No Brasil, “o ódio saiu do armário” — cá, um grupo quer abrir portas

Há, no Facebook, um grupo fechado de apoio à comunidade LGBTQI+ brasileira que responde a dúvidas daqueles que querem fazer as malas e trocar o Brasil por Portugal — o Portugay Tropical. É liderado por sete pessoas — também elas com histórias para contar — que, voluntariamente, são um ombro amigo do outro lado do ecrã (e do Atlântico).

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Sarah Alwan, Alex Nascimento, Yolanda Esper, Mar Velez e Nicolle Maia (da esquerda para a direita) Paulo Pimenta

A decisão de vir para a Europa já estava tomada, mas foi adiantada. “O resultado das eleições no Brasil, o aumento significativo da violência e o sentimento de insegurança” fizeram com que Renato Elias e Alexandre Amorim, 32 e 33 anos, começassem a fazer as malas e decidissem trocar Florianópolis pelo Porto, já no próximo ano. Têm uma filha de dois anos, que querem “criar com dignidade”, e sentiram que no Brasil não conseguiriam: apesar de considerarem que o país sempre foi homofóbico, acreditam que nunca o foi tão “escancaradamente” como agora, dois meses após a eleição de Jair Bolsonaro.

“Parece que depois da eleição as pessoas perderam o medo de falar, como se ‘as máscaras tivessem caído’ ou tivessem ‘saído do armário’, e agora revelam o quão ignorantes e preconceituosas são”, escrevem ao P3. O casal tem visto a intolerância aproximar-se de si até a partir de pessoas do círculo de amigos e família. Decidiram, então, que era altura de procurar alternativas e pesquisaram, nas redes sociais, “lugares onde aceitariam gays ‘refugiados’ devido a questões políticas”. Assim descobriram o Portugay Tropical, um grupo fechado no Facebook que os ajudou a resolver todas as dúvidas acerca do processo de imigração.

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Renato, Alexandre e a filha DR

O grupo de apoio à comunidade LGBTQI+ (Lésbica, Gay, Bissexual, Transgénero, Queer, Intersexo) brasileira reúne mais de duas mil pessoas, que querem vir de lá para cá ou que já cá estão. É gerido por sete pessoas — as mesmas que ajudaram e aguardam a chegada de Renato e Alexandre —, que respondem a dúvidas sobre emprego, habitação, saúde e documentação legal. Além do grupo privado, o colectivo gere também uma página pública.

Apesar de o intuito ser prestar informações legais e facilitar o processo de mudança, o grupo acaba por se tornar numa comunidade onde as pessoas se apoiam mutuamente e trocam mensagens de união: “Ninguém solta a mão de ninguém!”, lê-se em várias publicações. Por detrás do colectivo estão pessoas que já estiveram na pele dos que hoje ajudam: dos sete organizadores, apenas uma é portuguesa — os restantes fizeram as malas e deixaram o país natal em troca da liberdade de serem eles mesmos. São cinco deles que se sentam à mesa com o P3, para uma conversa que há-de trazer histórias de intimidade, fragilidade e revolta. De Bolsonaro a anúncios de casamento contados entre lágrimas e risos, falar-se-á de política, homofobia e amor.

“É real estarmos a viver tudo isto?”

Quando se encontram no Café Ceuta, no Porto, onde habitualmente se reúnem, Alex, Mar, Nicolle, Sarah e Yolanda abraçam-se. A maioria conhece-se apenas desde que o grupo foi criado — há cerca de dois meses —, mas há, entre eles, uma ligação evidente. Querem saber como vai a vida uns dos outros, novidades nos casos que acompanham, perguntam por Débora e Sandra, os elementos que faltam no dia em que o P3 se junta à conversa. Cada um tem a sua própria história, a sua própria vida, que vai conjugando com as dezenas de mensagens a que responde por dia, quer no grupo, quer na caixa de mensagens privadas. Até agora já receberam mais de 200 pedidos de ajuda; pelo menos três destas pessoas prevêem entrar em Portugal no início do próximo ano.

