Marta, a "achadora" de montras que podem salvar o comércio tradicional
Folheto do comércio tradicional Achador parte do doutoramento de Marta Nestor e busca salvação para lojas portuenses com mais de 50 anos. Montras no papel e fora do sítio. Porque numa cidade em mudança, este sector tem uma palavra importante a dizer
Quando Marta Nestor aceitou o convite para trabalhar as vitrinas da Casa Januário, não demorou a perceber que a máxima há muito ouvida nas suas lides pelo mundo do comércio não podia ser mais assertiva: “A montra é o primeiro funcionário a vender.” Da janela do seu escritório, em frente à mercearia fina da Rua do Bonjardim, a designer gráfica punha-se a observar. Quem passava sem olhar, quem estacionava, a linguagem corporal, a decisão de entrar ou seguir em frente. O seu projecto Porto Paralelo – um directório online da história e localização de lojas cinquentenárias criado em 2012 – já tinha amadurecido e Marta Nestor sentia que algo faltava. “Estava preocupada por ver tantas dessas lojas a fechar. Não conseguia acompanhar as razões pelas quais isso acontecia e queria fazer algo para o contrariar.”
Apaixonada pelo comércio tradicional desde menina, quando com a mãe e avó percorria as lojas antigas da zona da Rotunda da Boavista, Marta Nestor recusava-se a desistir. No seu doutoramento, que concluirá no próximo ano, apresenta “soluções para a vitalidade e viabilidade” destes lugares. E se a mudança é imparável, a adaptação é, ainda assim, possível. O Achador, folheto do comércio tradicional com o número zero já publicado, é um ensaio para isso.
A receita veio da conjugação do folheto de supermercado, “que muita gente usa para consulta e planeamento das compras”, com as vitrinas. Com um ano e meio de experiência na Casa Januário e muita investigação pelo meio, Marta sabia já algumas coisas sobre montras. O diagnóstico não era de grande optimismo. Com uma “eficácia muito pontual” nos dias de hoje, as monstras enfrentam vários desafios. No Porto, as esplanadas obrigam as pessoas a desviarem-se delas e as “ruas corredor”, artérias pontuadas por hotelaria e lojas souvenir, cada vez mais comuns na cidade, fecham a urbe a quem a habita e dificultam a vida às lojas.
Há negócios que se tornaram quase inexequíveis. “No meu directório não tenho nenhuma drogaria e há já muito poucas. Sofreram muito com as lojas maiores. Não conseguiram sincronizar a oferta e o público, não se reposicionaram, não optimizaram a comunicação”, avalia. Das 53 históricas mapeadas pelo Porto Paralelo umas vinte já terão fechado e no site renovado do projecto caberão num “arquivo silencioso”. Casos existem onde a extinção era inevitável. Outros poderiam ter na adaptação uma bóia de socorro.
No trabalho no Porto Paralelo, Marta Nestor tornou-se “da casa” em muitas moradas. Conheceu as lojas de fio a pavio – ou das montras ao armazém –, viu o que está para lá das quatro paredes frequentadas pelos clientes. Nos bastidores foi respigar ideias e produtos para levar para o escaparate da loja. Ambientes invulgares, fotografias dos armazéns, produtos que de tão comuns para os donos e funcionários das lojas já não precisavam de se mostrar: “Na Casa Januário fiz uma vez uma montra com pratos de papel e cartonagens utilizadas em papelaria”, exemplifica. Porque quem vem de fora pode ter “um olhar mais desempoeirado, mais apaixonado, capaz de encontrar coisas que quem lá está sempre já não vê.”
No Achador – palavra com origem em “caçador de achados”, aquilo que a designer se sentia nas lojas – estão doze montras pensadas por Marta Nestor, desta vez em doze lojas do “bairro” da baixa oriental, entre as Ruas do Bonjardim, Fernandes Tomás, Passos Manuel, Sá da Bandeira e Rodrigues Sampaio. Na edição especial de Natal, cuja capa é uma imagem do extinto mural dos três vinténs, na Rua de Cedofeita, cabem A Favorita do Bolhão, o Armazém dos Linhos, a Bernardino Francisco Guimarães, a Camisaria Porto, a Casa Porto, a Casa Chinesa, a Casa Januário, a Casa Lima, a Casa Lourenço, a Casa Natal, a Feira do Bacalhau, Neves & Loureiro e O Pretinho do Japão. Todas com mais de cinquenta anos, premissa para integrarem o projecto, cada uma com uma montra requintada, os materiais listados (com preços), as moradas, horários e contactos. Em cada um dos folhetos deste número zero (são 350 e podem ser recolhidos gratuitamente nas 12 lojas e alguns cafés da zona) está um “cupão de opinião”, para recolher impressões e sugestões dos clientes e pensar no futuro do projecto cuja periodicidade ainda não foi definida.
Se a pergunta é por que razão devemos privilegiar o comércio tradicional, Marta Nestor não tem muitas dúvidas. Os preços “são quase sempre mais baratos”, a “carga humana” é incomparável, os “conselhos e cuidado pós-venda” dificilmente imbatíveis. Muita coisa está ainda por fazer – e não só do lado dos empresários. Nota positiva para a “criação de um pelouro do comércio e turismo pela Câmara do Porto”, chamada de atenção para a ainda pouca relevância dada ao sector: “O comércio tem um papel fundamental numa cidade, ainda mais quando ela está em mudança. Tem a capacidade de ser um chamariz. De caracterizar um lugar”, afirma. No Porto, ao contrário do que acontece em várias cidades europeias com “políticas agressivas” no terreno, ainda é notória a “falta de protecção aos negócios que caracterizam e dão profundidade à cidade”.
Não é a defesa de uma “ilha”. É a apologia da mistura. “Não faz sentido que as lojas cinquentenárias se juntem todas numa rua, mas é preciso que haja uma simbiose de espaços”, diz. Nas andanças por este comércio com mais memória e pergaminhos no quotidiano do Porto, Marta Nestor foi descobrindo um “efeito Lello”: uma espécie de “compra-experiência”, que no caso da livraria quase extinguiu o sentido dessa designação. “Só não deixa de vender livros porque aí deixava de ser a livraria mais bonita do mundo para ser apenas um espaço bonito”, considera. Esse “modelo comercial hibrido” já se ia encontrando pela cidade há 30 ou 40 anos e não é, por si só, negativo, diz ela, na esplanada de uma dessas casas que soube renovar-se: a Bernardino Francisco Guimarães, loja de ferragens da Rua do Bonjardim, agora com uma cafetaria integrada. Essa ideia de alargamento dá uso aos armazéns, muitas vezes semi-vazios por falta de produto, rentabiliza a “nova vaga turística” e cria uma “dinâmica diferente”. O Achador e o Porto Paralelo não querem combater o efeito Lello, mas “contrabalançar” essa tendência. “É preciso voltar ao core do negócio, ao produto”. Caso contrário ficaremos condenados a “lojas para visitar”. E depois, o que seria dos museus?