Queriam parar o país, mas não chegaram a pô-lo em marcha
Em termos reivindicativos, até havia pano para mangas. Os “coletes amarelos” pediam tudo, às vezes uma coisa e o seu contrário. Mas, ao contrário da polícia, não conseguiram a mobilização prometida.
Faltava um par de horas para o sol nascer quando João Colaço e Naila Kalda, de 26 e 22 anos, saíram de Rio Maior vestidos com “coletes amarelos” em direcção a Lisboa. Esperavam que mais pessoas tivessem feito o mesmo, em nome do objectivo de “Parar Portugal”. Mas quem se mobilizou a sério para as manifestações agendadas para esta sexta-feira foram as autoridades policiais.
Centenas de agentes foram mobilizados para responder às “manifestações de grande dimensão” que as autoridades previam para 17 pontos do país. Uma expectativa muito aquém da realidade. Quem se manifestou fê-lo sobretudo para contestar a classe política. Ao nascer do dia, Luísa Patrão, uma das organizadoras, dizia na rotunda do Marquês de Pombal, em Lisboa, que estava ali quem “não gosta do trabalho dos nossos funcionários no Parlamento”.
As manifestações dispersaram-se durante a manhã, à excepção de um grupo que “acampou”, cercado de polícias, no Marquês de Pombal.
Coube quase tudo no seu saco de contestações. Apontaram o dedo aos perdões fiscais avultados, aos resgates de bancos, às falsas presenças, polémicas com as moradas e viagens de quem ocupa cargos públicos. Também se falou da ala pediátrica do Hospital de São João, das indemnizações às vítimas dos incêndios de Pedrógão Grande e dos luxos da classe política — até contra as “casas com piscina” se gritou a dada altura. Pediram-se coisas aparentemente inconciliáveis, como mais prestações do Estado e menos impostos e, acima de tudo, invectivou-se a corrupção atribuída à classe política.
“Há uma consciência na sociedade portuguesa de que os ricos, os políticos em particular, podem fazer de tudo e passam impunes”, dizia Carlos Costa, empresário de 58 anos, vindo de Cascais. Não viu a justiça reformar-se como esperava, por isso voltou a uma manifestação quase 40 anos depois.
Para Isabel Gordinho esta foi a primeira. Bibliotecária, de 57 anos, lembra como aos 12, no 25 de Abril, achou que “passaria a viver num país de plenos direitos”. “Em vez disso, a minha mãe ganha 300 euros de reforma, eu não sou aumentada desde 2008 e a minha filha, enfermeira, teve de emigrar. Então pago impostos para se salvarem bancos, Duartes Lima e Salgados?” E a mesma revolta ouvia-se de muitos manifestantes.
No Marquês, eles sempre foram muito menos que os polícias — havia “entre 80 a 100 ‘coletes amarelos’”, segundo fonte policial, para centenas de agentes. Passaram o dia andando em círculos, avançando e recuando sem uma liderança ou direcção muito concretas. Esta imagem do protesto de discurso e movimento circular, que se vai esgotando até pousar no chão, pode ser uma metáfora eficaz para resumir o que se passou também noutros pontos do país. Em Lisboa, a desproporção de forças permitiu à PSP circunscrever, em vários momentos da manhã, os manifestantes em pequenos espaços da rotunda — apesar dos protestos dos acantonados — e manter o trânsito a fluir.
O cerco gerou alguns momentos de tensão e confrontos directos com as autoridades, resultando em três detidos. Os organizadores sempre se demarcaram de posturas violentas. Luísa Patrão, a meio da manhã, falava numa manifestação “estragada” pela extrema-direita, que colocou rostos conhecidos na primeira linha.
Os ânimos acalmaram, mas a falta de uma liderança clara, e única, condenou o projecto da marcha até ao Parlamento. O protesto praticamente não saiu do sítio. Terminou por volta das 18h, altura em que Marcelo Rebelo de Sousa passou pelo local.
Também a Ponte 25 de Abril — apontada como um dos pontos sensíveis — esteve deserta de protestos, mas carregada de polícias. Aí, de manhã, havia centenas de agentes de várias divisões da PSP, equipamento diverso e dezenas de jornalistas. Mas zero de bloqueios e um número insignificante de “coletes amarelos” em protesto. Por volta das 11h, parte do contingente abalou para outras paragens.
Noutros pontos do país interpretou-se um reportório semelhante: cantou-se o hino nacional e gritaram-se palavras de ordem tradicionais. “O povo unido jamais será vencido”; “Costa, escuta, o povo está em luta”. Houve dificuldades no trânsito em algumas cidades, mas foram alguns desacatos entre manifestantes, como em Braga (ver caixa), a concentrar as atenções.
Marcelo dá folga a motorista
O Presidente da República quis dar um sinal de normalidade e, para isso, dispensou o motorista e a segurança e foi da sua casa, em Cascais, para o Palácio de Belém ao volante do seu próprio carro. “Portugal não tem problemas políticos da gravidade de outros países europeus. Se houvesse dúvidas, ela têm sido desmentidas todos os dias, literalmente”, reiterou mais tarde, no encerramento do encontro anual do Conselho da Diáspora Portuguesa.
A fraca adesão ao protesto permitiu-lhe repetir que “os portugueses não trocam a segurança da democracia pelo aventureirismo das experiências marginais, anti-sistémicas”.
O problema é outro, afirmou, em jeito de recado a partidos e sindicatos: “Os protagonistas políticos e sociais têm de olhar com mais atenção para o que mudou na sociedade portuguesa, na Europa e no mundo. E têm de se saber ajustar a movimentos inorgânicos que surjam, a novos desafios difíceis para a democracia vindo do mundo tecnológico e digital, a novas formas de expressão política, a novas gerações de blocos”.
Além das detenções em Lisboa, a PSP identificou oito manifestantes no Porto e outro em Coimbra, sem registar incidentes de maior. A PSP não revelou o número de agentes mobilizados. com Álvaro Vieira, Leonete Botelho e Luciano Alvarez