Nas garagens da Picheleira, droga e insegurança em exposição permanente

Há década e meia, um grupo de agentes culturais instalou-se num bairro com a esperança de “dar outra vida à zona”, mas dizem agora que o local é como um novo Casal Ventoso. Câmara de Lisboa promete investimentos e melhor segurança.

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Nuno Ferreira Monteiro

A conversa no atelier de Pedro Gomes já vai longa quando se vêem dois vultos a passar lá fora, rente à janela, em passo apressado. Pedro Gomes pára de falar, levanta-se e em dois passos chega à porta, que escancara: “Saiam já. Aqui não. Este é o meu local de trabalho.”

Vêem-se novamente os vultos a passar, desta vez em sentido contrário. Encontrá-los-emos daí a minutos sentados a meio da escadaria que liga a Rua João Nascimento Costa às traseiras. São dois homens e seguram o que parecem ser cachimbos de crack e tiras de papel de alumínio, em tudo iguais às muitas dezenas que se encontram por ali espalhadas.

Pedro Gomes, artista plástico, diz que o seu dia-a-dia se transformou nisto há uns anos. De manhã, quando chega ao atelier, é frequente ter alguém a dormir à sua porta. Durante o dia, várias pessoas tentam aproveitar o recato do sítio para consumir drogas. Mal começa a anoitecer vai-se embora, para evitar chatices.

Este é o bairro municipal João Nascimento Costa, construído em 2001 nas traseiras da Picheleira. Os espaços em que trabalham Pedro Gomes e outros artistas, arquitectos e estilistas ficam numa rua sem nome, chamada apenas Impasse C, virada à Avenida Marechal Costa Gomes, ao Alto de São João, Alto do Pina e Quinta do Lavrado, outro bairro municipal, construído para albergar os desalojados da Curraleira.

Os ateliers e gabinetes foram instalados nas garagens dos prédios, às quais se acede por rampas com uns muros não muito altos, mas que criam recantos discretos e escuros mesmo junto às portas. “Isto é um faroeste. Eu quando chego tenho de evacuar pessoas da minha porta para conseguir trabalhar”, descreve Pedro Gomes.

Os ocupantes destas garagens, que a câmara de Lisboa arrendou há uns 14 anos com o intuito de “dar outra vida à zona” e “atrair outro tipo de população” (palavras da autarquia), queixam-se de que o local está dominado pelo tráfico e consumo de droga e por outras actividades ilegais, o que tem gerado muita insegurança e compromete o propósito inicial de ali haver um pólo cultural, artístico e empresarial.

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No Impasse C, o lixo acumula-se em todo o lado - e muito dele é gerado pelo consumo de droga Nuno Ferreira Monteiro

A Arqcoop, uma cooperativa onde se dá formação profissional em arquitectura e que também serve de sede para dez empresas, funciona numa das garagens. As aulas são em horário pós-laboral, que é hora de ponta no Impasse C. “Os clientes chegam aqui às seis e meia, sete horas, vêem toda esta movimentação e, às dez, saem com o credo na boca. A primeira coisa que nos perguntam é se é seguro deixar o carro aqui, se não vai desaparecer”, relata Daniel Corredoura, responsável da Arqcoop. “Uma vez cheguei aqui às nove e meia de um sábado, para dar uma formação com 15 pessoas, e vem um tipo disparado a fugir de outros dois que lhe queriam bater. Viu aqui a porta aberta, enfiou-se lá para dentro. A coisa só se resolveu porque chamei a polícia e veio o corpo de intervenção.”

Ocupações ilegais

“O que nós queríamos era um espaço normal de trabalho e não estar num Casal Ventoso”, comenta Pedro Gomes, que é o porta-voz do grupo ali instalado. A meio da manhã o movimento ainda é esporádico, mas de vez em quando lá vem alguém que desaparece na escuridão junto às garagens, ressurgindo daí a minutos ou demorando-se uma meia hora ou mais. A dada altura, durante a conversa com o PÚBLICO junto a um espaço verde com ar negligenciado, um homem vem a correr do outro lado da encosta, atravessa a avenida, ultrapassa-nos e continua pela rua abaixo até uma garagem. Vem com um olhar esgazeado, os braços como que mortos, baloiçando sem sentido.

