palmos de Terra. Agora é o canal de Sara, das séries europeias como O Príncipe ou Borgen, da Britcom, dos documentários e da ópera.

A RTP2 teve como rostos o cineasta Fernando Lopes, José Júdice, António Mega Ferreira ou Margarida Marante – agora tem a única directora de programas dos generalistas, que diz a cada passo que também é espectadora “do canal 2”. Recentemente tentou comprar a série da RAI/HBO sobre a amizade feminina baseada nos romances de Elena Ferrante, A Amiga Genial, mas foi um exemplo de como o orçamento não se compadece com grandes produções acabadas de estrear. Teresa Paixão mantém o compromisso de encomendar mais documentários sobre mulheres e tem já na calha programas sobre a médica Cesina Bermudes, Natália Correia, a psiquiatra brasileira Nise da Silveira, Teresa Barros Caetano ou um novo olhar sobre Sophia de Mello Breyner Andresen.

Está na direcção de programas depois de dirigir os programas infantis da RTP 2 –​ o que aprendeu com isso para agora dirigir uma televisão que se apresenta como “culta e adulta”?
Confirmei a convicção de que uma televisão – e uma televisão pública tem essa encomenda do Estado – serve para não infantilizar as pessoas e para as tornar mais cultas, para que elas possam escolher e sentir-se melhor.

Que papel desempenha a RTP2 na televisão em Portugal?
É um canal que tem coisas diferentes. Não estou a dizer que são melhores, são diferentes. Todos os canais generalistas durante o dia têm um género de programa – um talk show com pessoas, com música. Nós não temos isso. Temos um documentário sobre o fundo do mar, sobre a selva, desenhos animados, que são coisas que as pessoas só podem ver na televisão. Mostramos aquilo que só a TV pode mostrar, enquanto os outros canais mostram na televisão aquilo que as pessoas podem ver noutros sítios.

Está na RTP desde 1986. Em 32 anos de televisão pública, como viu a RTP2 mudar?
A RTP2 não mudou muito, foi sempre um canal diferente, com mais documentários ou programação estrangeira do que o canal 1. Só muda com o tempo, com a moda. Quando ele muda verdadeiramente, os momentos em que se fragilizou, são os momentos em que o quiseram vender. Aí desgastaram o canal, transformou-se numa espécie de canal Memória 2 porque tinha de viver de repetições. Só nesses momentos não teve essa pujança, mas mesmo assim nunca foi igual aos outros.

Desde o início deste século, o futuro da RTP2 esteve sempre em aberto –​ planeou-se que fosse um canal de informação e educação, por exemplo, ou mais recentemente o governo de Passos Coelho tornou a possibilidade da sua privatização num debate nacional. Que impacto teve isso internamente?
Como espectadora e como trabalhadora sempre vivi isso com um grande espanto – como é que as pessoas acham que vale a pena diminuir? Acrescentar é o que vale a pena. Por isso quando alguém acha que diminuir a informação, o tipo de programas, o pensamento, a diversidade, a inovação é uma coisa boa, é um grande espanto. E sobretudo acho que vivo [isso] com uma grande desconfiança do país. Foi sempre muito estranho que o Estado achasse que não vale a pena ser mais diversificado, inovador, diferenciado. É com espanto e uma certa tristeza que se vive com sentimento da perda.

Teme que esses temas voltem a estar em cima da mesa?
Acho que estão sempre. Há sempre uma possibilidade, mas espero que essas pessoas à hora da morte tenham um arrependimento daqueles de matar [risos]. O primeiro canal 2 público que existiu foi na televisão austríaca, em 1963, depois foi a TVE em 1966, a BBC, nós em 1968. Os canais 2 nasceram nos anos 1960 porque provavelmente se tinha saído de uma guerra há pouco tempo e as pessoas sabiam que valia a pena ter gente mais culta, mais adulta, não infantilizar as pessoas – porque são pessoas que escolhem melhor, que percebem melhor a diferença. No século XXI vivemos um processo em que afinal o que é diferente, como tem pouca gente, porque há menos gente diferente, não vale a pena. É um pensamento muito redutor.