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Yolanda Esper, Sarah Alwan, Nicolle Maia, Alex Nascimento e Mar Velez (da esquerda para a direita) Paulo Pimenta

Mar Velez, a portuguesa do grupo, começa a contar a história do Portugay Tropical e da urgência com que Débora Ribeiro, brasileira de 33 anos, o criou: “Foi no dia a seguir às eleições presidenciais do Brasil. A Débora estava em pânico e pediu-me ajuda para criar o grupo no Facebook. A ideia era mostrar que estamos com o Brasil, ser um apoio para quando as coisas começassem a ficar mesmo negras. Já estão, mas podem piorar.”

Na primeira metade de 2017, a Provedoria Nacional dos Direitos Humanos do Brasil recebeu 725 queixas de violência, discriminação e outros abusos contra pessoas LGBT, reporta a Human Rights Watch. Um relatório de 2017 da Aministia Internacional aponta o Brasil como o país onde se registaram mais homicídios com vítimas LGBTI: entre Janeiro e Setembro do mesmo ano, o Grupo Gay da Bahia contabilizou 277 assassinatos de pessoas LGBTI, o maior número desde os primeiros registos, em 1980.

Perante este cenário, não perderam tempo a divulgar o Portugay Tropical — na altura ainda se chamava “Apoio aos LGBTs brasileiros (Porto, Portugal)”. Fizeram um post num grupo brasileiro, “LGBTs contra Bolsonaro”, e, numa questão de dias, centenas de pessoas aderiram. Entre dúvidas, inquietações e desabafos, houve quem se voluntariasse para ajudar: foi o caso de Alex Sandro Nascimento, 40 anos, natural de Imperatriz, no Maranhão, a fazer mestrado em Desporto, Actividade Física e Saúde no Porto. “Eu queria ajudar e achei que podia dar algumas informações, nomeadamente no que diz respeito a vistos para pessoas que querem estudar cá”, explica.

Também ele apressou a sua vinda para Portugal face aos últimos acontecimentos políticos no seu país natal. Já tinha vivido no Porto, em 2016, num intercâmbio durante a licenciatura, e tencionava voltar, um dia. Mas acelerou o processo quando percebeu que “havia grandes possibilidades de Lula da Silva ser preso” e que “a esquerda não se tinha mobilizado para uma alternativa convincente”. Nesta altura, “Jair Bolsonaro já era um forte candidato”, o que o assustava. “Adiantei-me para o mestrado porque assim, se ele fosse eleito, eu já não estaria no Brasil.”

Rapidamente apareceram mais voluntários. Nicolle Maia, carioca de 33 anos, juntou-se a Débora para responder a questões sobre reagrupamento familiar, uma vez que ambas são casadas com cidadãs europeias. Mas, nos últimos tempos, Nicolle tem-se dedicado cada vez mais a serenar inquietações maternas: “As mães perguntam-me se é verdade que os filhos estão a passar por situações de homofobia. Porque elas não conseguem ver, nem acreditar, que os filhos tenham de ir embora do Brasil”, conta. Mas também há o reverso da medalha: noutro dia, ficou transtornada com uma mensagem de voz que uma mãe enviou a uma filha por WhatsApp. “A mãe diz que prefere que a filha morra ou desapareça, porque acabou de descobrir que ela é lésbica”, conta, enquanto segura as lágrimas. “É real estarmos a viver tudo isto?”

Não são uma instituição, relembram. Também eles têm de procurar auxílio e questionar, para conseguir ajudar. Recentemente, firmaram uma parceria com a ILGA Portugal — Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo, o que lhes permitirá ser mais eficazes no apoio que prestam.

Marta Ramos, directora executiva da associação, explicou ao P3 que “a lei em Portugal prevê a possibilidade de pedidos de asilo por grupos LGBT desde 2008”. O que significa que pessoas que sofram perseguições relacionadas com a orientação sexual podem entrar em Portugal e pedir asilo nos aeroportos e no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), ou pedir ajuda à ILGA, que encaminha os casos. Não há, contudo, certezas de que o Estado português conceda asilo a brasileiros — uma vez que tal implica “o reconhecimento da falha de um Estado”. Mesmo assim, e apesar de a ILGA nunca ter acompanhado casos de pessoas brasileiras, os pedidos de informação aumentaram significativamente: “Temos uma média de cinco pedidos de informação por semana, por pessoas brasileiras. É um grande aumento, porque antes vinham de alguns em alguns meses.” Investigadores, alunos, famílias com filhos, “não há um padrão das pessoas que pedem asilo.” 