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Do outro lado da rua fica outro bairro municipal: Quinta do Lavrado Nuno Ferreira Monteiro

Sempre ali houve toxicodependência, ressalva Pedro Gomes, mas a situação piorou nos tempos mais recentes. “Então nos últimos dois anos tem sido terrorífico”, comenta. O também artista plástico João Pedro Vale explica que notou uma alteração do tipo de consumidores que ali vão. “São pessoas normalíssimas. Podíamos ser nós, isso é que é assustador.”

O consumo de droga é incómodo, mas a insegurança é o que preocupa mais quem trabalha no Impasse C. “As cidades são para ser utilizadas e por todas as pessoas. Mas aquele sítio é perigoso, eu tenho medo. Tenho medo de ser assaltado quando vou para o atelier, tenho medo quando estou a tirar alguma peça lá de dentro, tenho medo que o meu carro seja assaltado”, assume João Pedro Vale. O artista visual João Onofre, que com ele partilha a entrada da garagem (mas ocupa um espaço no piso de cima), corrobora: “O reforço da segurança é urgente.”

Já por três vezes tentaram arrombar a porta dos ateliers de João Pedro Vale e João Onofre com recurso a pés-de-cabra. “Aconteceu, arranjou-se e no dia seguinte voltou a acontecer.” A garagem de Pedro Gomes também já foi visada algumas vezes. “Na última, há duas semanas, demorei duas horas e meia a entrar no meu atelier. Havia uma frincha de dez centímetros, feita com uma barra de ferro, um trabalho certamente demorado e ruidoso”, descreve.

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Junto às garagens há locais recatados, frequentemente usados para consumo de droga Nuno Ferreira Monteiro

Além disso, algumas garagens estão ocupadas ilegalmente. A que fica por baixo dos ateliers de João Pedro Vale e João Onofre tem sido várias vezes alvo de buscas da polícia. “Vimos lá um carro a ser desmantelado, restos de fogueiras”, diz Vale. “Um cenário muito caseiro: uma televisão ligada, um sofá, uma chapa eléctrica, um carro”, acrescenta Onofre. Há poucas semanas, a PJ entrou naquele local e apreendeu motas roubadas. “No dia seguinte o espaço foi tomado por outras pessoas, que já tinham mudado a fechadura”, afirma Pedro Gomes.

Investimento em risco

Por causa de umas ligações de água e electricidade que a câmara está há anos para fazer, este grupo ainda não paga a renda que devia pela utilização dos espaços (pouco mais de cem euros). Mas, logo quando chegaram aqui, cada um teve de investir em obras para transformar garagens inóspitas em locais de trabalho. Daniel Corredoura estima que a Arqcoop tenha desembolsado uns 150 mil euros (porque a cooperativa tem ao todo 750 metros quadrados de área), os restantes gastaram à volta de 15 mil.

São estes investimentos que estão em causa, mas também a própria sobrevivência enquanto artistas. “Quando a câmara nos cedeu os espaços, o compromisso era fazermos obras e desenvolvermos a nossa prática, que envolve também receber pessoas de fora. Eu já lá recebi escolas, pessoas que vêm ver o meu trabalho”, diz João Onofre. E neste lote incluem-se curadores, directores de museus, coleccionadores. “Uma pessoa vai abrir o atelier e tem fraldas usadas, seringas e preservativos à porta”, conta Onofre. “Receamos pela segurança deles”, afirma João Pedro Vale.

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O artista plástico Pedro Gomes assumiu-se como porta-voz deste grupo de agentes culturais, que exige respostas da câmara Nuno Ferreira Monteiro

Perante uma situação que classificam como insustentável, todos estranham e criticam o que dizem ser o silêncio da câmara. “Começámos a sentir que falávamos e não tínhamos resposta. Ou quando temos é ‘sim, sim’. Dizem-nos que sabem perfeitamente o que se passa, mas para além de perceber, é muito estranho não falarem connosco nem com os moradores”, diz João Pedro. “A câmara sabe disto tudo. Se quisesse fazer alguma coisa, fazia. É só uma questão de vontade”, afirma Daniel.