Sendo um canal cultural, que pode ter um público mais especializado, a RTP2 sente particularmente o impacto da pulverização das audiências, dos canais temáticos e da programação digital para nichos?
Claro que sim, mas isso não é uma coisa má. Eu faço isso quando não vejo o canal 2 e é a natureza do que acontece agora. O Fausto, do Goethe, começa assim, a dizer que já ninguém vai aos saraus culturais. Estamos atentos, a nossa função é também seduzir as pessoas para o nosso canal. Mas é o mundo a evoluir. Este trabalho é muito duro, em televisão há ciclos, mas a natureza deste negócio é sempre procurar diferentes pessoas. Claro que faz com que nos sintamos muito frustrados, claro que às vezes traz muitas dúvidas porque não sabemos o que fazer – temos esta coisa maravilhosa no ar e pouca gente quer ver…

A RTP tem esse dilema, não ter as audiências como objectivo, mas também lhes presta atenção. Disse numa entrevista que comete o pecado da ira quando vê as audiências do canal. Porquê?
Gostava muito que o canal tivesse imensa audiência. Se as massas agora abraçassem os programas da RTP2 ficava contentíssima. A ira é porque às vezes temos a sensação de que toda a gente vê o canal. Mas o “toda a gente” no canal 2 são 50 mil pessoas e noutros canais é um milhão. Nesses momentos duvidamos, se calhar são 100 mil – é a tentação de achar que aquela amostra não é adequada para o canal. E se calhar não é, porque a amostra das audiências não é uma ciência exacta. Pode até ser uma ciência oculta [risos], mas não é uma ciência exacta. Os canais culturais do resto dos países da Europa têm uma média de 100 mil pessoas a ver, o que quer dizer que têm picos de 200 mil. Nós temos uma média de 35 mil. Temos picos de 100 mil, mas nunca de 200 mil.

Sente essa pressão?
Não, não há nenhuma pressão.

Nem auto-imposta, do mercado, da administração?
Da administração, então, nem pensar. Nunca ninguém me disse ‘olha que a audiência está muito baixa’. Eu é que sei o risco que é ter um canal destes com uma audiência muito baixa. Porque já o vivi.

O risco de suscitar ideias quanto ao futuro do canal.
Exactamente. E até parece que é um bom argumento. É um péssimo argumento, mas podem transformá-lo em bom.

Nestes 50 anos, em que momentos acha que a RTP2 foi particularmente marcante para o país?
O Acontece teve um grande impacto. Foi um projecto de muitos anos e deu a conhecer muita gente das artes. O Joaquim Letria teve imenso impacto [apresentou o Informação 2, o Directíssimo e o Tal & Qual, entre outros]. O 1000 imagens do José Nuno Martins – foi a primeira vez que na TV houve um programa de crítica à publicidade. O Jardim da Celeste, que não teve o impacto da Rua Sésamo, foi a prova de que era possível fazer um programa educativo do pré-escolar, nosso. Mais recentemente, o Visita Guiada marca o canal. E a descoberta das séries europeias. [O drama político dinamarquês] Borgen não teve muita audiência, nunca passou dos 60 mil espectadores, mas teve imenso impacto.

A série Sara, série do ano do Ípsilon, teve bons resultados?
Sim. Esteve dentro dos nossos números, entre 35 e 40 mil pessoas, estava muito bem-feita.

Porque é que foi para a RTP2 quando estava prevista para a RTP1?
Porque o meu colega da RTP1 [o então director de programas Daniel Deusdado] me pediu para eu a pôr. Tive muito gosto em fazer isso. Mas não fui eu que escolhi a Sara. Confesso que fiquei um bocadinho surpreendida com a reacção dos autores, de uma grande desvalorização do canal 2, e fiquei muito chocada com isso. Eles têm esse direito…

O presidente da RTP disse ao PÚBLICO este Verão que a RTP2 “é um grande luxo de um canal”. Sente-se ao comando de um veículo de luxo?
O canal 2 tem esse luxo que achamos que o ser humano merece, do conforto. Não achamos que seja um canal luxuoso no sentido supérfluo do termo. Para mim é um grande privilégio estar ao comando e espero estar à altura. Portugal merece um canal de luxo no sentido do conforto, de algo de novo e diferente. Mas luxo não quer sempre dizer uma coisa muito cara.

Qual é o seu orçamento? Um melhor orçamento dar-lhe-ia possibilidade de fazer o quê?
Nunca chega. Temos cerca de 8 milhões de euros para fazer o canal, o orçamento tem vindo a aumentar, e se tivesse mais dinheiro investia em ficção nacional – não só séries, cinema, no desenho animado que é uma das coisas que temos mais possibilidade de vender. Um cão, um bule, fala qualquer língua. É onde acho que Portugal precisa de mais investimento. Espanha já está num patamar acima do nosso desde que Pedro Almodóvar ganhou o Óscar. O que é necessário é fazer em Portugal, e fazer evoluir. Enquanto não houver mais investimento o grau de exigência não pode ser muito elevado.

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