Depois da homofobia, o casamento

Do Portugay Tropical fazem parte ainda Sarah Alwan e Yolanda Esper, que se mudaram em Agosto deste ano. Para trás, deixaram o cão, que querem trazer — mas é mais difícil do que imaginavam. “A companhia aérea diz uma coisa, no aeroporto dizem outra”, refere Yolanda. Por isso, as duas estão encarregues de ajudar outras pessoas com todas as questões ligadas à viagem: transporte de animais, preço e datas, por exemplo.

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No Brasil, moravam e trabalhavam juntas, eram professoras na mesma escola. Foram demitidas, num processo “mascarado e humilhante”, por estarem num relacionamento. “Descobriram que éramos um casal e tivemos que reportar ao nosso chefe. Ele fingiu que estava muito feliz, mas depois disso começou uma série de humilhações”, conta Sarah. Foram proibidas de trabalhar em projectos em conjunto — quando “outros professores heterossexuais que estavam em relacionamentos já o tinham feito” — e punidas com uma advertência porque alguém as viu a beijarem-se fora da escola. Acabaram por ser demitidas.

À demissão, aliaram-se as perseguições de um vizinho, que começaram assim que Bolsonaro se candidatou. Começou a insultá-las, persegui-las e intimidá-las. Tentaram fazer queixa à polícia, mas o processo foi-lhes dificultado: “Disseram que o sistema [informático] não estava a funcionar e pediram testemunhas.” Cansaram-se de vez, fizeram as malas e vieram para Portugal, uma vez que Yolanda tem cidadania portuguesa. Em breve vão casar — novidade que foi recebida entre lágrimas, aplausos e abraços. “Estamos convidados?”, pergunta Mar. “Claro que sim.”

Todos concordam que depois da candidatura de Bolsonaro acabaram os pudores. Dizem que as agressões aumentaram, que a polícia dificulta as queixas de perseguição e agressão a pessoas homossexuais. “Antes da candidatura de Bolsonaro, a homofobia estava mascarada. As pessoas sabiam que não podiam ser homofóbicas e, por isso, tentavam fingir que não eram. Agora, essas atitudes foram legitimadas”, refere Sarah. 

Contam história atrás de história: uma mulher que não tem cabelo devido aos tratamentos de quimioterapia e é agredida por parecer transexual; um par de namoradas que é rodeada por oito homens, que as obrigam a beijar cada um deles; um amigo que diz a Nicolle que prefere que ela morra, se isso “proteger” a maioria.

Mencionam casais amigos que não tinham intenções de casar, mas que o estão a fazer, apressadamente, com receio que o casamento gay passe a ser proibido. Relembram a história de Renato e Alexandre, de como lhes atiraram uma garrafa de vidro quando saíam da praia com a filha e de como isso pesou na decisão de deixarem o Brasil: “Quando é que a crueldade se tornou tão grande que a integridade física de uma criança de dois anos deixou de importar?”, escreve o casal, sobre o assunto. Também eles tentaram fazer queixa à polícia e também a eles disseram que o sistema informático não estava a funcionar.

Renato e Alexandre têm medo — e escrevem-no repetidamente. “Vivemos com medo. Medo que algo assim se repita, medo de que possam ferir a nossa filha. Medo de perder a vida a defender a nossa liberdade de existir.” Mas não se querem esconder porque precisam de “resistir para existir.” Alexandre é psicólogo e lançou, em Novembro, um livro infantil — O Cavaleiro e o Lobisomem —, cujos protagonistas são “dois homens no seu próprio conto de fadas”. Em Maio, são eles que atravessam o Atlântico para viver o seu próprio conto de fadas “em segurança e paz”.

Passaram-se duas horas, mas as histórias parecem não ter fim. Nicolle resume: “Quando Bolsonaro se candidatou, o ódio saiu do armário e, nesse minuto, a minoria voltou a entrar no armário.” Mas este grupo está determinado a fazer o que puder para não deixar que as pessoas se fechem outra vez. Nem que para isso seja preciso ajudar a abrir as portas de outro país.

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