Pedro Gomes foi a uma reunião autárquica descentralizada há duas semanas e expôs a situação. Do vereador dos Direitos Sociais, o bloquista Manuel Grilo, ouviu a garantia de que aquele será um dos pontos de paragem da futura sala de consumo vigiado móvel, pois trata-se de “uma zona com muitos consumidores de drogas injectáveis”. Do vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, ouviu a promessa de que ali mesmo em frente vai nascer “um número considerável de fogos” no âmbito do Programa de Renda Acessível e que o concurso para essa construção será lançado “dentro de dois, três meses”. O eleito não o disse, mas ficou subentendido: esse empreendimento poderá ter como efeito prático uma ‘limpeza’ da zona.

Câmara quer investir 860 mil euros

Apesar destas afirmações, o grupo considera que são necessárias medidas mais urgentes. E pedem-nas à vereação da Habitação, pois é ali que está a gestão dos espaços não-habitacionais dos bairros municipais (vulgo, lojas e garagens).

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A câmara de Lisboa diz que esta zona está referenciada como ponto de consumo de droga injectável e a sala de "chuto" móvel vai ali parar Nuno Ferreira Monteiro

Do gabinete da vereadora Paula Marques vem a informação, em resposta ao PÚBLICO, que as garagens ocupadas ilegalmente “serão objecto de desocupação em breve” e que “estão a ser procuradas soluções adequadas para [esses] casos”. “Esta operação será seguida de medidas rápidas para assegurar o reforço de estruturas, nomeadamente com rebatimento de muros e colocação de gradeamentos que impeçam o acesso aos locais mais esconsos e evitem de novo a procura por pessoas que não habitam a zona”, garante-se.

Por outro lado, a vereação assegura que está previsto “o reforço do policiamento na zona” e que está “a identificar elementos físicos que possam contribuir para situações de insegurança”, para os remover.

O gabinete aponta ainda que “no primeiro semestre de 2019” deve arrancar a implementação da Casa Comunitária numa das garagens do Impasse C. Trata-se de um “equipamento de proximidade com um leque diversificado de valências e programação específica que responda aos objectivos de um centro comunitário e às necessidades e aspirações desta população carenciada”. Trata-se de um investimento de 420 mil euros, em parte oriundo da União Europeia, e segundo um documento remetido ao PÚBLICO, a data prevista para a conclusão das obras é Março de 2020.

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A autarquia diz que não está desatenta e que tem vários investimentos previstos Nuno Ferreira Monteiro

Também com apoio comunitário estão previstas quatro intervenções no espaço público da zona. A que mais directamente dirá respeito ao grupo de agentes culturais é a criação de um parque urbano mesmo em frente às garagens, numa área de 15 mil metros quadrados. O espaço tem actualmente meia dúzia de pinheiros, alguns trilhos cobertos de erva, placas de um circuito de manutenção que não é usado, umas hortas comunitárias – e muito lixo. Com um investimento a rondar os 130 mil euros, a câmara quer “promover a coesão social e o enquadramento paisagístico em falta, melhorando as acessibilidades pedonais e a segurança pública”.

Os outros investimentos, de um pacote total de 860 mil euros, são para as zonas limítrofes: a requalificação da encosta da Quinta do Lavrado, a criação de um parque inter-geracional e a melhoria de acessibilidades pedonais no Bairro Horizonte, encostado à antiga Curraleira. Todos estes projectos têm a mesma previsão de conclusão: Março de 2020.

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Os agentes culturais do Impasse C temem não suportar muito mais tempo nestas condições Nuno Ferreira Monteiro

Os trabalhadores das garagens do Impasse C aguentarão até lá? “Nós neste momento somos um corpo a ser expelido”, lamenta Pedro Gomes.

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